Ontem, terça-feira, dia 21/07, recebi um e-mail da amiga Natália de Castro com uma notícia do portal do Ministério da Cultura: "Clássicos do Cinema Nacional: Cinemateca Brasileira irá digitalizar o acervo da extinta Companhia Atlântida Cinematográfica". Até aí, nada demais. O acervo da Atlântida está depositado na Cinemateca Brasileira, que tem investido vultosas quantias do MinC em projetos de digitalização que tem sido, de certa forma, a prioridade do governo no campo da preservação. Além disso, me surpreendi há alguns meses com a informação de que existem materiais de preservação de filmes raros da Atlântida - muitos dos quais eu tinha interesse em assistir e exibir, como A Sombra da Outra ou Areias ardentes - que a empresa, até hoje, não tinha tido "recursos" para telecinar e, consequentemente, difundi-los e comercializá-los. Vale lembrar que os recursos necessários hoje para telecinar um negativo não são altos, mostrando que a histórica mesquinharia da empresa fundada por Severiano Ribeiro não mudara.
Entretanto, ao ler a notícia, havia uma novidade: o "Ministério da Cultura adquiriu todo o arquivo da extinta Companhia". Opa! Como assim? Corri e tentei abrir o site que vinha consultando há algum tempo (www.atlantidacinematografica.com.br) e ele estava fora do ar! (pouco tempo depois retornou).
Hoje (22/07), uma notícia no Segundo Caderno do jornal O Globo confirmou que o governo comprou os direitos dos filmes (longas e cinejornais) da empresa. É algo, sem dúvida, sem precedentes na história do audiovisual brasileiro, e que me traz mais dúvidas do que certezas.
Primeiro: Quanto custou o acervo da Atlântida? Nenhuma notícia fala em valores, mas qualquer cidadão tem o direito de saber, uma vez que os filmes foram adquiridos com dinheiro público.
A surpresa maior foi o governo ter comprado o acervo e não a Atlântida o ter vendido. A política da empresa tem sido de renovação ou, melhor, de liquidação de seus bens. As antigas salas de rua do grupo Severiano Ribeiro, valorizadas pela especulação imobiliária, já foram quase todas vendidas. No Rio perdemos recentemente o histórico Cine Palácio (dois anos após reforma que restaurou sua belíssima fachada) e, em Niterói, o Cinema Icaraí, que, localizado na praia de Icaraí, era a última sala do grupo voltada para a Baía de Guanabara. Enquanto isso, o grupo tem investido no Kinoplex, seu produto no formato multiplex, abrindo várias salas, por exemplo, no grã-fino Shopping Leblon.
Nos últimos anos, o grupo Severiano Ribeiro também tentou capitalizar em cima de seu mal-tratado acervo de filmes. Lançou em DVD cópias dos títulos mais conhecidos, aproveitando fitas beta de péssima qualidade feitas nos anos 1980 e 1990 para a exibição na TV e lançamento de VHS. Conseguiu junto a colecionadores cópias de filmes dos quais a própria empresa não tinha bons ou nenhum material e fechou convênios com algumas universidades (que não foram honrados) para conseguir mão-de-obra para cuidar do acervo.
Mais importante, a companhia tentou captar dinheiro (público ou incentivado) para restaurar seu acervo, que, ela própria, nunca dedicou muito empenho e, menos ainda, recursos. O "tombamento" recente dos filmes parece ter sido um passo estratégico para conseguir sensibilizar o Governo que tirou esse peso dos ombros da empresa.
Entretanto, isso me leva a pensar se os produtores, ao invés de se preocuparem em preservar e, quando necessário, restaurar seus filmes antigos (para poderem, inclusive, ganhar dinheiro novamente com eles), não vão querer, frente ao precedente aberto, que o governo simplesmente compre os direitos? (fico imaginando daqui há alguns anos se um filme feito com recursos incentivados via lei do Audiovisual não será comprado novamente pelo governo, para "preservá-lo"...)
Por outro lado, sabendo, como já dizia o Barão de Itararé, que "de onde menos se espera é que não sai nada mesmo", podíamos esperar que a política de gasto zero da Atlântida com seu próprio acervo não fosse mudar. E, mal ou bem, o governo - via Cinemateca Brasileira - já andava investindo recursos na preservação do acervo, conservando e duplicando os materias da empresa depositados em seus arquivos.
Mas outra dúvida que tenho é como será o acesso a esses filmes. Produzi no início do ano uma mostra de filmes na Caixa Cultural-RJ intitulada "Retomando a questão da indústria cinematográfica Brasileira" no qual exibimos dois filmes da empresa, Carnaval Atlântida e Assim era a Atlântida. Tínhamos poucos recursos de produção, mas tivemos que pagar o preço cobrado pela companhia para duas exibições de cada filme dentro do evento: R$ 1.000,00.
A partir do momento que esse acervo pertencer ao governo, quem autorizará (e cobrará ou não) pela exibição desses filmes? E pelo uso de trechos em programas de TV ou documentários? Será a Cinemateca Brasileira? Mas o arquivo já cobra um taxa pela cessão dos materiais sob sua guarda. A partir de agora passará a receber também o que antes era cobrado pelos produtores? Ou o acesso será gratuito?
Será que teremos então uma enxurrada de mostras, festivais e sessões com filmes da Atlântida? Certamente não haverá cópias em película em bom estado para tal demanda, mas hoje em dia as pessoas parecem ter perdido o pudor de exibir qualquer filme em dvd, não importa a qualidade do som e da imagem...
Atualmente, nenhum produtor responsável ousa exibir um filme sem autorização de seu legítimo detentor dos direitos, mas se os direitos forem do governo, será que não haverá uma despreocupação em pedir autorização? Quem no governo irá fiscalizar uma exibição não autorizada?
Nós, do campo da preservação, sabemos que existe o direito sobre o material (uma cópia que você achou na rua, comprou de um colecionador, ganhou de seu avô etc) e o direito sobre a obra. Se eu tinha, digamos, uma cópia 16mm de Nem Sansão nem Dalila que comprei numa feira de antiguidades, essa cópia era minha. Porém, eu não poderia fazer nenhuma exibição pública ou uso comercial dela pois os direitos da obra não eram meus. Por outro lado, como comprei essa cópia, poderia fazer o que quisesse com ela, inclusive destruí-la, mas se o produtor quisesse usá-la, deveria pedir para mim (alugando-a ou comprando-a).
Será que os direitos dos filmes da Atlântida sendo agora do Governo -que já possuia o direito sobre diversos materiais feitos pela Cinemateca Brasileira - não vão aparecer cópias dos filmes escondidas por aí? Todos sonham em encontrar qualquer fragmento do mítico Moleque Tião, por exemplo... Eu conheci há 3 anos um senhor, muito humilde, que tinha vários filmes em sua casa em Nova Iguaçu e inclusive disse ter uma cópia de "um filme do Oscarito". As opções são várias, mas podia ser de um filme "perdido" ou cujos materiais estão em mau-estado. Vale lembrar que todos os negativos da Atlântida foram perdidos em incêndios e o que sobreviveu foram cópias, invariavelmente ruins. Para exibirmos o clássico Carnaval no fogo num curso de História do Cinema Brasileiro, o Tela Brasilis teve que comprar um dvd do colecionador Paulo Tardin. É curioso dizer que essa cópia (feita de um material 16mm dele) não tinha a clássica cena do balcão entre o Grande Otelo (Julieta) e Oscarito (Romeu), usada, sem o menor cuidado, por Carlos Manga na montagem de seu documentário "Assim era a Atlântida".
A notícia veiculada no site do MinC e no jornal dizia ainda que o acervo seria todo digitalizado. Sim, e daí? Em qual formato? Em qual resolução? Com qual finalidade? Serão produzidos DVDs distribuidos gratuitamente para escolas, universidades e bibliotecas? Ou os filmes serão disponibilizados para download?
E as fotos dos filmes? Quem autorizará a publicação de uma imagem dos filmes ou de seus cartazes?
Enfim, como disse antes, é uma notícia ainda fresca, mas que gera mais dúvidas do que qualquer outra coisa e que deve ser amplamente debatida pela sociedade.
8 comentários:
Rafael, muito legal suas colocações. São muitas perguntas sem respostas. Não só sobre as questões dos valores envolvidos mas também como será o porcesso de digitalização que deve envolver muito mais do que gerar DVD's. Afinal quais são os padrões e prioridades definidas?
zeka kahale.
Sou videomaker do Teatro Oficina pesquisando sobre a vida de Cacilda Becker já que em setembro deste ano a estreiamos. Ela fez uma telenovela na TV Tupi chamada Ciúmes em 1966 e estou a procura de imagens. Com quem estão os direitos das telenovelas. Foram também digitalizadas?
Agradeço qualquer luz
um abraço
Meneledo,
se as fitas desse programa não foram reaproveitadas ou perdidas, elas podem estar na Cinemateca Brasileira em São Paulo.
Abs,
Rafael de Luna
Meneledo,
Já existem materiais da Tupi digitalizados e disponsíveis no site da Cinemateca Brasileira: www.cinemateca.com.br. Tem imagens da Cacilda Becker, dê uma olhada lá.
abs
Lila
como fica a questao do artigo 184 do codigo penal, direitos autorais e dominio publico
A questão dos valores não revelados sobre a compra do acervo pelo MinC pode ser feita via LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO na própria página do Ministério. Pela LAI, o órgão terá 20 dias para responder. Se o cidadão não ficar satisfeito com a resposta, cabe recurso até a CGU. Acho que vale a briga!
Olá Rafael!
Estou pesquisando alguns títulos brasileiros para meu TCC. Diante da dificuldade de conseguir uma cópia integral de Carnaval no Fogo, consegui compreender pelo teu texto parte do mistério. A cópia online disponível no YouTube e a que consegui com um colecionador devem ser esta em que faltam as cenas do balcão, a do vilão perdendo a cigarreira, entre outras...
É uma pena, pois nem no site da Cinemateca o filme está disponível...
Não atrapalha muito o entendimento da trama, mas a cópia, aparentemente, mais popular entre os cinéfilos está cortada e com trechos bem precários...
Curioso porque no Assim Era Atlântida (consegui em VHS), os trechos do filme estão com uma qualidade bem superior.
Obrigado por compartilhar a informação!!!!
Precisamos fazer a revolução acontecer, ou do contrário será nós que não existiriam mais!!
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