A dramática situação em que a Cinemateca Brasileira se
encontra atualmente, ameaçada de fechamento pelo governo e de corte de
eletricidade por falta de pagamento, não tem uma explicação simples.
Em alguns comentários recentes, pode parecer que a
instituição vive uma situação oposta a uma “época de ouro”, nos anos 2000, quando
ela estava no auge de sua sempre difícil e conturbada existência. Assim, fica
parecendo simplesmente que a Cinemateca Brasileira viveu uma bonança na era
Lula e agora está no fundo do poço com o governo Bolsonaro. Isso é apenas meia
verdade.
Embora a derrocada atual da Cinemateca seja responsabilidade
do presente governo que, pela primeira vez na história, usou a instituição para
promover sua política de extrema direita, tendo anunciado em 2019 uma “mostra
de filmes militares” e a loteado com indicados do PSL, (então) partido do presidente,
a situação é mais complexa.
Isso porque a situação em que ela se encontra tem como origem
mais imediata a crise iniciada em 2013, durante o governo Dilma. E também
porque, na suposta era de ouro da Cinemateca na década de 2000, já se
encontravam os germes de sua crise atual, que tem a ver, sobretudo, com o papel
do Estado em relação à cultura e memória e a uma discussão sobre o modelo de
gestão das instituições públicas culturais.
Nos anos 2000, a Cinemateca Brasileira recebeu vultosos
investimentos do Ministério da Cultura através de uma associação privada sem
fins lucrativos, a Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC). Esses investimentos
consolidaram uma invejável infraestrutura e permitiram ações que deram grande
projeção à Cinemateca. Além do significativo investimento do governo Lula em
cultura e, particularmente, em cinema, o patamar atingido pela instituição foi possibilitado
pelo trabalho de uma geração de funcionários públicos que atuavam na Cinemateca
havia muitos anos, alguns inclusive incorporados ao serviço público quando a
instituição se transformou em órgão público federal em 1984. Essa fórmula
simples e careta funcionou bem: funcionários públicos (com estabilidade e plano
de carreira) tendo finalmente boas condições de trabalho.
Já a diretoria da Cinemateca nessa fase soube cavar os
recursos em aliança com a SAC, mas, como critiquei na época (e hoje considero
que estava correto), não olhou para o passado e nem para o futuro. Se preocupou
muito mais e apenas em capitalizar a situação (os entendidos entenderão). O seu
laboratório (montado com recursos públicos) seguia uma lógica comercial e não
havia nenhuma transparência ou clareza sobre as políticas de acesso, e taxas,
para o uso do acervo, diferentemente de instituições congêneres como a Biblioteca
Nacional ou Arquivo Nacional.
Houve investimento em equipamentos de ponta, e em muitos
coquetéis (o que sempre agrega simpatizantes), mas não houve concurso público. A
equipe foi ampliada através de contratos precários, muitos deles por PJ.
Muito dinheiro esteve disponível, mas não se desenvolveu,
por exemplo, um projeto de copiagem sistemática para novos suportes das
matrizes de nitrato de celulose, o que a maior parte dos arquivos de filmes
vinha fazendo desde os anos 1970 através do slogan (falso, mas funcional) “nitrate
won’t wait”.
Desse modo, quando ocorreu um novo incêndio na Cinemateca em
2016 – algo presente na sua história, mas que não ocorria havia décadas -, 40%
dos rolos de nitrato perdidos não tinham cópias no acervo. Se perderam para
sempre.
A Cinemateca também não olhou para o futuro, por exemplo, se
preparando adequadamente para o digital, em termos de equipe, práticas e
instalações. Hoje não temos um repositório público digital de confiança para a
gigantesca produção audiovisual realizada atualmente. Também seguimos perdendo o
nosso (novo, mas non tropo) cinema digital a cada dia.
A verdade é que oportunidades únicas foram perdidas nesse
período de vacas gordas.
A SAC serviu como “atalho” para o MinC fugir da burocracia
estatal, administrando recursos de projetos não necessariamente vinculados à preservação
audiovisual, razão de ser da Cinemateca. Se vangloriava de ser uma cinemateca “rica”,
o que faria qualquer pessoa experiente no campo da preservação audiovisual e minimamente
cética desconfiar.
Em 2013, o TCU bateu na Cinemateca e tudo mudou. O “atalho”
da SAC levantou suspeitas e motivou investigações. Os outrora intocáveis caíram.
Desde então, o Brasil mudou – os protestos de rua se
ampliaram, a economia desandou e uma crise política permanente se instalou. Os
recursos para a cultura minguaram, é claro. O que aconteceu com uma instituição
como a Cinemateca? A equipe (com exceção dos resistentes funcionários públicos)
passou a ser repetidamente feita e desfeita. Como formar um preservador – que deve,
a rigor, conhecer a história do cinema como arte e tecnologia e dominar ainda os
mais recentes avanços do digital – se ele vai trabalhar por projeto, contratado
e (se der sorte) recontratado a cada dois anos?
O laboratório da Cinemateca – um de seus principais recursos,
aparelhado para processos fotoquímicos e digitais – passou a funcionar
intermitentemente. Um exemplo gritante de desperdício de recursos públicos
diante da enorme necessidade de seus serviços.
Apesar de seus problemas, o bode expiatório era sempre a
máquina pública. Consequentemente, a solução de sempre era o modelo de gestão
da iniciativa privada. A privatização começou a ser ensaiada através de
contratos com Organizações Sociais (OS), tal como os governos do PMDB e do PSDB
vinham fazendo no Rio e São Paulo.
Em 2018, durante o governo Temer, o ministro da cultura Sérgio
Sá Leitão conseguiu o que queria: fechou um contrato com uma OS para gerir a
Cinemateca Brasileira. Aplicava-se à preservação audiovisual a mesma lógica
neoliberal do cinema brasileiro da lei de incentivo dos anos 1990 (não à toa,
também tucana): os recursos continuam públicos, mas o poder decisório é da iniciativa
privada. Esta, aliás, ainda ganha uns cobres, seja fazendo marketing gratuito
pago com impostos no caso da produção de filmes, seja capitalizando no que
possa com a Cinemateca Brasileira.
Na primeira reunião da classe cinematográfica com os novos
gestores da Cinemateca só se falou numa coisa: taxas, cobranças e tabela de
preços. A partir daí, o que se viu foi o espaço físico da Cinemateca ser
capitalizado de forma ainda mais selvagem: alugado para feira de vinhos,
gravação de programa Master Chef e por aí vai. É a lógica dos nossos empresários
à frente das instituições culturais. Uma nota pessoal para mostrar que não havia
nada de novo ali: o MAM-RJ, museu privado sem fins lucrativos, poderia ter sido
totalmente reconstruído e reaparelhado (incluindo a sua Cinemateca) se a fortuna
ganha nos gordos anos 2000 com o aluguel do seu espaço para eventos fosse
aplicado no museu. De festas de debutantes a casamentos, passando por eventos
corporativos, milhões de reais foram para o bolso dos amigos e quase nada para
o museu.
No final das contas, assim como dizem não haver almoço grátis,
nenhuma OS faz mágica. Ela pode ganhar uns cobres a mais, porém a conta é
sempre do Estado. Parou de pagar, fecha. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o
belo projeto importado de Bogotá das Bibliotecas Parque, no Rio de Janeiro.
Quando o governador (e atual detento) Luiz Fernando Pezão não pagou a OS, as
bibliotecas fecharam. Simples assim.
Entretanto, fechar mesmo que momentaneamente uma instituição
de guarda é um buraco mais fundo, pois significa, entre outros males, a
possibilidade de perda irreparável de seu acervo e, consequente, de nosso
patrimônio cultural.
Portanto, o problema da Cinemateca Brasileiro não é apenas do
atual governo, embora ele seja um mal grotesco. Mas mesmo que Bolsonaro caia,
ainda será preciso repensar o papel do Estado para a cultura e como ele pode exercer
essa responsabilidade no caso específico de instituições de crucial importância
para o nosso país como a Cinemateca Brasileira. Achar que é só retomar o que
existiu antes é ilusão. É preciso construir um outro modelo. Só assim a
Cinemateca pode não apenas sair do fundo do poço agora, como vislumbrar um futuro
melhor.
2 comentários:
Estimado Rafael: Estoy de acuerdo en que se debe pensar en otro modelo no sólo para las Cinematecas, sino para las relaciones del estado con las instituciones culturales, y aun más las que custodian patrimonio ( que es más complejo aún y tal vez hay que empezar por ahí) pero esta la clase política, las comunidades viendo esto? están dispuestas a "cambiar modelos"? yo veo un retroceso a nivel mundial si se trata de los estados y sus instituciones (la pandemia lo magnifica sin duda). tal vez, nos toca a las ciudadanos, una vez más hacer los cambios, proponer, reunirnos para escucharnos y apoyar a los especialistas.
Querida Lau Go, creio que não podemos desistir de lutar pelo modelo que consideremos o ideal. No fundo, é uma luta contra um neoliberalismo atroz, a versão mais cruel de um capitalismo selvagem tal como se encontra principalmente nas economias periféricas. É difícil, concordo, mas necessário, me parece. Um abraço.
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