Eu já ouvi comentários através de amigos e de desconhecidos,
recentemente ou há anos atrás, de que eu era considerado um “inimigo”, um “desafeto”
ou um “adversário” da Cinemateca Brasileira. São comentários vindos, principalmente,
de pessoas que não me conhecem bem ou não me conhecem em nada. Considero isso
uma tremenda bobagem, no mínimo. Como historiador e preservador do cinema
brasileiro, eu amo a Cinemateca Brasileira e seu acervo. Utilizei sua vasta e
preciosa documentação desde o meu mestrado e, sempre que estou em São Paulo, visito
sua biblioteca. Já exibi cópias de filmes de suas coleções em diversas aulas e eventos
ao longo de duas décadas. Admiro e respeito profundamente a história da
instituição. Justamente por amar a Cinemateca Brasileira é que eu fui, ao longo
de anos, abertamente crítico a certas práticas, iniciativas e ações tomadas
pelos seus gestores, quando achei que elas eram prejudiciais à instituição e
sua missão (fosse em 2009, em 2012, em 2019, ou qualquer outro ano). Criticar o que merece ser criticado nas ações de quem esteja à
frente da Cinemateca Brasileira não é ser inimigo dela, muito pelo contrário, é
defender a Cinemateca Brasileira. E eu defendo a Cinemateca como a instituição
pública que ela, há 40 anos, é. E que por ser uma instituição pública, deve se pautar pela impessoalidade,
moralidade, eficiência e legalidade. Eu defendo a Cinemateca Brasileira como
uma instituição que atua na preservação audiovisual, visando, acima de tudo, a
salvaguarda e o acesso ao seu acervo – para todas e todas, da geração atual e
futuras, sem distinção. Não podia e continuo não podendo aceitar, impassível, se
uma instituição pública de preservação audiovisual deixa de priorizar, havendo
recursos para tal, ações fundamentais para a conservação dos itens mais
preciosos de seu acervo. Não podia e continuo não podendo aceitar se uma
instituição pública de preservação audiovisual deixa de permitir o acesso para
quem deseja ou precisa utilizar seu acervo por motivos obscuros ou obscenos. Não
podia e continuo não podendo aceitar se uma instituição pública de preservação audiovisual
faz escolhas curatoriais, editoriais ou contratuais por amizade ou compadrio ao
invés de reconhecida capacidade, talento ou experiência. Não podia e continuo não podendo aceitar se uma
instituição pública de preservação audiovisual age como uma empresa privada,
priorizando o lucro acima do interesse público. Na pior fase de sua longa e
turbulenta história, durante o governo Bolsonaro, quando a Cinemateca
Brasileira esteve fechada e sem funcionários, ajudei a denunciar
internacionalmente a situação, escrevendo para o blog e participando da criação
de textos em inglês que permitiram que, ao redor do mundo, mais pessoas soubessem
do atentado contra a instituição. Ao longo de minha vida profissional, aprendi
com grandes funcionários da Cinemateca Brasileira, como Fernanda Coelho, Carlos
Roberto de Souza e Francisco Mattos, e fui beneficiado por algumas de suas mais
importantes iniciativas, como os cursos e seminários abertos à comunidade de
preservadores audiovisuais, oferecidos no início dos anos 2000. Trabalhei junto
com a Cinemateca Brasileira quando idealizei e fui o curador da primeira
retrospectiva integral da produção do estúdio paulista Maristela, patrocinado pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 2011. Por meio
dessa retrospectiva, financiamos a feitura de cópias novas, em 35mm, de alguns raríssimos filmes realizados nos anos 1950 que foram exibidos no evento e, depois, incorporados ao acervo da instituição. Minha defesa e
valorização da instituição nunca me fez, porém, deixar de criticar quando
achasse que erros e desvios estavam sendo cometidos. E sofri retaliações.
Quando quis organizar o lançamento em São Paulo de meu livro “Cinematographo emNictheroy: história das salas de cinema de Niterói”, publicado em 2012, tive singelamente
“recusada” a possibilidade de fazê-lo na Cinemateca Brasileira, mesmo se outros
livros de cinema, de autores “amigos”, tivessem sido lançados normalmente lá
nas semanas anteriores. O motivo? Nunca me foi dito claramente. Os comentários
nunca são diretos. Ainda assim, apesar de alguns
olhares desconfiados e da reação constrangida de uns poucos, nunca deixei de
entrar e frequentar a Cinemateca Brasileira de cabeça erguida – a instituição é
pública e não tem donos, apesar de alguns desejarem ou pensarem ser.
Atualmente, acredito que, apesar da tragédia recente, a situação institucional
da Cinemateca Brasileira é a melhor em muitos anos. Como especialista da área,
fui convidado a participar da comissão de avaliação e acompanhamento do
contrato de gestão da Secretaria do Audiovisual com a Sociedade Amigos da
Cinemateca, entidade privada sem fins lucrativos responsável pela gestão da
instituição. Trata-se de um trabalho complexo e árduo que eu e meus colegas
realizamos voluntariamente – estritamente de forma voluntária, reitero. Não ganhamos um
centavo sequer para ler, discutir e avaliar os volumosos relatórios de gestão, o
cumprimento das metas e a adequação dos indicadores. O relatório da comissão
que integro foram recentemente tornados públicos, no site do Ministério da Cultura, permitindo que qualquer brasileiro possa também acompanhar e
fiscalizar o contrato e as ações da O.S. Essa é a tal transparência que eu vinha defendendo há
tantos anos. Aliás, nunca recebi um real que fosse de nenhum projeto ou de
nenhuma diretoria da Cinemateca Brasileira, mesmo quando milhões de reais
atravessavam alegremente o caixa da instituição. Talvez isso tenha causado estranhamento
em algumas pessoas que me viam enfrentar, então, poderosos mandachuvas. Apesar
de sua origem, em meados do século XX, numa época de instituições personalistas,
a Cinemateca Brasileira não me odeia, não me vê como inimigo, pois é uma
instituição que não tem dono, nem nunca teve. Quem talvez tenha manifestado e ainda
manifeste essa opinião sobre mim é quem vê na Cinemateca Brasileira, sobretudo,
um espaço de disputa e conquista de poder. Azar. Essas pessoas passam. A Cinemateca
Brasileira fica. E é isso que importa.
Fotografias de minha primeira passagem pela Cinemateca Brasileira, no curso de duas semanas de duração, para técnicos de arquivos de filmes, em dezembro de 2003 - exatos vinte anos atrás. Fotografias tiradas, digitalizadas e compartilhadas pelo colega Marcus Alves