quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A Lei de Acesso à Informação e a Cinemateca Brasileira

Estão abertas as inscrições para o edital de Restauro e Digitalização de Conteúdos Audiovisuais do Governo Federal. No momento atual, os recursos destinados a esse edital soam como uma grande oportunidade para a preservação audiovisual.
Dentre as exigências do edital, consta obviamente um laudo técnico sobre as condições físicas dos materiais da obra a ser restaurada ou digitalizada. Aqui, são necessários dois passos: 1 - pesquisar nos acervos os materiais existentes de uma obra (negativo, cópias etc.), 2 - avaliar o estado de conservação de cada um dos materiais.
Os arquivos de filmes tradicionalmente tem dificuldade de lidar com as demandas de informações, quer sobre os materiais existentes, quer sobre seu estado de conservação, sobretudo na rapidez geralmente demandada pelos consulentes. Isso não é de hoje. A novidade, porém, é que a Cinemateca Brasileira, instituição pública federal gerida por uma Organização Social, enviou aos candidatos ao edital um documento com esclarecimentos a respeito das exigências dos editais em que consta uma tabela de preços que a instituição irá cobrar por diferentes serviços.
Entre eles, "Pesquisa de materiais por obra", no valor de 500 reais por obra. Isto é, se você é um pesquisador ou mesmo detentor de direitos de uma obra (seu diretor, produtor, herdeiro etc), vai ter que pagar para saber se a Cinemateca Brasileira tem algum material da sua obra e quais são.
Além disso, cobra também, no valor de 1.200 reais por obra, por "Análise de material", isto é, pelas informações necessárias para preencher o laudo técnico obrigatório para concorrer no edital.
Essas eram informações que os arquivos de filmes no Brasil, privados ou públicos, podiam demorar ou não fornecer adequadamente, mas, que eu lembre, sempre disponibilizaram de graça, pelo menos para os detentores dos diretos ou seus representantes.
A surpresa é maior pelo fato da Cinemateca Brasileira ser o órgão público federal responsável pela preservação do cinema brasileiro. Assim, mesmo eu não sendo advogado, me parece que essa cobrança se choca diretamente com a Lei de Acesso à Informação, regulamentada pelo Decreto 7.724/2012, um dos grandes avanços da nossa legislação no sentido de reconhecer o direto de todo cidadão a informações dos órgãos públicos.
Numa página na internet do próprio Governo Federal, encontramos os principais aspectos da lei:

• Acesso é a regra, o sigilo, a exceção (divulgação máxima)
• Requerente não precisa dizer por que e para que deseja a informação (não exigência de motivação)
• Hipóteses de sigilo são limitadas e legalmente estabelecidas (limitação de exceções)
• Fornecimento gratuito de informação, salvo custo de reprodução (gratuidade da informação)
• Divulgação proativa de informações de interesse coletivo  e geral (transparência ativa)
• Criação de procedimentos e prazos que facilitam o acesso à informação (transparência passiva)

O artigo 4º do Decreto tem a seguinte redação: "A busca e o fornecimento da informação são gratuitos, ressalvada a cobrança do valor referente ao custo dos serviços e dos materiais utilizados, tais como reprodução de documentos, mídias digitais e postagem.
Parágrafo único.  Está isento de ressarcir os custos dos serviços e dos materiais utilizados aquele cuja situação econômica não lhe permita fazê-lo sem prejuízo do sustento próprio ou da família, declarada nos termos da Lei no 7.115, de 29 de agosto de 1983"

Alguém pode vir dizer que não é bem assim, que as cinematecas não podem informar ao público todos os filmes que elas tem, que nunca foi assim etc., baseando-se na antiga visão das cinematecas personalistas (a Cinemateca Francesa de Langlois, por exemplo) como um templo em que um guardião detinha todos os seus segredos e zelava cuidadosamente por eles. Por mais romântica que ela possa soar, essa visão é claramente elitista, privilegiando, como sempre, aqueles que tinham acesso próximo aos guardiões, desprezando o princípio da impessoalidade.

Esse tempo já passou. Uma das maiores e mais importantes cinematecas do mundo, o BFI National Archive (arquivo de filmes do Reino Unido), há alguns anos disponibilizou na internet, para acesso gratuito e público, uma base de dados de todos os materiais de seus arquivos. Veja aqui: http://collections-search.bfi.org.uk/web/search/simple

Se você pesquisar, por exemplo, por Goldfinger (título em português "007 contra Goldfinger", de 1964, com Sean Connery), você tem acesso a informações não apenas sobre materiais correlatos (artigos, fotos, cartazes), como aos materiais fílmicos dessa obra que o BFI possui - as mesmas informações pelas quais a Cinemateca Brasileira cobra 500 reais.

Para provar que eu não estou mentindo, essas são as informações que a base de dados retornou sobre um dos mais famosos filmes do personagem James Bond:

Accessible materials to view (1)

35mm Colour Positive - CTA - Combined - Stock date: 1995 - - C-1559754
 Viewing - Film print can be requested for access (servicing required)

Video materials (1)

  VHS cassette - Video - PAL - - C-590983
          Status pending - Material requires inspection to determine preservation or access status

Film materials (1)

  35mm Colour Positive - CTA - Combined - Stock date: 1995 - - C-1559754
          Viewing - Film print can be requested for access (servicing required)


A ideia por trás dessa decisão do BFI é que os cidadãos tem direito de saber o que as instituições sustentadas pelo dinheiro dos seus impostos guardam em seus arquivos. Qualquer cidadão.
Para ver outro exemplo, não precisamos ir tão longe - o Arquivo Nacional, localizado no Rio de Janeiro, possui em sua base de dados informações sobre todos os seus fundos (é uma instituição arquivísticas) como "Domingos de Oliveira" ou "Roberto Farias" etc. Não há na internet informações sobre cada um dos materiais pertencentes a esses fundos, mas sob demanda, a instituição fornece essas informações gratuitamente, a qualquer consulente, como já comprovei diversas vezes pessoalmente. Repito: esse mesmo tipo de serviço, em São Paulo, numa outra instituição federal, está custando 500 reais.
Portanto, tenho a impressão que a Cinemateca Brasileira está agindo em claro desacordo com a Lei de Acesso à Informação, cobrando por informações que deveriam ser ampla, gratuita e proativamente fornecidas pela instituição, de acordo com a legislação em vigor. 
Ou sou eu estão sendo muito implicante, para variar, e esse é só um esquema inofensivo para a Cinemateca arrancar alguns bem-vindos tostões dos produtores que estão sonhando com os milhões do FSA num raro edital aberto nesse momento cruel em que estamos vivendo?