terça-feira, 2 de junho de 2020

Sobre a crise atual da Cinemateca Brasileira


A dramática situação em que a Cinemateca Brasileira se encontra atualmente, ameaçada de fechamento pelo governo e de corte de eletricidade por falta de pagamento, não tem uma explicação simples.
Em alguns comentários recentes, pode parecer que a instituição vive uma situação oposta a uma “época de ouro”, nos anos 2000, quando ela estava no auge de sua sempre difícil e conturbada existência. Assim, fica parecendo simplesmente que a Cinemateca Brasileira viveu uma bonança na era Lula e agora está no fundo do poço com o governo Bolsonaro. Isso é apenas meia verdade.
Embora a derrocada atual da Cinemateca seja responsabilidade do presente governo que, pela primeira vez na história, usou a instituição para promover sua política de extrema direita, tendo anunciado em 2019 uma “mostra de filmes militares” e a loteado com indicados do PSL, (então) partido do presidente, a situação é mais complexa.
Isso porque a situação em que ela se encontra tem como origem mais imediata a crise iniciada em 2013, durante o governo Dilma. E também porque, na suposta era de ouro da Cinemateca na década de 2000, já se encontravam os germes de sua crise atual, que tem a ver, sobretudo, com o papel do Estado em relação à cultura e memória e a uma discussão sobre o modelo de gestão das instituições públicas culturais.
Nos anos 2000, a Cinemateca Brasileira recebeu vultosos investimentos do Ministério da Cultura através de uma associação privada sem fins lucrativos, a Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC). Esses investimentos consolidaram uma invejável infraestrutura e permitiram ações que deram grande projeção à Cinemateca. Além do significativo investimento do governo Lula em cultura e, particularmente, em cinema, o patamar atingido pela instituição foi possibilitado pelo trabalho de uma geração de funcionários públicos que atuavam na Cinemateca havia muitos anos, alguns inclusive incorporados ao serviço público quando a instituição se transformou em órgão público federal em 1984. Essa fórmula simples e careta funcionou bem: funcionários públicos (com estabilidade e plano de carreira) tendo finalmente boas condições de trabalho.
Já a diretoria da Cinemateca nessa fase soube cavar os recursos em aliança com a SAC, mas, como critiquei na época (e hoje considero que estava correto), não olhou para o passado e nem para o futuro. Se preocupou muito mais e apenas em capitalizar a situação (os entendidos entenderão). O seu laboratório (montado com recursos públicos) seguia uma lógica comercial e não havia nenhuma transparência ou clareza sobre as políticas de acesso, e taxas, para o uso do acervo, diferentemente de instituições congêneres como a Biblioteca Nacional ou Arquivo Nacional.
Houve investimento em equipamentos de ponta, e em muitos coquetéis (o que sempre agrega simpatizantes), mas não houve concurso público. A equipe foi ampliada através de contratos precários, muitos deles por PJ.
Muito dinheiro esteve disponível, mas não se desenvolveu, por exemplo, um projeto de copiagem sistemática para novos suportes das matrizes de nitrato de celulose, o que a maior parte dos arquivos de filmes vinha fazendo desde os anos 1970 através do slogan (falso, mas funcional) “nitrate won’t wait”.
Desse modo, quando ocorreu um novo incêndio na Cinemateca em 2016 – algo presente na sua história, mas que não ocorria havia décadas -, 40% dos rolos de nitrato perdidos não tinham cópias no acervo. Se perderam para sempre.
A Cinemateca também não olhou para o futuro, por exemplo, se preparando adequadamente para o digital, em termos de equipe, práticas e instalações. Hoje não temos um repositório público digital de confiança para a gigantesca produção audiovisual realizada atualmente. Também seguimos perdendo o nosso (novo, mas non tropo) cinema digital a cada dia.
A verdade é que oportunidades únicas foram perdidas nesse período de vacas gordas.
A SAC serviu como “atalho” para o MinC fugir da burocracia estatal, administrando recursos de projetos não necessariamente vinculados à preservação audiovisual, razão de ser da Cinemateca. Se vangloriava de ser uma cinemateca “rica”, o que faria qualquer pessoa experiente no campo da preservação audiovisual e minimamente cética desconfiar.
Em 2013, o TCU bateu na Cinemateca e tudo mudou. O “atalho” da SAC levantou suspeitas e motivou investigações. Os outrora intocáveis caíram.
Desde então, o Brasil mudou – os protestos de rua se ampliaram, a economia desandou e uma crise política permanente se instalou. Os recursos para a cultura minguaram, é claro. O que aconteceu com uma instituição como a Cinemateca? A equipe (com exceção dos resistentes funcionários públicos) passou a ser repetidamente feita e desfeita. Como formar um preservador – que deve, a rigor, conhecer a história do cinema como arte e tecnologia e dominar ainda os mais recentes avanços do digital – se ele vai trabalhar por projeto, contratado e (se der sorte) recontratado a cada dois anos?
O laboratório da Cinemateca – um de seus principais recursos, aparelhado para processos fotoquímicos e digitais – passou a funcionar intermitentemente. Um exemplo gritante de desperdício de recursos públicos diante da enorme necessidade de seus serviços.
Apesar de seus problemas, o bode expiatório era sempre a máquina pública. Consequentemente, a solução de sempre era o modelo de gestão da iniciativa privada. A privatização começou a ser ensaiada através de contratos com Organizações Sociais (OS), tal como os governos do PMDB e do PSDB vinham fazendo no Rio e São Paulo.
Em 2018, durante o governo Temer, o ministro da cultura Sérgio Sá Leitão conseguiu o que queria: fechou um contrato com uma OS para gerir a Cinemateca Brasileira. Aplicava-se à preservação audiovisual a mesma lógica neoliberal do cinema brasileiro da lei de incentivo dos anos 1990 (não à toa, também tucana): os recursos continuam públicos, mas o poder decisório é da iniciativa privada. Esta, aliás, ainda ganha uns cobres, seja fazendo marketing gratuito pago com impostos no caso da produção de filmes, seja capitalizando no que possa com a Cinemateca Brasileira.  
Na primeira reunião da classe cinematográfica com os novos gestores da Cinemateca só se falou numa coisa: taxas, cobranças e tabela de preços. A partir daí, o que se viu foi o espaço físico da Cinemateca ser capitalizado de forma ainda mais selvagem: alugado para feira de vinhos, gravação de programa Master Chef e por aí vai. É a lógica dos nossos empresários à frente das instituições culturais. Uma nota pessoal para mostrar que não havia nada de novo ali: o MAM-RJ, museu privado sem fins lucrativos, poderia ter sido totalmente reconstruído e reaparelhado (incluindo a sua Cinemateca) se a fortuna ganha nos gordos anos 2000 com o aluguel do seu espaço para eventos fosse aplicado no museu. De festas de debutantes a casamentos, passando por eventos corporativos, milhões de reais foram para o bolso dos amigos e quase nada para o museu.
No final das contas, assim como dizem não haver almoço grátis, nenhuma OS faz mágica. Ela pode ganhar uns cobres a mais, porém a conta é sempre do Estado. Parou de pagar, fecha. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o belo projeto importado de Bogotá das Bibliotecas Parque, no Rio de Janeiro. Quando o governador (e atual detento) Luiz Fernando Pezão não pagou a OS, as bibliotecas fecharam. Simples assim.
Entretanto, fechar mesmo que momentaneamente uma instituição de guarda é um buraco mais fundo, pois significa, entre outros males, a possibilidade de perda irreparável de seu acervo e, consequente, de nosso patrimônio cultural.
Portanto, o problema da Cinemateca Brasileiro não é apenas do atual governo, embora ele seja um mal grotesco. Mas mesmo que Bolsonaro caia, ainda será preciso repensar o papel do Estado para a cultura e como ele pode exercer essa responsabilidade no caso específico de instituições de crucial importância para o nosso país como a Cinemateca Brasileira. Achar que é só retomar o que existiu antes é ilusão. É preciso construir um outro modelo. Só assim a Cinemateca pode não apenas sair do fundo do poço agora, como vislumbrar um futuro melhor.

domingo, 1 de março de 2020

Exposição sobre Marc Ferrez e a confusão dos dois cinemas Pathé


Ontem fui assistir à excelente exposição sobre o fotógrafo Marc Ferrez, no Insituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, depois dela já ter passado por São Paulo. Há uma pequena, mas valiosa parte da exposição dedicada à atuação de Marc e seus filhos Julio e Luciano no ramo do cinema, como relizadores, importadores e exibidores. Além de lindas placas de lanterna mágica e dois aparelhos em si (da coleção da artista plástica Rosângela Rennó), há belas fotos do cinema Pathé, na Avenida Central, que pertenceu à família Ferrez.
Entretanto, a exposição comete uma confusão que é comum entre os dois cinemas Pathé que existiram. O primeiro, inaugurado em 1907, em sociedade com Arnaldo & Cia, era localizado nos números 147 e 149 da Avenida Central. O segundo Pathé foi inaugurado em 1913, no número 116 da Avenida Central, pertencendo à poderosa Companhia Cinematográfica Brasileira, a qual Marc Ferrez tinha se associado (Arnaldo abriria outro cinema, o Palais). Esse segundo cinema, localizado no lado mais nobre (e caro) da Avenida, por fazer sombra (como escreveu Gilberto Ferrez em artigo da  edição especial da revista Filme Cultura, de 1986), era muito maior e mais luxuoso do que o primeiro cinema Pathé.

Na exposição do IMS há uma preciosa fotografia do acervo do Arquivo Nacional, de Augusto Malta, do interior do primeiro cinema Pathé, no dia de sua inauguração, em 1907. Não apenas são raras fotografias de cinemas desse período, quanto mais do seu interior, onde a luminosidade era baixa


Em seguida, há outra duas fotos, uma do "interior" e outra da "sala de espera" do Cinema Pathé, que são datadas como de "c.1907", isto é, do mesmo cinema e ano da foto anterior.


Entretanto, essas duas fotos são do segundo Cinema Pathé. Duas fotos parecidas, tiradas de ângulos um pouco diferentes, ilustram a segunda e terceira capa da já mencionada edição especial de Filme Cutltura. Além disso, na sala de espera há o anúncio da exibição do filme "Brutalidade", com George Walsh. Trata-se de um filme de 1916 que, a consulta à base de dados do site Mnemocine nos indica ter sido exibido nesse mesmo ano em São Paulo (e certamente no Rio). Portanto, o mais provável que é as fotos sejam de 1916, do segundo Pathé, e certamente não do primeiro cinema Pathé, de 1907.

Há ainda uma outra fotografia, da fachada do Pathé, que é datada como sendo de 1911 (portanto, do primeiro Cinema Pathé).


Novamente, o filme em cartaz (The Love Thief), é de 1916, o que já contradiz a data de 1911. Novamente, o mnemocine ainda confirma sua exibição no próprio Cine Pathé, em 1916. Essa mudança na data (1916 e não 1911) é importante pois indica se tratar do segundo cinema Pathé (o mesmo das fotos da sala de espera e do interior vazio) e não do primeiro cinema Pathé (da foto de Malta de sua inauguração).

A datação ainda poderia ser feita pela análise da fachada. O próprio Marc Ferrez fotografou todos os prédios novos da Avenida Central em seu famoso "Álbum da Avenida Central" (que, maravilhosamente, está disponível online). Na página 52, vemos a fotografia do prédio de n. 145-147-149, de propriedade de Gustavo José de Mattos (como Gilberto Ferrez escreveu no citado artigo), onde foi instalado o primeiro cinema Pathé. É um prédio bem mais simples.


Já o prédio do número 116, é bem diferente, podendo serem notados os formatos piramidais sob as janelas do segundo andar que conseguimos identificar na fotografia anterior da fachada do cinema Pathé.


É possível ainda notar os detalhes do prédio n.114, do lado direito da foto do Pathé, especialmente da janela do segundo andar. Essa constatação pode ser feita ainda em outra foto do cinema Pathé, mais famosa e disponível no site da Brasiliana Fotográfica, de autor desconhecida, datada como de 1919.

Se examinarmos o sempre útil livro "Palácios de poeiras", de Alice Gonzaga, corroboramos nossas indicações. Nele aparece, na página 89, uma fotografia da fachada do primeiro cinema Pathé, tirada da revista Fon-Fon, de outubro de 1907. Infelizmente, a coleção dessa revista, do ano 1907, está bastante incompleta na Hemeroteca Digital. Portanto, segue imagem tirada do próprio livro.


As colunas retas e regulares tornam facilmente reconhecível o prédio dos números 147-149, portanto, do primeiro cinema Pathé, com uma fachada muito mais simples e sem a profusão de cartazes e o enorme letreiro luminoso que irá decorar o segundo cinema Pathé.

Não se trata de uma confusão pequena. O segundo cinema Pathé se tornaria, durante uma década, uma dos principais cinemas do Rio da Janeiro, circuito de primeira linha da CCB no Rio de Janeiro, juntamente com o cinema Avenida e o cinema Odeon (este, também vítima de confusões com o segundo e ainda de pé cinema Odeon, inaugurado só em 1926, já na Cinelândia). O primeiro cinema Pathé, por sua vez, era parte da primeira geração de salas fixas, bem mais simples, surgidas durante a "febre do cinematógrafo" no Rio de Janeiro entre 1907 e 1908.

Essa confusão na muito elaborada e bem feita exposição do IMS, na minha opinião, é só mais uma amostra de como os estudos sobre história do cinema brasileiro são pouco valorizados, em geral. Nossos livros, artigos e pesquisas aparentemente são ignorados pelos historiadores de outra áreas. Os textos da exposição são muito corretos, bem feitos e profundos sobre vários aspectos da história do Rio de Janeiro, do Brasil, da fotografia e da vida e carreira dos Ferrez, mas quando se chega ao cinema, ainda se incorrem erros tão básicos quanto esses que apontei acima.