domingo, 29 de dezembro de 2013

Preservar os cinemas

Quando discutimos preservação e restauração, tradicionalmente falamos do filme como objeto material. Entretanto, o cinema também pode ser definido como um artefato conceitual - algo que só se concretiza com a projeção do filme, com o espetáculo de luzes e sombras. O cinema menos como um objeto e mais um evento.
Nesse sentido, algo que vem ganhando força é a necessidade de preservar o espaço cinematográfico, com as especificidades tradicionalmente associadas à sessão cinematográfica (nos diferentes momentos históricos), e com as características intrínsecas aos distintos contextos locais. Por mais que o cinema tenha surgido "cosmopolita", ver um filme no Brasil não era igual a ver um filme em Paris, Hong Kong, Nairobi ou Los Angeles. E ver um filme na Cinelândia era diferente de ver um filme em Vaz Lobo, que era diferente de ver um filme em Juazeiro do Norte.
Justamente por hoje os globalizados multiplexes serem cada vez mais padronizados - uma sala de cinema nova é como um McDonald's, praticamente igual em todo o mundo -, há uma atenção redobrada em resgatar antigas salas de cinema fechadas, abandonadas ou ameaçadas. Esse movimento se alia a esforços em diversas cidades para revitalizar regiões degradadas nos últimos anos (especialmente os bairros centrais) ou conter a especulação imobiliária que consumiu salas de cinema que geralmente ocupavam generosos terrenos em ruas de grande circulação e fácil acesso.
O Cinema São Luiz em Recife
Se essa tendência tem ganhado força em países como os Estados Unidos ou França, que tiveram circuitos exibidores pujantes em diferentes épocas do século XX, no Brasil há alguns esforços que ainda encontram-se isolados. No exterior, é notável como associações de moradores conseguem juntar forças para evitar a destruição ou permitir a reabertura de salas de cinema que são muito caras àquelas comunidades. O cinema tem uma carga afetiva enorme por se constituir num espaço de encontro, de convivência, de experiência coletiva de emoções.
Cine São José
No Brasil há diversas iniciativas que merecem registro. O caso do Cinema São Luiz, em Recife, orgulha os pernambucanos. A anunciada restauração do homônimo Cine São Luiz em Fortaleza é outra boa notícia. Além desses "palácios de cinema" nordestinos, uma série de cinemas menores e mais modestos, mas nem por isso menos importantes para seus moradores, como o Cine São José, em Bela Vista (MS). Ou o lindo Cine-Teatro Guarany, em Triunfo (PE).
Cine-Theatro Guarany
Mas muitos mais são os casos de cinemas que não conseguem evitar suas mortes anunciadas. Relatei aqui o caso do Cine Eldorado, em Juazeiro do Norte (CE).
Há lutas que ainda estão sendo travadas, como a do Cinema Vaz Lobo, no Rio de Janeiro. Ou do Cine Excelsior, em Juiz de Fora (MG).
Há casos que merecem atenção, como o do lindo e antiquíssimo Cinema Íris, na Rua da Carioca, patrimônio incalculável para o cinema brasileiro, mas que está sendo ameaçado, como os prédios vizinhos, pela covarde e avassaladora "gentrificação" do Rio de Janeiro.
A parede onde ficava a tela do Cine Palácio
Com a maior conscientização da importância desses espaços, a ação dos empresários é mais dissimulada, como ocorreu com o igualmente importantíssimo Cinema Palácio, também no centro do Rio. Um banco comprou praticamente todo o quarteirão onde ele se localizava (esquinas da Rua do Passeio e Rua das Marrecas) e está erguendo um enorme empreendimento que incluirá um teatro cuja entrada será a do Cinema Palácio. Entretanto, do cinema só restará a fachada (como no Cinema Vitória, fachada para a Livraria Cultura). Mas a fachada é só o que a maioria das pessoas vê - e esconde o que está por dentro. Nada mais falso e significativo do que a história do Cinema Palácio ironicamente ilustrar os tapumes que cercam o edifício cuja essência está sendo literalmente colocada abaixo.
Ali ao lado, um destino pior foi reservado ao Cinema Plaza, derrubado sem o fato merecer uma notinha sequer nos jornais.
Esse texto tem como motivação a discussão que tenho levantado em meu outro blog, sobre as salas de cinema de Niterói. A cidade vizinha ao Rio de Janeiro chegou a ter duas dezenas de salas de cinema, mas hoje conta apenas com dois multiplexes no centro da cidade. Um de seus cinemas mais queridos ainda de pé foi comprado pela Universidade Federal Fluminense ao ser ameaçado de demolição.
Entretanto, já que ele vai continuar de pé, o debate é o que será feito do prédio. A população precisa se mobilizar para poder influir nos rumos que serão dados ao Cinema Icaraí. Afinal, vamos continuar preservando apenas a fachada dos cinemas? Isto é, vamos continuar com essa preservação de fachada?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O último Diorama de Daguerre

A história do que se convencionou chamar de "pré-cinema" é fascinante. Ela nos leva, inclusive, a questionar esse nome para descrever as centenas de práticas, inventos, atrações, diversões e meios de comunicação que antecederam a invenção do cinema e que mantinham alguma relação com ele, através do uso de luzes, projeções, telas, ilusões de movimento etc.
Se a fotografia é considerada um dos principais precursores do cinema, um dos principais inventores por trás dessa criação, o francês Louis Daguerre (1787-1851), é menos conhecido por uma outra invenção, talvez tão popular e engenhosa quanto o seu daguerreótipo, que é o Diorama.
O nome Diorama assemelha-se a Panorama, revelando sua conexão com essa diversão. Antes da palavra se popularizar como sinônimo de vista ou paisagem, ela foi criada para batizar uma invenção do irlandês Robert Barker (1739-1806): uma grande pintura circular que ocupava uma rotunda e permitia que os visitantes (após pagarem um ingresso) ingressassem e, imersos nessa imagem que ocupava 360 graus de sua visão, pudessem sentir-se viajando sem sair do lugar, conhecendo outros lugares e tempos - tal qual o cinema faria posteriormente.
Panorama do Tirol, em Innsbruck (Áustria), que visitei em abril de 2013. Um dos poucos existentes em exposição.
 Como o Panorama, o Diorama também era uma pintura de grandes dimensões e profusão de detalhes que parecia real, embora não fosse circular. A novidade estava nos efeitos causados pela mudança na origem da iluminação, que causava impressões variadas, fosse de anoitecer ou amanhecer, ou mesmo de movimento de personagens. Através desses efeitos, a pintura parecia dotada de vida, adicionado um efeito temporal àquelas imagens que de tão reais pareciam vivas, diferente da imobilidade do panorama cujo realismo estático às vezes causava uma impressão contrária (de paralisia, morte).
Como atrações caras, de grandes dimensões e montagem trabalhosa, poucos Dioramas - assim como os Panoramas - sobreviveram. Geralmente as rotundas onde eles eram montados tinham que trocar frequentemente de programa (tal como aconteceria com os cinemas) para continuar a atrair os espectadores.
Entretanto, um único Diorama de Daguerre sobreviveu e está passando por uma longa e trabalhosa restauração. Realizado para a igreja da cidade de Bry-Sur-Marne em 1842, apesar de considerado um monumento histórico desde 1913, ele passou por maus bocados ao longo do século XX. Sua restauração vai permitir que possamos finalmente ver um exemplo de uma das mais importantes formas de entretenimento do século XIX.
Os dioramas foram tão populares que, como os panoramas, seu nome passou a designar várias outras coisas, como, por exemplo, painéis pintados com estátuas à frente, isto é, uma mistura de pinturas bidimensionais com objetos tridimensionais, para demonstrar determinado cenário em determinada época. Muito comum até hoje em museus - servem para mostrar, por exemplo, como era a vida na Era Jurássica - passaram a ser comumente conhecidos também como dioramas.
Para saber mais sobre o Diorama de Bry-Sur-Marne, veja essas reportagens (link e link).

Efeito de dia no diorama iluminado pela frente
Efeito noturno no panorama quando iluminado por trás