Há algumas semanas eu fui a um multiplex no Rio de Janeiro e ao comprar o ingresso para uma sessão, ouvi a seguinte conversa no caixa ao lado. O que é "48 fps", perguntou o espectador diante da opção de comprar entradas para
O Hobbit em 3D Digital e em 3D Digital 48fps. A caixa respondeu algo do tipo "é uma imagem nova". O espectador não entendeu direito e ela completou: "é uma imagem melhor". Aparentemente satisfeito ou, pelo menos, curioso, ele comprou o ingresso para essa sessão.
Eu não tinha entendido direito o que era aquilo que o Kinoplex do Circuito Severiano Ribeiro estava promovendo. Desde o cinema sonoro, o cinema tinha adotado 24 fps - fotogramas por segundo - como a velocidade de filmagem e projeção. Tratava-se de um padrão adotado que evitava a sensação de flicagem (ou cintilação) provocada por velocidade mais lentas, comuns nos primeiros tempos do cinema, como as de 16 ou 18fps (
ver post a esse respeito). Essa baixa velocidade resultava em incômodo para os olhos dos espetadores devido à lenta alternância entre as imagens claras projetadas na tela e a escuridão decorrente da interrupção da luz durante a obturação (momento em que, no projetor, o filme era transportado de um fotograma para outro).
A velocidade de 24 fps eliminava essa sensação, reduzida ainda pelo acréscimo de obturações extras no mesmo fotogramas através de obturadores com duas ou três lâminas, Assim, na prática, os mesmos 24 fotogramas eram vistos alternadamente duas ou três vezes na tela por segundo, resultando em 48 ou 72 imagens por segundo.
Para o filme
O Hobbit: Uma jornada inesperada, filmado com duas câmeras digitais posicionadas para capturar a dupla imagem estereoscópica responsável pelo efeito 3D, o diretor Peter Jackson optou por filmar a 48 fps, também chamado de HFR (
High Frame Rate). A intenção era ter mais fotogramas por segundo e, com isso, conseguir uma maior qualidade visual (evitanda o borrão nas imagens que se movimentam muito rapidamente) e um efeito mais acentuado de imersão. É preciso lembrar que, enquanto com a película quanto maior a velocidade de filmagem, maior o gasto de filme virgem (o que acontece, por exemplo, nos efeitos de câmera lenta), com o barateamento do suporte de filmagem proporcionado pelo digital (dados em HD), o aumento de velocidade de registro não implica num gasto extra realmente significativo.
Entretanto, ao assitir há alguns dias a
O Hobbit em 3D Digital 48fps, tive uma enorme decepção. Poucas vezes na minha vida tive uma impressão tão negativa a respeito do visual de um filme. Mais do que digital, o filme parecia vídeo. Menos cinema, me senti assistindo à televisão.
Ao pesquisar na internet, encontrei diversas opiniões semelhantes de outros espectadores frustrados, mas com dificuldades de expressar verbalmente o incômodo visual provocado pelo filme.
No meu caso, o excesso de detalhes, a nitidez exagerada, deixava mais clara a artificialidade dos cenários e dos personagens digitais. A interação entre os atores de carne e osso e as criações em CGI tornavam-se menos críveis. Parecia que eu estava vendo um filme como
Uma cilada para Roger Rabbit (1988), mas no qual se tentava disfaçar - sem sucesso - o que era desenho animado e o que era
live-motion.
Mal consegui assistir e me interessar pelo filme de Peter Jackson. Devido às características do 48fps, poucos filmes me pareceram tão feios. Os famosos planos aéreos dos personagens percorrendo as maravilhosas paisagens da Terra Média (isto é, a Nova Zelândia), recurso muito bem utilizado na trilogia do Senhor dos Anéis, perdia toda a graça. Parecia que eu estava vendo uma das reconstituições de batalhas antigas dos programas do History Channel. Aquilo que o digital perde em comparação com a película cinematográfica - a textura quase aveludada da imagem, o tom quente das cores, a suavidade quase viva das imagens - tornava-se ainda mais evidente em
O Hobbit: imagens frias, mortas, chapadas. As únicas cenas que me soaram mais interessante visualmente eram justamente aquelas que pareciam desenhos animados, como a dos pássaros em contraluz voando no céu poente, na qual a falta de profundidade não era um problema.
O caso de
O Hobbit me parece o sintoma de uma tendência maior: a tentativa desesperada do digital simular o realismo fotocinematográfico, com seus sucessos e fracassos. Nas animações infantis, por exemplo, percebemos cada vez mais o preciosismo perfeccionista com os detalhes mais minuciosos nos pelos dos animais, na textura das roupas, nas folhas das árvores. Ao mesmo tempo, percebe-se o fracasso absolutto, por exemplo, da recriação da figura humana de forma "realista" (em seus movimentos, texturas etc.) nessas mesmas animações. Muitas empresas, como a Pixar, já desistiram e se consolaram em representar os humanos de forma caricaturizada (narigões, cabeções, olhões etc.), ou ater-se à antropormofização de animais e objetos (como peixes, insetos, brinquedos e carros).
Na tentativa de parecer mais "real",
O Hobbit conseguiu seu intento. Não vemos anões, paisagens e seres mágicos, mas atores maquiados, cenários construídos e animações digitais. A realidade ultrapassou a fantasia.