Em homenagem à Maria Rita Galvão, publicamos o belo texto de Carlos Roberto de Souza, gentilmente cedido pelo autor. Este artigo será publicado no Journal of
Film Preservation n.97, outubro de 2017, editado pela FIAF.
Maria Rita Galvão (1939-2017)
Maria
Rita Galvão foi incontestavelmente a líder da mais formosa tentativa de união
dos esforços dos arquivos da América Latina no sentido da preservação do
patrimônio audiovisual da região. O movimento coordenado por ela durante cerca
de vinte anos estimulou a criação de uma consciência latino-americana coletiva
sobre a importância das imagens em movimento e sua conservação.
Nascida numa pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, Maria Rita
formou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, em 1962, num momento de efervescência
cultural em que militavam nessa universidade os melhores representantes da
inteligência brasileira nos campos da filosofia, sociologia, crítica literária,
teatral e cinematográfica.
Interessou-se pelos estudos cinematográficos – e especialmente pela história do
cinema brasileiro – sob a orientação de Paulo Emilio Salles Gomes. Paulo Emilio
desenvolvera importante atividade como ensaísta de cinema a partir dos anos
1940. Ligado a partidos de esquerda, exilara-se na França e aí pesquisara e
escrevera um estudo sobre o anarquista Miguel Almereyda e seu filho, o cineasta
então quase esquecido, Jean Vigo. Paulo Emilio participou ativamente na criação
da Cinemateca Brasileira; foi por muitos anos seu Conservador Chefe e, nessa
função, ocupou vários cargos em comitês da Fiaf. Na década de 1960, quando a
Cinemateca Brasileira aparentemente havia sucumbido diante de dificuldades
financeiras, Paulo Emilio ligou suas atividades à universidade, primeiro em
Brasília e depois em São Paulo. Foi sob seu estímulo que Maria Rita Galvão fez
seu mestrado, um estudo sobre o cinema silencioso produzido em São Paulo, para
o qual entrevistou produtores, diretores, técnicos e atores que ainda estavam
vivos. Publicado em 1975, sob o título Crônica do cinema paulistano, esse
trabalho está na base da nova orientação que tomaram os modernos estudos sobre
o cinema no Brasil. Para seu doutorado, concluído em 1976 também na
Universidade de São Paulo, Maria Rita fez uma monumental pesquisa sobre a
Companhia Cinematográfica Vera Cruz – tentativa da burguesia industrial de São
Paulo de construir um estúdio cinematográfico nos moldes das grandes produtoras
dos Estados Unidos que, no momento da criação da Vera Cruz, 1950, estavam
começando a desaparecer. Partes do doutorado de Maria Rita – editadas por seu
dileto amigo, o pesquisador e crítico Jean-Claude Bernardet – foram publicadas
em 1981 no volume Burguesia e cinema – o caso Vera Cruz.
Além
desses estudos sobre cinema brasileiro, Maria Rita publicou alguns textos
luminosos, como um ensaio sobreThe Wind (Victor Sjöström, 1928); um estudo
sobre os conceitos de nacional e popular no cinema brasileiro (em conjunto com
Jean-Claude Bernardet); e outro sobre cinema brasileiro no período 1930-1964
(em conjunto com o autor destas linhas). Infelizmente deixou inacabado um
trabalho de grande envergadura que tencionou escrever sobre Alberto Cavalcanti,
e para o qual fez muitas pesquisas em diferentes países, bem como uma série de
entrevistas com o cineasta.
Maria
Rita Galvão foi uma extraordinária professora de história do cinema e de cinema
brasileiro, atividade que exerceu no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo a partir de
1970, até se aposentar duas décadas depois. Orientou inúmeros trabalhos de
pós-graduação sobre cinema brasileiro (orgulho-me de ser sido o primeiro) de
pessoas que atualmente estão entre os de grande qualidade na área de estudos do
cinema no Brasil. Era conferencista clara e estimulante sobre assuntos de
cinema brasileiro.
Em
meados da década de 1970, alguns discípulos de Paulo Emilio na Universidade de
São Paulo se revoltaram contra o lastimável estado em que se encontrava o
acervo da Cinemateca Brasileira e decidiram que chegara o momento de modificar
a situação. Para tanto, reativaram juridicamente a instituição, convocaram seus
antigos criadores, recriaram diretoria e conselho. Maria Rita – que já havia
feito estágio de alguns meses na Cinémathèque Française/Musée du Cinéma em 1973
– dispôs-se a participar do movimento, embora declarasse que sua área de
interesse sempre fora a documentação e a pesquisa. A partir desse momento, e
embora nunca tenha se engajado profissionalmente na Cinemateca Brasileira,
Maria Rita assumiu um papel da maior importância na vida institucional. Como
membro do Conselho, da Diretoria (não remunerada) em diferentes posições,
assumindo cargos estratégicos nos momentos necessários, e finalmente presidente
do Conselho da Cinemateca Brasileira a partir de 1987, Maria Rita foi sempre um
sensor interno, tentando conciliar divergências e discordâncias, em nome de um
desenvolvimento institucional.
Em
1979, quando a Cinemateca Brasileira – relativamente reequilibrada – decidiu
retornar ao seio da FIAF, Maria Rita contou com o apoio de Cosme Alves Neto, da
Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que a introduziu à comunidade
internacional de arquivos reunida no congresso em Lausanne. Muitos anos depois,
Maria Rita recordou: No primeiro congresso eu tive sorte: tinha um
simpósio com um tema que eu conhecia bastante bem que era o cinema independente
europeu, a avant-garde, o Congresso de La Sarraz do qual o Cavalcanti
tinha participado. Portanto eu sabia histórias sobre La Sarraz que nem os
próprios suíços sabiam ou lembravam; tinha cartas entre o Cavalcanti e o
Eisenstein que eu conhecia. Enfim, acabei participando de um assunto que por
acaso eu conhecia bastante bem e daí, na medida em que as pessoas passaram a me
conhecer, eu dispensei ou podia ser dispensável a introdução do Cosme para
dizer: “olha aqui, vale a pena, é uma cinemateca brasileira”, etc.(*)
Com a
frequência sistemática aos congressos da FIAF a partir de então, Maria Rita
tornou-se a face internacional da Cinemateca Brasileira. “Eu sou meio falante,
eu falava razoavelmente bem as três línguas da FIAF, então participava muito”,
lembrou ela na mesma entrevista. Eleita pela primeira vez, no congresso da FIAF
de Berlim em 1987, para o Comitê Executivo da federação, participou do Conselho
até 1993, tendo ocupado a vice-presidência da Fiaf no último biênio.
Em
outubro de 1984, Maria Rita coordenou o III Encontro Latino-americano e do
Caribe de Arquivos de Imagens em Movimento, realizado na Cinemateca Brasileira,
com patrocínio da Unesco e da Fiaf. Havia muito tempo que os arquivos da
América Latina não se encontravam para discutir seus problemas técnicos e como
enfrentá-los diante da escassez de recursos que sempre caracterizou suas
atividades. Uma das consequências do Encontro foi a criação, no ano seguinte,
da Coordinadora Latinoamericana de Archivos de Imágenes en Movimiento – CLAIM –
que, para evitar polarizações e dissensões de caráter político “não possui
sede, ni dirigentes, ni cualquier otra instancia centralizadora, y que se
estructura a través de múltiplas coordinaciones paralelas, cada cinemateca
conducindo y coordenando los proyectos que propone” (**).
Outra
consequência, talvez indireta, do Encontro mas também relacionada à criação da
CLAIM foi a solicitação feita por Gabriel García Marquez, então presidente da
Fundación de Nuevo Cine Latinoamericano, e recebida pela Cinemateca Brasileira
no sentido de que a instituição elaborasse “un proyecto de construcción y
mantenimiento de un laboratório destinado a salvar el patrimônio” regional de
imagens em movimento (***). Como uma das líderes da CLAIM, Maria Rita discutiu
o assunto com os outros arquivos da associação e decidiu seguir a orientação de
García Marquez de pensar o projeto “de la manera más amplia y posible”.
Maria
Rita dedicou-se ao desenvolvimento do “Proyecto Centro(s) Regional(es) de
Restauración del Acervo Cinematográfico Latinoamericano” de forma integral
durante os anos seguintes. Quando um detalhado questionário sobre os acervos e
as condições em que estavam guardados, enviado aos arquivos da América Latina,
recebeu poucas respostas, Maria Rita, de 1988 a 1990, visitou praticamente
todos os arquivos latino-americanos levantando as informações necessárias. O
andamento do projeto foi discutido em inúmeras reuniões da CLAIM, mas as
dificuldades políticas da América Latina e o agravamento da situação econômica
mundial impediram sua concretização e levaram a seu abandono a partir de 1993.
Em
2006, quando a Cinemateca Brasileira acolheu em São Paulo o 62º Congresso Anual
da FIAF, Maria Rita Galvão havia se aposentado da Universidade de São Paulo e
há muitos anos vivia numa fazenda no interior do Estado. Independentemente
disso, saiu de seu retiro para atualizar as informações de sua extensa pesquisa
sobre o volume e as condições de conservação do patrimônio latino-americano de
imagens em movimento. Um resumo de sua comunicação no Congresso foi publicada
sob o título “La situación del patrimônio fílmico en Iberoamérica”, no Journal
of Film Preservation #71, julho 2006.
Os
arquivos latino-americanos muito devem a Maria Rita Galvão pelo seu empenho e
dedicação em conhecer e tentar superar seus problemas comuns.
Carlos Roberto de Souza
(*) Entrevista concedida a equipe da Cinemateca
Brasileira em 25 set 2007.
(**) Comunicação de Maria Rita Galvão, “Proyecto Centro(s)
Regional(es) de Restauración del Acervo Cinematográfico Latinoamericano”, La
Habana, abril de 1990.
(***) Telex de Gabriel García Marquez recebido em maioi de
1987.