quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Maria Rita Galvão



Em homenagem à Maria Rita Galvão, publicamos o belo texto de Carlos Roberto de Souza, gentilmente cedido pelo autor. Este artigo será publicado no Journal of Film Preservation n.97, outubro de 2017, editado pela FIAF.





Maria Rita Galvão (1939-2017)

          Maria Rita Galvão foi incontestavelmente a líder da mais formosa tentativa de união dos esforços dos arquivos da América Latina no sentido da preservação do patrimônio audiovisual da região. O movimento coordenado por ela durante cerca de vinte anos estimulou a criação de uma consciência latino-americana coletiva sobre a importância das imagens em movimento e sua conservação.
          Nascida numa pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, Maria Rita formou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 1962, num momento de efervescência cultural em que militavam nessa universidade os melhores representantes da inteligência brasileira nos campos da filosofia, sociologia, crítica literária, teatral e cinematográfica.
          Interessou-se pelos estudos cinematográficos – e especialmente pela história do cinema brasileiro – sob a orientação de Paulo Emilio Salles Gomes. Paulo Emilio desenvolvera importante atividade como ensaísta de cinema a partir dos anos 1940. Ligado a partidos de esquerda, exilara-se na França e aí pesquisara e escrevera um estudo sobre o anarquista Miguel Almereyda e seu filho, o cineasta então quase esquecido, Jean Vigo. Paulo Emilio participou ativamente na criação da Cinemateca Brasileira; foi por muitos anos seu Conservador Chefe e, nessa função, ocupou vários cargos em comitês da Fiaf. Na década de 1960, quando a Cinemateca Brasileira aparentemente havia sucumbido diante de dificuldades financeiras, Paulo Emilio ligou suas atividades à universidade, primeiro em Brasília e depois em São Paulo. Foi sob seu estímulo que Maria Rita Galvão fez seu mestrado, um estudo sobre o cinema silencioso produzido em São Paulo, para o qual entrevistou produtores, diretores, técnicos e atores que ainda estavam vivos. Publicado em 1975, sob o título Crônica do cinema paulistano, esse trabalho está na base da nova orientação que tomaram os modernos estudos sobre o cinema no Brasil. Para seu doutorado, concluído em 1976 também na Universidade de São Paulo, Maria Rita fez uma monumental pesquisa sobre a Companhia Cinematográfica Vera Cruz – tentativa da burguesia industrial de São Paulo de construir um estúdio cinematográfico nos moldes das grandes produtoras dos Estados Unidos que, no momento da criação da Vera Cruz, 1950, estavam começando a desaparecer. Partes do doutorado de Maria Rita – editadas por seu dileto amigo, o pesquisador e crítico Jean-Claude Bernardet – foram publicadas em 1981 no volume Burguesia e cinema – o caso Vera Cruz.
          Além desses estudos sobre cinema brasileiro, Maria Rita publicou alguns textos luminosos, como um ensaio sobreThe Wind (Victor Sjöström, 1928); um estudo sobre os conceitos de nacional e popular no cinema brasileiro (em conjunto com Jean-Claude Bernardet); e outro sobre cinema brasileiro no período 1930-1964 (em conjunto com o autor destas linhas). Infelizmente deixou inacabado um trabalho de grande envergadura que tencionou escrever sobre Alberto Cavalcanti, e para o qual fez muitas pesquisas em diferentes países, bem como uma série de entrevistas com o cineasta.
          Maria Rita Galvão foi uma extraordinária professora de história do cinema e de cinema brasileiro, atividade que exerceu no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo a partir de 1970, até se aposentar duas décadas depois. Orientou inúmeros trabalhos de pós-graduação sobre cinema brasileiro (orgulho-me de ser sido o primeiro) de pessoas que atualmente estão entre os de grande qualidade na área de estudos do cinema no Brasil. Era conferencista clara e estimulante sobre assuntos de cinema brasileiro.
          Em meados da década de 1970, alguns discípulos de Paulo Emilio na Universidade de São Paulo se revoltaram contra o lastimável estado em que se encontrava o acervo da Cinemateca Brasileira e decidiram que chegara o momento de modificar a situação. Para tanto, reativaram juridicamente a instituição, convocaram seus antigos criadores, recriaram diretoria e conselho. Maria Rita – que já havia feito estágio de alguns meses na Cinémathèque Française/Musée du Cinéma em 1973 – dispôs-se a participar do movimento, embora declarasse que sua área de interesse sempre fora a documentação e a pesquisa. A partir desse momento, e embora nunca tenha se engajado profissionalmente na Cinemateca Brasileira, Maria Rita assumiu um papel da maior importância na vida institucional. Como membro do Conselho, da Diretoria (não remunerada) em diferentes posições, assumindo cargos estratégicos nos momentos necessários, e finalmente presidente do Conselho da Cinemateca Brasileira a partir de 1987, Maria Rita foi sempre um sensor interno, tentando conciliar divergências e discordâncias, em nome de um desenvolvimento institucional.
          Em 1979, quando a Cinemateca Brasileira – relativamente reequilibrada – decidiu retornar ao seio da FIAF, Maria Rita contou com o apoio de Cosme Alves Neto, da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que a introduziu à comunidade internacional de arquivos reunida no congresso em Lausanne. Muitos anos depois, Maria Rita recordou: No primeiro congresso eu tive sorte: tinha um simpósio com um tema que eu conhecia bastante bem que era o cinema independente europeu, a avant-garde, o Congresso de La Sarraz do qual o Cavalcanti tinha participado. Portanto eu sabia histórias sobre La Sarraz que nem os próprios suíços sabiam ou lembravam; tinha cartas entre o Cavalcanti e o Eisenstein que eu conhecia. Enfim, acabei participando de um assunto que por acaso eu conhecia bastante bem e daí, na medida em que as pessoas passaram a me conhecer, eu dispensei ou podia ser dispensável a introdução do Cosme para dizer: “olha aqui, vale a pena, é uma cinemateca brasileira”, etc.(*)
          Com a frequência sistemática aos congressos da FIAF a partir de então, Maria Rita tornou-se a face internacional da Cinemateca Brasileira. “Eu sou meio falante, eu falava razoavelmente bem as três línguas da FIAF, então participava muito”, lembrou ela na mesma entrevista. Eleita pela primeira vez, no congresso da FIAF de Berlim em 1987, para o Comitê Executivo da federação, participou do Conselho até 1993, tendo ocupado a vice-presidência da Fiaf no último biênio.
          Em outubro de 1984, Maria Rita coordenou o III Encontro Latino-americano e do Caribe de Arquivos de Imagens em Movimento, realizado na Cinemateca Brasileira, com patrocínio da Unesco e da Fiaf. Havia muito tempo que os arquivos da América Latina não se encontravam para discutir seus problemas técnicos e como enfrentá-los diante da escassez de recursos que sempre caracterizou suas atividades. Uma das consequências do Encontro foi a criação, no ano seguinte, da Coordinadora Latinoamericana de Archivos de Imágenes en Movimiento – CLAIM – que, para evitar polarizações e dissensões de caráter político “não possui sede, ni dirigentes, ni cualquier otra instancia centralizadora, y que se estructura a través de múltiplas coordinaciones paralelas, cada cinemateca conducindo y coordenando los proyectos que propone” (**).
          Outra consequência, talvez indireta, do Encontro mas também relacionada à criação da CLAIM foi a solicitação feita por Gabriel García Marquez, então presidente da Fundación de Nuevo Cine Latinoamericano, e recebida pela Cinemateca Brasileira no sentido de que a instituição elaborasse “un proyecto de construcción y mantenimiento de un laboratório destinado a salvar el patrimônio” regional de imagens em movimento (***). Como uma das líderes da CLAIM, Maria Rita discutiu o assunto com os outros arquivos da associação e decidiu seguir a orientação de García Marquez de pensar o projeto “de la manera más amplia y posible”.
          Maria Rita dedicou-se ao desenvolvimento do “Proyecto Centro(s) Regional(es) de Restauración del Acervo Cinematográfico Latinoamericano” de forma integral durante os anos seguintes. Quando um detalhado questionário sobre os acervos e as condições em que estavam guardados, enviado aos arquivos da América Latina, recebeu poucas respostas, Maria Rita, de 1988 a 1990, visitou praticamente todos os arquivos latino-americanos levantando as informações necessárias. O andamento do projeto foi discutido em inúmeras reuniões da CLAIM, mas as dificuldades políticas da América Latina e o agravamento da situação econômica mundial impediram sua concretização e levaram a seu abandono a partir de 1993.
          Em 2006, quando a Cinemateca Brasileira acolheu em São Paulo o 62º Congresso Anual da FIAF, Maria Rita Galvão havia se aposentado da Universidade de São Paulo e há muitos anos vivia numa fazenda no interior do Estado. Independentemente disso, saiu de seu retiro para atualizar as informações de sua extensa pesquisa sobre o volume e as condições de conservação do patrimônio latino-americano de imagens em movimento. Um resumo de sua comunicação no Congresso foi publicada sob o título “La situación del patrimônio fílmico en Iberoamérica”, no Journal of Film Preservation #71, julho 2006.
          Os arquivos latino-americanos muito devem a Maria Rita Galvão pelo seu empenho e dedicação em conhecer e tentar superar seus problemas comuns.
                                                                     Carlos Roberto de Souza



(*) Entrevista concedida a equipe da Cinemateca Brasileira em 25 set 2007.
(**) Comunicação de Maria Rita Galvão, “Proyecto Centro(s) Regional(es) de Restauración del Acervo Cinematográfico Latinoamericano”, La Habana, abril de 1990.
(***) Telex de Gabriel García Marquez recebido em maioi de 1987.