Esta reportagem foi publicada na revista In Camera, de abril de 2008 (p.34-35) e faz referência ao relatório intitulado The digital dilemma: Strategic Issues in Archiving and Accessing Digital Motion Picture Materials, que pode ser adquirido no site da Academy of Motion Picture arts and sciences. O texto faz referência também a um artigo publicado no New York Times, intitulado The Afterlife Is Expensive for Digital Movies (A vida após a morte é cara para os filmes digitais), que pode ser acessado no site do jornal. Apesar de mal-escrita, esta reportagem é interessante, por exemplo, por ter sido publicada no revista da Eastman Kodak Company, que recentemente abraçou a tecnologia digital. Nesse dilema que os conservadores apontam, a Kodak pode estar vendo a permanência de um restrito, mas longevo nicho de mercado para as películas, cuja indústria é dominada por essa empresa há décadas. Há uma outra tradução desse texto disponível no site da Kodak brasileira.
“O Dilema Digital” – Relatório da Academia aborda o futuro dos filmes atuais
(tradução de Rafael de Luna Freire)
Um flashback para 1913: um crítico de jornal perguntou à lendária atriz teatral Sarah Bernhardt porque ela estava atuando em filmes “populares” ao invés de se concentrar na interpretação nos palcos. A diva respondeu que ela atuava nos filmes para a posteridade. A triste realidade é que aproximadamente metade dos filmes produzidos nos Estados Unidos no primeiro século da indústria se perdeu para sempre.
No final dos anos 1970, Martin Scorsese fez o alerta de que o insubstituível patrimônio de uma importante forma de arte estava em risco. Sua persistência levou a significativos avanços nas práticas de restauração e conservação de filmes.
Nos anos 1990, Scorsese e outros diretores de ponta fundaram a The Film Foundation, que se tornou uma força significativa na criação de consciência e na arrecadação de fundos para a restauração e conservação de centenas de filmes clássicos [incluindo Limite, filme brasileiro de 1929, dirigido por Mário Peixoto]
Um artigo do New York Times de 23 de dezembro de 2007, escrito por Michael Cieply, colocou em perspectiva o valor da conservação adequada. Ele citava um relatório da Global Media Intelligence que afirmava que aproximadamente um terço dos 36 bilhões de dólares dos rendimentos ganhos pelos estúdios de Hollywood vinha de suas coleções.
Outro passo gigantesco foi dado novembro passado quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Academy of Motion Pictures Arts and Sciences) lançou um amplo relatório intitulado “O Dilema Digital” com o subtítulo “Questões estratégicas na conservação e acesso de materiais cinematográficos digitais”. O relatório de 75 páginas teve como co-autores duas autoridades respeitadas: Andy Maltz, diretor do Conselho de Ciência e Tecnologia da Academia, e o conservador Milt Shefter.
Uma frase no prefácio anuncia a missão: “Mesmo alguns dos artistas que são mais evangélicos a respeito do novo mundo do cinema digital algumas vezes parecem não ter explorado completamente a questão do que acontece com uma produção digital depois que ela deixa os cinemas e começa sua vida (se tudo correr bem) como um recurso para exploração em longo prazo do estúdio”.
O estudo de mais de um ano de duração foi lançado no inverno de 2005, após Phil Feiner, presidente do Comitê de Conservação Digital da Academia, propor uma conferência com conservadores de estúdios e especialistas em tecnologia, assim como seus equivalentes em outras organizações, incluindo agências governamentais, instituições de saúde, universidades e astrônomos.
“Esta é a primeira vez que executivos de tecnologia e conservadores dos estúdios e outras instituições públicas semelhantes, como a Biblioteca do Congresso, arquivos da UCLA [University of California] e a Association of Moving Image Archivists, se encontram para discutir a questão da preservação”,disse Shefter.
"A Academia não é uma organização de reivindicação”, acrescenta Maltz. “Nós temos pessoas que conhecem e se importam com a preservação reunidas para discutir os temas e determinar as questões que precisam ser levantas e respondidas. O relatório é um sumário de nossas descobertas. Mais de 70 especialistas foram entrevistados em seguida”.
Apenas para colocar em perspectiva esse comentário, em 1999 cientistas da NASA descobriram que eles eram incapazes de ler arquivos digitais descrevendo imagens que a expedição espacial Viking tinha enviado para a Terra em 1975, por que a informação estava num formato obsoleto.
Processo barato
Shefter observa que todos os estúdios de Hollywood tem arquivado seus longas-metragens, incluindo o negativo original e materiais intermediários, em película de poliéster estável preto-e-branco com separação YCM (amarelo, ciano e magenta), em ambientes com umidade e temperatura controladas, nos últimos 40 anos, ou ainda mais em alguns casos.
“Eu já calculei que um longa-metragem gera em média 300 estojos de negativos, interpositivos, filmes em YCM, negativos B e planos não utilizados, além de roteiros e notas”, diz Shefter. “Os YCMs podem ser usado para reproduzir o negativo original sem comprometer as imagens. É um processo barato em comparação com os custos da preservação digital”.
Um artigo recente publicado pelo DGA Quarterly [1] citava Feiner que observava que quando Superman returns [Superman, o retorno, dir. Bryan Singer] foi produzido em formato digital em 2006, ele gerou aproximadamente 200 Terabytes de informação. Um único terabyte equivale a 1.000 bilhões de bytes de informação. [2]
Feiner perguntou: “O que você faz com toda essa informação?”
Shefter nota que I Love Lucy e outros programas produzidos pelos estúdios Desilu há cinqüenta anos ainda estão sendo comercializados com a TV porque foram adequadamente conservados.
“Eu trabalhei nos laboratórios da CFI durante anos”, diz Shefter. “Nós tínhamos os filmes dos programas da Desilu guardados em nossos arquivos. Os programas originais foram produzidos em película preto-e-branco e depois em negativos coloridos. Desilu conservou os filmes de seus programas de televisão nos arquivos do laboratório sem perceber que eles se tornariam valiosos. Alguns desses programas ainda estão sendo negociados com as televisões, gerando lucros.”
O relatório “O Dilema Digital” foca nos filmes dos estúdios de Hollywood. Ele compara ambas as praticas e custos para conservação digital e fotoquímica. O relatório cita o entendimento geral que por causa da degradação dos sinais e da obsolescência dos formatos e padrões, a mídia digital é muito mais volátil do que a película. Há um consenso de que os arquivos digitais devem realizar migrações a cada quatro ou cinco anos para garantir sua acessibilidade.
O relatório da Academia relata que o custo anual para a conservação de uma matriz digital de um longa-metragem gira em torno de US$ 12.514, comparado com aproximadamente US$ 1.059 para a película. O relatório afirma que o custo para conservação de todos os elementos relevantes de um longa-metragem produzido em formato digital é de US$ 208.569 por ano. O relatório também diz que a mídia digital em disco rígido pode “congelar” em meros dois anos e que os arquivos em DVD vão eventualmente se deteriorar – espera-se que cerca de metade deles não sobrevivam mais que 15 anos.
O relatório também foca no uso de tecnologia de intermediação digital (DI – digitial intermediate) para a feitura de matrizes de longas-metragens produzidos tanto em película quanto em formato digital. Essas matrizes são utilizadas para produzir cópias de lançamento no cinema tanto digitais quanto em 35 mm.
Mais de 20 estúdios de pós-produção só nos EUA estão atualmente oferecendo serviços DI hoje. Não existem estatísticas oficiais documentando a percentagem de longas-metragens que tem matrizes por intermediação digital. As estimativas variam de70% a 80%. Após a edição offline, o negativo montado é digitalizado em resolução que varia de HD até 2K e 4K, dependendo do produtor e do orçamento. Os longas-metragens que são lançados nos cinemas são transferidos para película 35 mm, que pode se tornar o registro de arquivo do corte final.
Botando o dedo na ferida
“O que vai acontecer daqui a 20, 30 ou 50 anos, quando alguém quiser relançar uma versão do diretor de um filme, incluindo ainda cenas excluídas?”, pergunta Shefter.
É uma pergunta retórica. Ele observa que se os donos dos conteúdos não se comprometerem a realizar as migrações das matrizes DI e dos arquivos digitais não utilizados na montagem final para novos formatos e padrões a cada quatro ou cinco anos, há chances de que eles se percam para sempre.
“É importante para os produtores entenderem que as matrizes digitais que estão sendo geradas hoje não são um suporte de preservação que você possa tirar da lata daqui a dez anos”, diz Shefter. “Uma alternativa é passar para a película e fazer as separações em YCM. Entretanto, o único registro que está sendo preservado é o que quer esteja no DI.”
Mesmo que relatório “O Dilema Digital” foque nos filmes dos grandes estúdios lançados nos cinemas, ele gera questões sobre os shows de televisão produzidos em película que depois são pós-produzidos em formato HD. Maltz nota que os produtores podem conservar o negativo original e o negativo montado, mas a matriz em HD levanta as mesmas preocupações que as matrizes DI provocam na indústria de longas-metragens. Os arquivos digitais em HD irão se deteriorar? Os programas compatíveis necessários para ler e remasterizar os arquivos estarão disponíveis no futuro? O público de amanhã terá aparelhos de televisão com resolução 2K ou 4K em suas casas?
"O relatório parece ter colocado o dedo na ferida”, conclui Maltz. “Nosso objetivo foi fazer as pessoas de dentro e de fora da indústria tomarem consciência dessa importante questão”.
A alternativa para a busca de soluções está na assustadora conclusão no artigo de Cieply no New York Times. Ele prevê que o público do futuro poderá assistir aos filmes com Wallace Beery muito tempo depois que filmes contemporâneos produzidos ou conservados em formato digital já tenham se perdido. Nota: Berry estrelou filmes em Hollywood de 1913 até 1949.
Notas:
1 - DGA quarterly é a revista do Director's Guild of America. Eles publicaram a excelente reortagem sobre sobre preservação cinematográfica na edição volume 3, número 1, de 2007, que pode ser vista aqui.
2 - 1 MB é igual a 1.000.000 de bytes. 1 G é igual a 1.000.000.000 de bytes. 1 TB é igual a 1.000.000.000.000 bytes. Ou seja: um Tera equivale a mil Gigas ou a um milhão de Megabytes. São necessários mais de 200 mil DVDs ou 40 discos Blu-Ray juntos para armazenar um Terabyte de informação. E isso sem falar em Petabytes (que equivalem a mil Teras, ou um milhão de Gigas)...