O Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro (MAM-RJ) nasceu como entidade civil em 1948, tendo
funcionado a partir de 1952 num mezanino do edifício do Ministério
da Educação e Saúde, que funcionava no Palácio Gustavo Capanema. As obras para a construção da sede
do MAM no Aterro do Flamengo só começaram em 1954, mas já no ano
seguinte foi criado o Departamento de Cinema do museu. Ainda em 1955
se iniciaram as sessões de filmes promovidas pelo MAM, então
realizadas no auditório da Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), na Rua Araújo Porto-Alegre, n.71. Em 1957, o setor
transformou-se oficialmente em Cinemateca, dando início às
atividades de guarda de filmes e criando uma biblioteca e um setor de
documentação e pesquisa.
A primeira parte do MAM
que foi construída – o chamado Bloco Escola, onde hoje funciona a
Cinemateca – foi inaugurada somente em 1958 e nesse mesmo ano o
museu já pôde sediar os eventos sociais (abertura e coquetéis) e a
exposição (que incluía uma estatueta original do Oscar, entre
outros objetos) da histórica mostra História do Cinema Americano,
ainda que as sessões de filmes tenham continuado a ocorrer em salas
de cinema em outros locais da cidade. Os festivais se sucederam, a
programação de filmes se intensificou ao longo dos anos 1960, e a
Cinemateca passou a programar diversas salas de cinemas de arte do
Rio de Janeiro, incluindo o Cine Paissandu, a partir de 1965, dando
origem ao que ficou conhecida como a “geração Paissandu”.
O Bloco de Exposições
do MAM (a parte principal do museu), cuja construção se iniciou em
1956, foi concluído somente em 1967 e a Cinemateca finalmente ganhou
uma sala própria de projeção, no terceiro andar do museu, que hoje
funciona apenas como local de exposição.
Tanto por sua
programação de filmes e consolidação como local de encontro,
debate e reflexão sobre cinema na cidade do Rio de Janeiro, como por
sua participação efetiva na produção e finalização de diversas
produções de longas e curtas-metragens, assim como pelo apoio
fundamental a mostras, festivais e cineclubes, a Cinemateca construiu
uma forte imagem junto ao meio cinematográfico e ao público
cinéfilo nas décadas de 1960 e 1970.
Em julho de 1978, o MAM
foi atingido por um trágico incêndio, mas a Cinemateca, em si,
sofreu poucos danos. Ainda assim, sua atividade externa foi reduzida
e os esforços se voltaram para sua reestruturação interna,
visando a ordenação e melhoria de guarda de seu acervo. Mesmo
assim, em debate realizado em 1979, Carlos Augusto Calil, então
Diretor de Operações Não-Comerciais da Embrafilme, reconhecia que
“todas as pessoas que mexem com cinema e que estão interessadas
por cinema, que militam em cinema de alguma forma aqui no Rio,
passaram por lá, foram conquistadas e sensibilizadas pela Cinemateca
do MAM” (Cinemateca Imaginária: Cinema & Memória. Rio
de Janeiro: Embrafilme, 1981, p. 47).
As instalações da
Cinemateca foram transferidas para o Bloco Escola e, somente em 1987,
após uma série de reformas, foi inaugurado o atual auditório, em
funcionamento até hoje, sendo retomada a programação.
***
Tudo isso é História,
já relatada em alguns (poucos) livros, filmes, dissertações e
artigos de jornal. Entretanto, a história recente da Cinemateca,
escrita por diversas pessoas, ainda não foi registrada para a
posteridade. Em sintonia com o sentido de urgência dos preservadores
de conservar a memória do presente para que no futuro nosso passado
não esteja perdido, busco relatar alguns fatos e acontecimentos que
se relacionam não apenas à Cinemateca, mas à história da
Preservação audiovisual no Brasil de forma mais ampla. Como um dos
personagens desse relato, tomo a liberdade de assumir um tom pessoal,
inevitável para quem fez parte dessa história.
***
Em meados dos anos
1990, ainda adolescente, estive pela primeira vez na
Cinemateca do MAM para assistir ao filme de Truffaut Jules e Jim. Morando em Niterói,
costumava freqüentar as salas do Estação Icaraí (antigo Cinema 1)
e do Cine-Arte UFF, além dos cinemas de rua que a cidade ainda
tinha, como o Windsor, o Icaraí e o Cine Center no meu bairro, e os
amplos, mas já decadentes Central e Niterói, no centro. Aliás,
todos eles se encontram fechados atualmente.
Naquela época, a
Cinemateca ainda gozava de relativo prestígio, com sua sala equipada
com as características cadeiras modernas (e barulhentas) de madeira
e couro assinadas por Sérgio Bernardes, o bistrô e o piano em sua
entrada, a programação de filmes clássicos e raros, além do
charme do Museu criado pelo genial arquiteto Affonso Eduardo Reidy e
emoldurado pelo belíssimo jardim projetado por Roberto Burle Marx. O
MAM já tinha como diretora Maria Regina Nascimento Brito, cuja
passagem polêmica pelo museu, independente de seus detratores ou
defensores, teve como um de suas marcas indiscutíveis o
autoritarismo centralizador de conseqüências trágicas para a
Cinemateca.
Como um departamento do
MAM, a Cinemateca vinha perdendo a relativa autonomia e a influência
conquistada desde os anos 1960 por seu maior ícone, o amazonense
Cosme Alves Netto (1937-1996), curador da Cinemateca de 1965 a 1988 e
verdadeira tradução brasileira para o mítico Henri Langlois. Da mesma forma que
o fundador da Cinemateca Francesa, Cosme dedicou sua vida à
Cinemateca do MAM que ele ajudou a consolidar.
Mas aos problemas
internos somava-se também a deterioração do entorno do museu, com
o Parque do Flamengo entregue a crianças de rua e mendigos, o que
colaborava para a atuação pública da Cinemateca ser eclipsada pela
de outras instituições culturais como o Centro Cultural Banco do Brasil
(CCBB), cuja sede no Rio foi criada em 1989. Mas a principal
concorrência era dos novos circuitos formados por cineclubistas que
tiveram a Cinemateca como um de seus principais parceiros. Já em
1986 a revista Domingo do Jornal do Brasil (14 set. 1986) estampava
em sua capa uma reportagem sobre “A geração Estação Botafogo”,
que substituía a já envelhecida geração Paissandu. Não foi à
tôa, aliás, que o grupo Estação arrendou o Cine Paissandu,
se apropriando de seu capital cultural, que foi largamente utilizado, por exemplo, para provocar o
frenessi que cercou o fechamento deste “templo do cinema de arte” em
agosto de 2008.
Ainda assim,
capitaneada pela jornalista e crítica do Jornal do Brasil Susana
Schild (como antes o também crítico deste jornal, José Carlos Avellar) no início dos anos 1990, e posteriormente pelo professor João
Luiz Vieira, a Cinemateca conseguiu alguns sucessos de público e de
mídia, com mostras memoráveis como as dedicadas a Jean Renoir, D.W.
Griffith, Ingmar Bergman, entre outras.
Entretanto, é
significativo que quando ingressei no curso de cinema da Universidade
Federal Fluminense (UFF), em 1998, o primeiro estágio (como
voluntário) meu e de vários colegas da faculdade foi na Mostra Rio
– X Mostra Internacional do Filme, organizada pelo Estação, que
era o grande acontecimento para a juventude cinéfila carioca (No ano
seguinte, a Mostra Rio juntaria suas forças com o Rio Cine, dando
origem ao Festival do Rio).
Mas foi também através
da UFF que meus vínculos com a Cinemateca foram reforçados,
inicialmente através de um estágio voluntário proporcionado pelo
professor João Luiz Vieira, ex-curador da Cinemateca.
De maio a agosto de 2000, eu e mais uma aluna (Poliana Paiva) íamos
semanalmente a Cinemateca para pesquisar e preparar perfis
biográficos de diretores brasileiros para a futura base de dados da
instituição. Foi a primeira vez que conheci o interior da
Cinemateca, especialmente seu Setor de Documentação que, na “era
Maria Regina”, saíra da alçada da Cinemateca e, fundindo-se com o
setor de documentação de artes plásticas, passou a compor o viria
a ser chamado de Centro de Memórias MAM. Carlos Eduardo Pereira, o
Cadu, funcionário do MAM e ex-aluno da UFF, era o responsável pelo setor, trabalhando
junto com Maurício Salles e Giovani Simionato, mas todos subordinados
à coordenadora do setor, Lúcia Lobo, que chegara a acumular o cargo de curadora da
Cinemateca.
Pouco antes disso, o
setor de documentação contara com um significativo exército de
estagiários – como o hoje crítico Ruy Gardnier e alguns colega da
minha geração da UFF – que recebiam como forma de remuneração
uma carteirinha de gratuidade em alguns cinemas do Estação, algo
que provocava a inveja de muita gente. Em contrapartida, a Cinemateca
cedia gratuitamente cópias de seu acervo para a programação das salas do Estação
(o que continuou fazendo por muito tempo, alimentando, por exemplo,
as surpresas das madrugadas na Maratona Odeon). Aliás, ter uma carteirinha do
Estação era a melhor maneira de ver filmes, pois nessa época a
Cinemateca já não mantinha uma programação regular em sua sala e
muita gente achava que ela tinha fechado de vez.
Foi neste estágio
também que conheci funcionários como Wanderci, responsável pelo acervo da Atlântida, e,
principalmente, Hernani Heffner, conservador da Cinemateca que
assumira a função de Francisco Moreira (o Chico), que por
desentendimentos com a diretoria do MAM e pelo desânimo decorrente
disso, pedira demissão e tinha ido, em 2000, para a Labocine
constituir o laboratório de restauração que não conseguira criar
na Cinemateca.
Ao assumir a tarefa de
redigir perfis biográficos de cineastas brasileiros conheci a
generosidade e o conhecimento do Hernani, também ex-aluno da UFF,
que nos auxiliava em um trabalho extremamente proveitoso para mim,
mas que, na verdade, não resultou em nada de concreto para a
Cinemateca, uma vez que a base de dados que utilizaria nossos textos
nunca chegou a ser criada. Conheci uma das facetas mais interessantes
do Hernani quando diante da recém-publicada Enciclopédia do Cinema
Brasileiro, perguntei por que eu, estudante do quarto período de
cinema, estava redigindo perfis para cineastas e não copiando os já
feitos por especialistas. A resposta do Hernani foi: “Porque tem
muita coisa errada na enciclopédia”. Ao mesmo tempo em que ele
construtivamente destruía qualquer idealização que eu pudesse ter
dos "grandes nomes" da academia, ele generosamente nos estimulava a não
deixarmos de fazer algo só porque essa mesmo coisa já tinha sido
feita antes por outras pessoas. Só depois fui descobrir que ele
próprio tinha sido o responsável por mais de cem verbetes da
Enciclopédia, tendo sido um de seus principais colaboradores.
Ao longo de 2001, ainda
na UFF, meu contato com o MAM se estreitou quando passei a
cursar algumas disciplinas oferecidas na própria sala de exibição da Cinemateca pelo Hernani e por Lécio
Augusto Ramos – ambos pesquisadores da Cinédia e recém-contratados
como professores substitutos. Apesar da
luta contra o sono nas aulas dadas na sala escura às 9 da manhã,
pude assistir, em cópias 35 mm, raridades como Maior que o ódio (José Carlos Burle, 1951),
Vereda da salvação (Anselmo Duarte, 1965) ou A família do barulho (Julio Bressane, 1970), sem ter noção exata
do privilégio que estava desfrutando na ocasião.
Logo em seguida, através de prova de seleção, me
tornei monitor do Hernani na disciplina História do Cinema
Brasileiro, que voltou a ser dada no IACS (Instituto de Artes e
Comunicação Social), em Niterói, devido a reclamações da direção
do MAM quanto ao uso do auditório da Cinemateca para aulas da UFF. Naquela época ele
continuava ministrando também a disciplina optativa “Preservação
de filmes” e alguns alunos da cadeira, entre eles, Marina Meliande,
Filipe Bragança, Débora Butruce, Silvia Franchini, Ines Aisengart, Marco Dreer Buarque, entre outros, tinham sido
contratados para trabalhar na Cinemateca como estagiários do projeto
Censo Cinematográfico Brasileiro, patrocinado pela Petrobrás.
Muitas vezes, presenciei aulas do Hernani na cinemateca serem
interrompidas por um daquelas figuras vestidas de jalecos brancos,
máscaras e luvas que vinham com uma lata na mão tirar alguma
dúvida.
Mas em junho de 2002,
cerca de um ano após o início deste que foi o maior trabalho de
catalogação do patrimônio cinematográfico brasileiro já feito,
ocorreu o que viria a ser o momento mais dramático na história da
Cinemateca do MAM. Nos anos anteriores, o acervo de filmes tinha
crescido dramaticamente – tendo como marco o depósito de um grande
lote de cópias da Embrafilme, em 1991, após sua extinção pelo presidente Collor – enquanto suas condições
estruturais foram se deteriorando, a despeito de avanços como a
climatização dos arquivos por conta da instalação de um sistema
de ar-condicionado central para o prédio.
Sem o investimento
necessário em infra-estrutura ou principalmente em pessoal, as
condições de guarda do arquivo chegaram a um estado crítico. Desse
modo, numa atitude que refletia o desprestígio do setor na própria
instituição e sem seguir o ditado que advertia para “não jogar
fora a água da bacia com o bebê dentro”, a diretora do MAM
decidiu que o museu não se responsabilizaria mais pela guarda dos
filmes. Ela instituiu que todos os depositantes deveriam ser contatados
para retirar seus materiais do arquivo o quanto antes. Em suma,
começava o desmonte da Cinemateca – e com data marcada para
acabar. A diretora Maria Regina Nascimento e Brito tinha dado como
prazo até 31 de julho de 2002 para que todos os depositantes
retirassem suas matrizes da Cinemateca.
Embora somente em 2002
a “bomba” tenha estourado, ela já tinha sido armada alguns anos
antes. Num documento interno do MAM intitulado “Seria engraçado,
se não fosse trágico e verdadeiro”, dirigido à Direção do
Museu, e datado de meados dos anos 1990, já se alertava para a insensatez de um projeto de transferir
o acervo de filmes para depósitos em Bonsucesso da empresa
Metropolitan, firma especializada na guarda dos mais variados
produtos (sobretudo móveis), em troca de um pagamento mensal:
“Alguma coisa com os mesmos benefícios da omissão, só que sem o
sentimento de culpa”. O documento apontava ainda que a Cinemateca
do MAM tinha plenas condições de salvaguardar seu acervo, bastando
empenho para que as obras da reserva técnica fossem finalizadas e
fossem feitos os concertos e remanejamentos dos dutos de
ar-condicionado: “Com cerca de 15 mil reais o problema estaria
sanado”.
Como o dinheiro não
apareceu, em 2002 desapareceu também o sentimento de culpa e os
filmes, ao invés de transferidos, seriam despejados. Além da
atitude arbitrária e covarde da direção do MAM, a condução
desajeitada e apressada desse processo causou os veementes protestos.
A manifestação mais contundente, porém, foi liderada pelos alunos
do curso de cinema da UFF, em especial os que tinham cursado a
cadeira de Preservação de Filmes com Hernani, além dos
ex-estagiários do Censo. Os estudantes redigiram uma “carta aberta
contra o despejo da Cinemateca do MAM” e organizaram um “panelaço”
sob os pilotis do MAM, em 5 de junho de 2002, cujas imagens estão
registradas no curta-metragem Preservação das Imagens em Movimento
(Phillip Johnston, 2008).
Os jornais publicaram inúmeras matérias a respeito do acontecimento, levando o então Presidente do Conselho Deliberativo do MAM, o colecionador de artes Gilberto Chateaubriand, a escrever uma carta para o Jornal do Brasil (16 jun. 2001) acerca da polêmica. No texto, dizia que, por diversos motivos, entre eles o alarde pelo suposto perigo de contaminação do acervo de artes plásticas (grande parte do próprio Chateaubriand) pelo “vinagre” dos filmes através dos dutos de ar-condicionado, se decidiu “que a instituição não poderia mais manter em seus domínios o depósito de matrizes, sob o risco de ser, mais tarde, responsabilizada pelas eventuais perdas que poderão ocorrer desse patrimônio nacional”.
Apesar dos protestos da
classe, incluindo a criação de um abaixo assinado na internet que
reuniu milhares de assinaturas, o despejo continuou e muitos filmes
foram naturalmente encaminhados para a Cinemateca Brasileira, em São
Paulo, ou para a casa dos próprios produtores, como ocorreu com o
acervo do Canal 100, de Alexandre Niemeyer, ou com o acervo da
Caliban Filmes, do cineasta Silvio Tendler. A questão regional foi
invocada e numa guerra cariocas versus paulistas se clamou contra o
fato do Rio de Janeiro estar perdendo seu principal acervo
cinematográfico. Em meio ao debate, o prefeito César Maia, através
de seu secretário das culturas, Ricardo Macieira, lançou um de seus
factóides e anunciou com grande estardalhaço a futura construção
da “Cidade do Cinema”, no cais do porto, projeto jamais tirado do
papel, ao contrário da insegura Cidade do Samba e da megalomaníaca
Cidade da Música.
Além de outras opções
pouco prováveis – como o depósito da Labocine ou o futuro Museu
de Cinema, em Niterói (até hoje vazio e inconcluso) – uma
alternativa mais viável levantada foi o encaminhamento dos filmes
para o Arquivo Nacional, que já contava com um reduzido acervo
formado sobretudo por cinejornais estatais da antiga Agência
Nacional. A proposta foi encampada pela direção do Arquivo
Nacional, e acervos de peso como os da LC Barreto, Atlântida e R. F.
Farias foram encaminhados para seus depósitos. O setor filmográfico
da instituição subitamente se ampliou e os estagiários formados
na Cinemateca do MAM foram contratados temporariamente como os novos
técnicos de preservação do Arquivo Nacional. Diante dessa solução
e falando em nome da prefeitura em entrevista coletiva, o secretário
Ricardo Macieira prometeu investir R$ 3 milhões no Arquivo Nacional
(O Globo, 26 jun. 2002) – o que obviamente nunca foi feito. Quatro
anos depois o prefeito César Maia disse que esse compromisso nunca
foi um projeto, mas apenas uma idéia (O Globo, 27 ago. 2006). Hoje,
atingido seu limite, o Arquivo Nacional não está recebendo mais
filmes até controlar o acervo que já possui.
Eu entrei no quadro de funcionários da Cinemateca
justamente nesse período trágico. Em fins de 2002, Hernani me
convidou para um trabalho temporário previsto para durar cerca de
seis meses com a função de identificar os filmes não-identificados
que deveriam ser retirados. Ou seja, eu deveria abrir as latas e
estojos que não continham dado algum nos rótulos e etiquetas (ou pelo menos, dados
confiáveis ou completos) e examinar as películas na
mesa enroladeira para tentar determinar do que se tratava. Eu deveria
ter noções básicas sobre o manuseio de películas (que adquiri
ali, na prática) e conhecimento amplos sobre cinema brasileiro, pois
teria que reconhecer atores, cenários e cenas para identificar latas
que eram freqüentemente parte de algum longa metragem que eu deveria
juntar como um quebra-cabeças. Enfim, ia ajudar a jogar as últimas
pás de terra no enterro da Cinemateca.
Assumi meu posto de
“pesquisador” da Cinemateca em 1º de novembro de 2002. Na época,
Hernani tinha apenas dois assistentes no arquivo de filmes, Paulo e
Fernando, que o ajudavam a transportar as latas, separar os lotes que seriam enviados para outros arquivos e “soltar” os
filmes (isto é, afrouxar os rolos para liberar os gases). O montador
Gilberto Santeiro, que assumiu o cargo de curador em 2000, quando já
se delineava o futuro desmonte da Cinemateca, e Cadu, transferido do
Setor de Documentação, eram os responsáveis pela programação da
sala de projeção. Curiosamente, nesse mesmo conturbado período o
auditório passou por uma reforma e a Petrobrás patrocinou a compra
de novos e excelentes projetores italianos e a Rio Filme apoiou a
instalação do sistema de som Dolby. A sala ensaiou uma reabertura
com pequenos ciclos esporádicos de filmes do que restava do acervo,
ajudando à direção do MAM a negar que a Cinemateca tivesse
acabado, como grande parte da cidade passou a pensar...
Enquanto isso, numa
salinha com uma mesa enroladeira eu identificava rolos e mais rolos
de filmes e nos corredores da Cinemateca dezenas de sacos com filmes
eram organizados para serem transportados para o Arquivo Nacional ou
para a Cinemateca Brasileira. Já as latas que restavam (que não era
poucas) e que em grande parte estavam na sala 18 do bloco escola –
onde funcionou o estúdio de som da Cinemateca nos anos 1970 e que
fora improvisado como sala de guarda – começaram a ser
transportadas para o depósito subterrâneo que estava, então, em melhores
condições. Foi nas centenas idas e vindas com o carrinho carregado
de latas que eu aprendi o quão duro e cansativo pode ser trabalhar
numa Cinemateca. E mesmo no auge dos meus 22 anos, eu sofria para
acompanhar quem já estava “cascorado” nesse trabalho...
Entretanto, os
problemas começaram a aparecer não apenas na Cinemateca, mas também
no MAM. O equilíbrio nas contas do museu, historicamente
deficitárias, mas que, recentemente equilibradas, vinham sustentando efetivamente a direção no
cargo havia alguns anos, começou a dar mostras de desgaste, cujo
primeiro reflexo foi o atraso no pagamento do salário dos
funcionários (O Estado de S. Paulo, 7 fev. 2003). Os problemas
financeiros aliados à repercussão negativa pelo desmonte da
Cinemateca levaram à queda da diretoria do MAM no começo de 2003 - a instância decisória do museu, instituição privada desde sua origem, é seu Conselho Deliberativo. Vindo do mercado de seguros, Hélio Portocarrero assumiu como diretor
e Carlos Alberto Gouveia Chateaubriand, como vice-diretor.
A mudança na direção
botou um ponto final no processo de despejo – o acervo que ainda
permanecia na Cinemateca não precisava mais sair. Apesar da perda
substancial – e principalmente o efeito trágico para a imagem da
instituição – o acervo continuava significativo. Cerca de 70% das
cópias e 30% das matrizes anteriores ao processo de desmonte
permaneciam nas estantes. E continuavam demandando cuidado.
Por outro lado, o fundo
do poço parecia ainda mais fundo. Em meio à crise financeira da
instituição, os dois únicos funcionários que trabalhavam com
Hernani no arquivo de filmes acabaram demitidos (Paulo, por seu
contrato ser temporário, e Fernando, por manifestar claramente que
queria ir embora) e ninguém foi readmitido em seus postos. Eu, por
outro lado, fui contratado definitivamente após o período de seis
meses, mas deslocado para o Setor de Documentação, no lugar do
Giovani Simionato, um dos vários funcionários que tinham pedido demissão
durante as turbulências anteriores devido aos atrasos de salário e
à insensatez das chefias.
Ou seja, o arquivo de
filmes passava a ter somente um funcionário (o Hernani) e o Setor de
Documentação, o dobro: eu e Maurício Salles. Ao assumir minha
função me dei conta que não tinha sido apenas o arquivo de filmes
o prejudicado com o desmonte da Cinemateca. A ânsia por “abrir
espaço” e “jogar fora” tinha atingido também a biblioteca, a
hemeroteca e o arquivo de fotos e cartazes. Embora Hernani – que
tinha entrado no MAM justamente como Coordenador do Setor de
Documentação, em 1996 – tenha salvado o que pôde com o apoio
fundamental de Alice Gonzaga, da Cinédia, muito se perdeu. Até uma
ata original dos primeiros anos do Museu chegou a ser jogada no lixo
por engano, sendo resgatada por Dona Alice e depois encaminhada de
volta ao MAM. Além disso, numa estratégia de guerrilha, Hernani e
Cadu tinham guardado um tanto indiscriminadamente centenas de
documentos em caixas e mais caixas de papelão como forma de
escondê-los da fúria destruidora da diretoria do Museu.
Desse modo, a paisagem
que eu encontrei no Setor de Documentação foi de caixas e mais
caixas fechadas que mal se sabia o conteúdo. O clipping de imprensa
se acumulava dos três anos anteriores ajudando a criar um cenário
literalmente kafkaniano. O desprestígio da Cinemateca dentro do MAM
era tal que seu acervo documental não era mais gerenciado por ela,
mas pela Coordenadora do Setor de Documentação e Pesquisa do MAM,
Rosana Freitas, ex-assistente de Lúcia Lobo que assumiu o cargo após
sua saída.
Diante desse quadro, o
muito que se conseguiu fazer pela Cinemateca – por seu acervo de
filmes e de documentação correlata – foi graças ao grande
esforço de parte de seus cada vez mais escassos funcionários, e
também pela colaboração voluntária de muitos amigos.
Antes e depois da
tragédia de 2002, Hernani procurou desenvolver o que Ray Edmondson, em Audiovisual Archiving: Filosophy and Principles,
chamou de criação de uma “base de apoio”, uma estratégia
essencial para os arquivos audiovisuais. Atendendo a todos com
presteza e paciência, fazendo favores e cedendo informações e
dados, Hernani construiu um círculo de amigos – em torno de sua
pessoa, mas que ele deslocava para a Cinemateca – que retribuíram
esse esforço de diversas formas. Além disso, assim como o casal
Langlois e Mary Meerson no caso da Cinemateca Francesa, muitas
pessoas eram atraídas para a Cinemateca do MAM por conta da própria
figura do Hernani, o que acontecera antes também com o carismático
Cosme.
Obviamente, muitos
interesseiros também apareciam, e a Cinemateca sempre atraiu o que
eu chamava de “sanguessugas”, que só se aproximavam enquanto
poderiam obter algum benefício – fosse o privilégio de uma cabine
de projeção exclusiva (as moviolas estavam todas quebradas), o
empréstimo informal de um livro (quebrando a regra de consulta
apenas local) ou a cessão gratuita de uma cópia (sendo abatida a
principal fonte de renda do acervo). Quando passei a verificar a
situação do acervo documental, percebi que dezenas de coisas,
especialmente fitas de vídeos e livros, tinham sido emprestadas para
diversas pessoas – professores e estudantes, cineastas famosos ou
ex-funcionários da Cinemateca –, mas não tinham sido devolvidas.
O mais surpreendente é que entrei em contato com algumas dessas
pessoas solicitando a devolução dos mesmos e, ainda assim, muitos
não o fizeram. Tivemos que repor algumas vezes cópias em VHS de filmes
como Os óculos do vovô (dir. Francisco Santos, 1913) e livros como
História do Cinema Brasileiro (org. de Fernão Ramos, 1987) que foram
“extraviados”. Entretanto, como percebi depois, foi um risco
calculado colocado em prática por Hernani, que visava, acima de tudo,
a construção dessa “base de apoio” que se revelou essencial.
Se internamente a
Cinemateca passou a tentar juntar os cacos do que sobrara depois do
vendaval, o esforço de reconstrução da instituição, sobretudo
frente à opinião pública, teve que passar também pela
programação;
Em julho de 2003 a
Cinemateca voltou a manter uma programação regular em seu
auditório, com sessões de quinta a domingo. Os jornais reproduziram
manchetes como “Retomada da Cinemateca” ou “Cinemateca de volta
à ativa”, mas o público perdido não era fácil de ser
reconquistado (O Globo, 6 ago. 2003).
Nessas primeiras
semanas presenciei tanto uma sessão do clássico Casablanca (Michael
Curtiz, 1942) com uma surpreendentemente boa cópia 35 mm atrair oitenta
espectadores para o MAM, quanto uma sessão do filme noir brasileiro
Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952) ser cancelada
por falta de público - na verdade só havia um espectador, eu, mas
como era "de casa", não fui levado em conta...
Apesar das dificuldades
em não afetar veleidades internamente, uma boa saída encontrada foi
terceirizar a programação da sala, através de programadores que
tinham maior habilidade em atingir o(s) novos gosto(s) do público(s) e
dinamizar e ampliar a divulgação das sessões. Foram iniciadas
bem-sucedidas parcerias com cineclubes criados por professores e
alunos da UFF, como o Sala Escura, dedicado ao cinema
latino-americano, e o Tela Brasilis, focando exclusivamente o cinema
brasileiro. Ainda assim, algumas parcerias não chegaram a ser
concretizadas. Por falta de diplomacia, a mostra “Cinema Brasileiro – a vergonha de uma
nação” deixou de ser realizado na Cinemateca do MAM, sendo
exibida em parte no Cineclube Diablo (“só filme from hell”), no
Instituto de Arquitetos do Brasil, e no cineclube Malditos filmes
brasileiros, na Casa França-Brasil, até se transferir para São
Paulo e receber acolhida na Cinemateca Brasileira. A enorme
repercussão do evento realizado em dezembro de 2004 colaborou para
que seu organizador, Remier Lion, fosse então contratado como
programador da instituição.
Outra possibilidade de reconquistar o público foi
o ingresso no circuito de mostras e festivais. A participação da
Cinemateca do MAM no Festival do Rio 2003, sediando a retrospectiva
“Mário Monicelli, patrimônio do cinema”, deu início a esse
tipo de parceria, que depois se estendeu a diversas edições do Cine
Sul, Curta Cinema, É tudo verdade, entre outros.
Em 2004, a mostra
“Sci-Fi” na Cinemateca do MAM foi um dos hits da programação do
Festival do Rio, com a exibição de cópias 35 mm estrangeiras de
pérolas como Zardoz (idem, John Boorman, 1973), No mundo de 2020 (Soylent
Green, Richard Fleischer, 1973) e Westworld, onde ninguém tem alma
(Westworld, Michael Crichton, 1973). Eu me lembro da sessão de
Fahrenheit 451 (idem, François Truffaut, 1966) – que nunca foi lançado
em vídeo no Brasil e que na época ainda não estava disponível em
DVD – ter tido gente sentada no chão, pois os 180 lugares já
estavam ocupados... Era algo que havia muitos anos não acontecia na
Cinemateca!
Entretanto, o sucesso
muitas vezes era maléfico para a Cinemateca, pois mais pessoas
notavam suas graves deficiências, tornando ainda mais evidentes as
péssimas condições do banheiro do auditório, a falta de
funcionários para atender ao público e a total carência de segurança
do local à noite. Desse modo, muitas iniciativas de melhoria das
atividades esbarravam nas faltas de condições estruturais e o
exemplo seguinte reflete esse dilema. Para a mostra “Sci-Fi”,
decidimos organizar uma exposição temporária de cartazes de filmes
de ficção científica do acervo da Cinemateca no hall de entrada do
auditório. Após o final da última sessão em um dos dias da
mostra, quando o bilheteiro contratado pela organização do Festival
do Rio já tinha ido embora e minutos após a saída do público,
notei que o cartaz original, norte-americano, de 2001, uma odisséia no espaço havia
sido furtado! Aproveitando a falta de vigilância, alguém que estava
no cinema rapidamente tirou a moldura e levou o cartaz, que é
vendido pela internet por preços que variam entre 300 e 1.000
dólares. A segurança do MAM foi avisada, mas os dois únicos vigias
de uma firma terceirizada – que permaneciam trancados dentro da
entrada administrativa do museu – se eximiram de responsabilidade.
O mesmo ocorreu com a direção do museu, e a curadoria da Cinemateca
achou melhor não mais fazer esse tipo de exposição por “falta de
segurança” (ou melhor, falta de seguranças) e o caso foi
esquecido sem nenhuma providência ter sido tomada. Posteriormente,
voltou a se utilizar o hall da Cinemateca para exposições
temporárias, mas apenas de cópias de documentos ou fac-símile.
Continua...
Recomendado por Philip Johnsotn, cheguei a esta página esclacedora sobre o 'calvário' da Cinemateca do MAM. Texto importante e imprescindível para todos aqueles que se interessam pela preservação do audiovisual.
ResponderExcluirParabéns pelo escrito!
pois me parece que lá por Sao Paulo as coisas caminham em passo de tartaruga. Boa parte do acervo foi transferido do Rio p/SPP... e que fim levou este acervo, se a Cinemateca brasileira informa que a relação de filmes divulgada em seu site é para simples consulta e que os rolos não se encontram em seu acervo. E agora??? o que fazer ???
ResponderExcluirO acervo continua lá, "cão farejador".
ResponderExcluirno MAM ??? obgd pela informação !
ResponderExcluirtenho que mudar o perfil, pois ando farejando pouco...rsrsrs
ando atrás de uma película premiada pelo DIP em 1941
Alberto Santos
boas festas !
Não, o que foi do MAM para SP, continua na Cinemateca Brasileira.
ResponderExcluirRafael de Luna... água mole em pedra dura .....O filme que eu procurava, foi destruído em um incenio do DIP m 1944, mas não desisti. Encontrei-o, isto é, a matriz, de autoria de Isaac Rozemberg, datado de 1939 ... agora vou mandar telecinarr a película, de 16mm. Vc indica algum studio no Rio, além da LinkDigital e Shank ?
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