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terça-feira, 26 de março de 2013

contribuição para a história da tecnologia de projeção da imagem em movimento

Um estudo precioso foi publicado no último "Informativo do Arquivo Histórico de São Paulo", assinado pelo pesquisador Ricardo Mendes e disponível na internet. Este é o terceiro informativo do AHSP dedicado ao cinema e no primeiro deles já era destacada a importância de outro tipo de documentação e de arquivo, pouco consultada pelos pesquisadores, para o estudo do cinema no Brasil:


Não obstante a existência de importantes instituições que preservam a história do cinema brasileiro – a exemplo da Cinemateca Brasileira sediada em São Paulo e da Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro – outros órgãos também conservam em seus acervos referências relevantes a respeito do tema. E dentre eles, destacamos o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, uma vez que na sua vasta documentação podemos encontrar, por exemplo, a antiga legislação municipal pertinente ao assunto, bem como o registro de diversos momentos em que houve uma interface do poder constituído com os empresários responsáveis pelos primeiros espetáculos cinematográficos na cidade.

No caso específico da pesquisa sobre a recepção do cinema em nosso país - abordando a arquitetura das salas de cinema, a relação do público com os filmes, as práticas dos exibidores e distribuidores etc. -, é fundamental a existência de uma rede de pesquisadores e uma ampla gama de estudos que possam acessar os mais diferentes tipos de documentação para estudar as características muitas vezes particulares de contextos estaduais e mesmo municipais. O cinema silencioso, principalmente, demanda esse tipo de atenção devido à menor padronização dos métodos e práticos que se afirmaria sobretudo a partir da chegada do cinema sonoro.

O estudo de Ricardo Mendes é louvável, entre outros motivos, pela atenção à pouca estudada questão da tecnologia de projeção, abordando com riqueza de detalhes a coexistência, nos cinemas de São Paulo, do sistema de projeção "direta" (com o projetor posicionado frontalmente à tela) e "por transparência" (com o projetor localizado atrás da tela).

Como o autor aponta, há muitas coisas envolvidas na adoção de um sistema ou de outro: o tipo de material empregado na tela, a necessidade de lentes objetivas específicas para a distância focal, a necessidade de inversão do filme já que a retroprojeção deixa a imagem "espelhada", a arquitetura das salas etc.

Um aspecto fundamental é, como aponta Mendes, o fato de serem comuns nas cidades brasileiras os "lotes estreitos e compridos", com a arquitetura típica dos sobrados de dois ou três andares. A utilização desses espaços para a projeção cinematográfica resultava, no caso da projeção direta, numa longa distância entre o projetor e a tela, o que possivelmente favoreceria a adoação da retroprojeção. Como descrevo em meu livro "Cinematographo em Nictheroy", o Cinema Colyseu, inaugurado nos anos 1920, tinha quase 3 mil lugares dispostos em um sobrado estreitíssimo do século XIX. Por fotos da época, é possível afirmar que sua arquitetura e a disposição dos assentos do público certamente inviabilizava a projeção frontal.  Não à toa, o Colyseu fechou com a chegada do cinema sonoro. Entre outros motivos, é possível assinalar que os filmes falados não permitiam a inversão do filme (já que a banda sonora, no caso do som ótico, ficava sempre à esquerda da película) e que os altofalantes ocuparam a parte de trás das telas. O cinema niteroiense teve que ser reformado e adotar a projeção frontal ao ser reinaugurado como Cinema Rio Branco em 1940.

A questão do sistema de projeção, como Mendes aponta, leva ainda à discussão da "natureza da fonte luminosa" - e, acrescento, da própria configuração do projetor. O surgimento dos palácios de cinema com mais de um ou dois mil lugares nos anos 1920 vai demandar o aumento da potência luminosa dos projetores para a projeção frontal. Esse aumento, porém, resultava num maior aquecimento da lâmpada, o que motivou passagem do obturador, geralmente localizado na frente da objetiva, para dentro do corpo do projetor, entre a fonte luminosa e o filme. Assim, o giro das hélices do obturador também serviria para amenizar o calor emitido pela lâmpada na direção da película de nitrato, altamente combustivel.

Por fim, que o trabalho de Ricardo Mendes no AHSP incentive outros estudos.



 


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Existe uma velocidade "correta" do cinema silencioso?

Qual era a velocidade de filmagem e projeção dos filmes silenciosos? Isto é, quantos fotogramas ou qual o comprimento de filme, medido em metros ou pés, atravessava(m) a lente da câmera ou do projetor a cada segundo ou minuto? A resposta está na ponta da língua da maioria: 16 fps (fotogramas por segundo).

Mas sabemos, porém, que a maior parte dos filmes silenciosos era filmada com câmeras movidas à manivela e também exibidos, na maior parte dos cinemas, em projetores igualmente postos em funcionamento manualmente. Esse fato fazia com que a velocidade obviamente variasse, sendo necessário que para a reprodução do filme não fosse mais lenta ou mais rápida do que era pretendido pelo realizador ou produtor, a velocidade da câmera fosse a mesma do projetor.

As primeiras câmeras produzidas pelos irmãos Lumière (que funcionavam também como projetores) rodavam 8 fotogramas a cada volta da manivela. Logo, os cinegrafistas consolidaram a prática de calcular duas voltas de manivela por segundo, equivalendo ao transporte pelo equipamento de 16 fotogramas. Daí viria a “velocidade padrão” de 16 fotogramas por segundo do cinema silencioso.

Essa velocidade teria permanecida como usual até o final dos anos 1920, quando o cinema sonoro impõs a rigorosa padronização da velocidade. A alteração da velocidade na gravação ou reprodução do som provoca uma distorção muito maior e mais perceptível da que ocorre com as imagens em movimento. Assim, o advento do som obrigou o uso de câmeras e projetores movidos a eletricidade cuja velocidade fosse estável e inalterável, sendo ela estabelecida em 24 fps, mantida até hoje.

Entretanto, já em 1955 o curador da George Eastman House, James Card, escreveu um artigo no qual criticava o mito de que teria existido uma velocidade padrão do cinema silencioso de 16 fps, equivalente à duração de cerca de 16 minutos e 40 segundos por rolo de filme de 1000 pés ou 300 metros – o que chamamos atualmente de rolo simples de filmes 35 mm. Esta projeção era muito mais lenta do que se fosse feita em 24 fps, que resultava na exibição de um rolo em 11 minutos e 6 2/3 de segundos.

Entretanto, Card apontava que não existia necessariamente um padrão de velocidade ao longo de todo o cinema silencioso. Cada cinegrafista "manivelava" mais ou menos rápido, dependendo, por exemplo, do gênero de filme (as comédias deviam ser mais ágeis e rápidas do que os melodramas), assim como os projecionistas aceleravam ou diminuíam a velocidade de projeção conforme o agrado da platéia. É verdade, porém, que muitos donos de salas de cinema eram criticados por projetarem mais rápido os filmes para que a duração das sessões fosse menor e, logo, para que fosse possível realizar mais sessões ao longo do dia.

A partir da velocidade indicada nas partituras que acompanhavam os filmes silenciosos indicando a música que deveria ser tocada pelas orquestras (as cue sheets), Card revelava que de uma lista de filmes norte-americanos realizados entre 1916 e 1928, nenhum deles tinha a indicação de projeção a 16 fps, tendo alguns a recomendação de velocidade superior até a 24 fps.

Em 1980, o documentarista e restaurador Kevin Brownlow publicou um artigo no qual confirmava essa indicação de que não havia uma padronização da velocidade dos filmes silenciosos, mas que ela variava conforme o cinegrafista, diretor, país de produção, gênero ou companhia produtora, podendo ser, por exemplo, de 18 fps, 20 fps ou 22 fps. Brownlow confirmava ainda como era prejudicial para muitos filmes silenciosos de ação ou aventura serem projetados para as platéias atuais a 16 fps, tornando-o bem mais monótonos e lentos do que originalmente o eram, da mesma forma que melodramas e dramas muitas vezes ficavam excessivamente acelerados em 24 fps. O consenso era de que quanto mais próximo do final dos anos 1930, maior era a velocidade de projeção, às vezes ultrapassando a “velocidade do som”, sendo talvez mais recomendado exibir filmes dos anos 1920 em 24 fps do que em 16 fps.

No Brasil, porém, permanece difundida a crença de que a velocidade de todo e qualquer filme silencioso é 16 fps, embora seja talvez mais correto dizer que até 1910 a velocidade mais comum era algo em torno de 16-18 fps, de 1910 a 1920 entre 18-20 fps, e na década de 1920 se consolidando entre 20-24 fps, embora não haja regra definida.

Para comprovar a ausência de uma velocidade padrão, transcrevo abaixo apenas duas indicações da variabilidade da velocidade na exibição de filmes no Brasil durante o período silencioso.

No excelente livro de Alice Dubina Trusz é citado uma reclamação sobre uma sessão de cinema no jornal gaúcho O independente, de 3 de março de 1901, na qual o jornalista critica a “morosidade nas execuções, que devem ser mais rápidas, a fim de não fatigar o espectador” (TRUSZ, 2010, p. 229). Embora haja no mesmo livro várias reclamações sobre a demora nos intervalos para a troca dos rolos, esse trecho parece se referir claramente à lenta velocidade de projeção dos filmes, estratégia do exibidor ambulante possivelmente decorrente de haver poucos títulos (talvez inéditos) para compor a sessão ou para valorizar um filme em particular alongando sua exibição.

Isso mostra claramente como a velocidade de projeção – assim como o acompanhamento sonoro – fazia parte do processo de “edição criativa” do exibidor no cinema dos primeiros tempos, cujas ações eram e podiam ser alteradas conforme o gosto e a exigência da platéia, como vem mostrando o trabalho do pesquisador Charles Musser.

O segundo exemplo é o anúncio da exibição em Petrópolis (RJ) do film d’art francês Os mistérios de Paris (Les mystères de Paris [dir. Albert Capellani, 1912]) no jornal Cinema=Jornal em junho de 1912. Diferentemente de vários outros anúncios da época que indicavam apenas a metragem dos filmes e o número e partes ou atos, essa publicidade indicava a metragem (1600 metros) e o tempo de duração da sessão (1 hora e 20 minutos), consistindo num filme bastante longo para a época, quando ainda não estava consolidado o formato de longa-metragem.

Ora, para um filme de 1600 metros ser exibido em 1 hora e 20 minutos a velocidade de projeção devia ser de pouco mais de 18 fps. Ou seja, mais próximo de 20 fps do que do supostamente padrão 16 fps (conferir tabela de conversão em USAI, 2000)

Como sempre, a realidade do cinema silencioso é muito mais complexa do que se tenta frequentemente simplificar. E o campo de pesquisas sobre a história do cinema no Brasil ainda tem muito a ser explorado.


Referências:

BROWNLOW, Kevin. “Silent Films: What Was the Right Speed” Sight and Sound, verão, 1980. Republicado em: ELSAESSER, Thomas (ed.). Early Cinema: Space, Frame and Narrative. Londres: BFI, 1990.

CARD, James. Silent Film Speed. Image: Journal of Photography of the George Eastman House, v. 4, n. 7, out. 1955.

Cinema=Jornal. Petrópolis, v. 3, n. 69, 16 jun. 1912 (Fundação Biblioteca Nacional, RJ).

TRUSZ, Alice Dubina Trusz. Entre lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre (1861-1908). São Paulo: Ecofalante, 2010.

USAI, Paolo Cherchi. Silent Cinema: An Introduction. Londres: BFI, 2000.