domingo, 1 de março de 2020

Exposição sobre Marc Ferrez e a confusão dos dois cinemas Pathé


Ontem fui assistir à excelente exposição sobre o fotógrafo Marc Ferrez, no Insituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, depois dela já ter passado por São Paulo. Há uma pequena, mas valiosa parte da exposição dedicada à atuação de Marc e seus filhos Julio e Luciano no ramo do cinema, como relizadores, importadores e exibidores. Além de lindas placas de lanterna mágica e dois aparelhos em si (da coleção da artista plástica Rosângela Rennó), há belas fotos do cinema Pathé, na Avenida Central, que pertenceu à família Ferrez.
Entretanto, a exposição comete uma confusão que é comum entre os dois cinemas Pathé que existiram. O primeiro, inaugurado em 1907, em sociedade com Arnaldo & Cia, era localizado nos números 147 e 149 da Avenida Central. O segundo Pathé foi inaugurado em 1913, no número 116 da Avenida Central, pertencendo à poderosa Companhia Cinematográfica Brasileira, a qual Marc Ferrez tinha se associado (Arnaldo abriria outro cinema, o Palais). Esse segundo cinema, localizado no lado mais nobre (e caro) da Avenida, por fazer sombra (como escreveu Gilberto Ferrez em artigo da  edição especial da revista Filme Cultura, de 1986), era muito maior e mais luxuoso do que o primeiro cinema Pathé.

Na exposição do IMS há uma preciosa fotografia do acervo do Arquivo Nacional, de Augusto Malta, do interior do primeiro cinema Pathé, no dia de sua inauguração, em 1907. Não apenas são raras fotografias de cinemas desse período, quanto mais do seu interior, onde a luminosidade era baixa


Em seguida, há outra duas fotos, uma do "interior" e outra da "sala de espera" do Cinema Pathé, que são datadas como de "c.1907", isto é, do mesmo cinema e ano da foto anterior.


Entretanto, essas duas fotos são do segundo Cinema Pathé. Duas fotos parecidas, tiradas de ângulos um pouco diferentes, ilustram a segunda e terceira capa da já mencionada edição especial de Filme Cutltura. Além disso, na sala de espera há o anúncio da exibição do filme "Brutalidade", com George Walsh. Trata-se de um filme de 1916 que, a consulta à base de dados do site Mnemocine nos indica ter sido exibido nesse mesmo ano em São Paulo (e certamente no Rio). Portanto, o mais provável que é as fotos sejam de 1916, do segundo Pathé, e certamente não do primeiro cinema Pathé, de 1907.

Há ainda uma outra fotografia, da fachada do Pathé, que é datada como sendo de 1911 (portanto, do primeiro Cinema Pathé).


Novamente, o filme em cartaz (The Love Thief), é de 1916, o que já contradiz a data de 1911. Novamente, o mnemocine ainda confirma sua exibição no próprio Cine Pathé, em 1916. Essa mudança na data (1916 e não 1911) é importante pois indica se tratar do segundo cinema Pathé (o mesmo das fotos da sala de espera e do interior vazio) e não do primeiro cinema Pathé (da foto de Malta de sua inauguração).

A datação ainda poderia ser feita pela análise da fachada. O próprio Marc Ferrez fotografou todos os prédios novos da Avenida Central em seu famoso "Álbum da Avenida Central" (que, maravilhosamente, está disponível online). Na página 52, vemos a fotografia do prédio de n. 145-147-149, de propriedade de Gustavo José de Mattos (como Gilberto Ferrez escreveu no citado artigo), onde foi instalado o primeiro cinema Pathé. É um prédio bem mais simples.


Já o prédio do número 116, é bem diferente, podendo serem notados os formatos piramidais sob as janelas do segundo andar que conseguimos identificar na fotografia anterior da fachada do cinema Pathé.


É possível ainda notar os detalhes do prédio n.114, do lado direito da foto do Pathé, especialmente da janela do segundo andar. Essa constatação pode ser feita ainda em outra foto do cinema Pathé, mais famosa e disponível no site da Brasiliana Fotográfica, de autor desconhecida, datada como de 1919.

Se examinarmos o sempre útil livro "Palácios de poeiras", de Alice Gonzaga, corroboramos nossas indicações. Nele aparece, na página 89, uma fotografia da fachada do primeiro cinema Pathé, tirada da revista Fon-Fon, de outubro de 1907. Infelizmente, a coleção dessa revista, do ano 1907, está bastante incompleta na Hemeroteca Digital. Portanto, segue imagem tirada do próprio livro.


As colunas retas e regulares tornam facilmente reconhecível o prédio dos números 147-149, portanto, do primeiro cinema Pathé, com uma fachada muito mais simples e sem a profusão de cartazes e o enorme letreiro luminoso que irá decorar o segundo cinema Pathé.

Não se trata de uma confusão pequena. O segundo cinema Pathé se tornaria, durante uma década, uma dos principais cinemas do Rio da Janeiro, circuito de primeira linha da CCB no Rio de Janeiro, juntamente com o cinema Avenida e o cinema Odeon (este, também vítima de confusões com o segundo e ainda de pé cinema Odeon, inaugurado só em 1926, já na Cinelândia). O primeiro cinema Pathé, por sua vez, era parte da primeira geração de salas fixas, bem mais simples, surgidas durante a "febre do cinematógrafo" no Rio de Janeiro entre 1907 e 1908.

Essa confusão na muito elaborada e bem feita exposição do IMS, na minha opinião, é só mais uma amostra de como os estudos sobre história do cinema brasileiro são pouco valorizados, em geral. Nossos livros, artigos e pesquisas aparentemente são ignorados pelos historiadores de outra áreas. Os textos da exposição são muito corretos, bem feitos e profundos sobre vários aspectos da história do Rio de Janeiro, do Brasil, da fotografia e da vida e carreira dos Ferrez, mas quando se chega ao cinema, ainda se incorrem erros tão básicos quanto esses que apontei acima.