Com este texto, começo a disponibilizar alguns dos melhores trabalhos dos alunos da disciplina Preservação, memória e políticas de acervos audiovisuais do curso de cinema da UFF no primeiro semestre de 2009. O tema da projeção de filmes é importante e o texto da Julia Vanini é uma pequena, mas significativa contribuição ao assunto.
A projeção nos circuitos alternativos, de Julia Vanini
Introdução
Quando o assunto ‘preservação de filmes’ é discutido, geralmente, é deixado de lado um tópico de importância extrema: a projeção dos filmes.
Obviamente, a primeira imagem que nos vem à mente é a projeção feita no circuito comercial. Mas estas referem-se a filme que contam com um número expressivo de cópias, todas novas.
Por mais que sejam tomados os cuidados básicos com a película nesse caso, a preservação do estado físico das cópias não chega a ser uma prioridade, uma vez que grande parte delas serão mesmo destruídas após o período de exibição nas grandes salas comerciais.
É por isso que este trabalho foca num outro lado da projeção: aquela feita no circuito alternativo, constituído por salas de cinema, principalmente, de centros culturais.
Nesse circuito alternativo, são apresentados ao público mostras e festivais, que trazem muitas vezes filmes raros, antigos, e que pouco (ou nunca) circularam no Brasil.
Minha intenção aqui é fazer crescer o interesse por esse lado da projeção e da preservação dos filmes, sem, no entanto, entrar em detalhes técnicos.
Foram feitas entrevistas com dois dos três operadores cinematográficos do Centro Cultural Banco do Brasil, o mais tradicional da cidade do Rio de Janeiro. Nessa sala, são apresentadas diversas mostras com diferentes e inúmeros enfoques, que dão a oportunidade do acesso a obras importantíssimas do panorama do cinema brasileiro e mundial.
Esses operadores descrevem o trabalho feito na cabine de projeção do CCBB, além de suas impressões sobre o trabalho de preservação e a profissão que exercem.
Utilizo aqui, como base, o texto “Projectionniste dans une cinematheque la Cinematheque quebecoise)”, uma espécie de manual para projecionistas, escrito pelos administradores da Cinematheque Quebecoise, que tomam como exemplo o trabalho de projeção de filmes nesse local.
Comparo aqui o trabalho dos operadores de cinemateca com os operadores de centros culturais, tomando como base a convivência constante que ambos apresentam com cópias merecedoras de tratamento mais, digamos, delicado.
Descrição do trabalho do operador e da cabine de projeção
Os operadores cinematográficos (como pedem para ser chamados, considerando o termo “projecionista” errado) do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro são terceirizados, vale a pena frisar, para ter a visão de que eles não são funcionários públicos. São três os operadores, que se revezam em três turnos: manhã, tarde e noite.
O período da manhã costuma ser ocupado por cabines de imprensa e sessões especiais, enquanto os turnos da tarde e noite apresentam a maior movimentação de sessões das mostras e festivais aprovados nos editais do banco.
Foram entrevistados: Alexandre Barbosa dos Reis e Kleber da Costa e Rocha, operadores no CCBB há 2 e 27 anos, respectivamente. Os dois estão geralmente juntos nos turnos da tarde e da noite.
Assim que o filme chega à cabine de projeção, é revisado por um deles, para que seja verificado o estado físico da cópia. É feito, então, um boletim de revisão de entrada da cópia, que é então comparado com o boletim da última revisão da cópia, que costuma vir anexado à lata. Assim, pode-se provar o estado em que a cópia chegou à cabine, para que seja possível detectar em que momento (projeção) ocorreu cada um dos “defeitos” apresentados pela cópia.
Uma característica importante dessa revisão é a sua diferente intenção. Não há aqui exatamente um intuito de preservar a cópia e detectar onde ela deve ser reparada, mas, sim, uma preocupação em se isentar das responsabilidades por qualquer dano na cópia, provando que ele não foi provocado na cabine de projeção em questão. Não tiramos, porém, a importância desses boletins de revisão de entrada feitos por eles.
Na cabine do CCBB podemos encontrar dois projetores 35mm, um projetor 16mm e uma enroladeira vertical automática.
Após a exibição, é feito um relatório sobre a projeção, no qual relatam qualquer acontecimento anormal que possa ter causado algum dano à cópia. Tanto o boletim quanto o relatório são para o controle do próprio CCBB, podendo os produtores das mostras obter cópias dos mesmos.
É necessário fazer testes com as cópias antes das projeções, para que não haja erros durante a exibição, principalmente nos quesitos áudio e janela. Com a exibição-teste, pode-se verificar também alguns aspectos do estado de preservação da cópia.
O Centro Cultural Banco do Brasil tem como regra a chegada do filme em, no mínimo, 48 horas antes da sua projeção. Assim eles garantem tempo suficiente para que a cópia seja revisada, montada e testada antes de sua exibição, garantindo, assim, uma sessão impecável.
Sabemos, porém, que isso nem sempre acontece. O fluxo corrido das cópias que acompanham as mostras, que muitas vezes acontecem simultaneamente em cidades e salas diferentes, acarreta na chegada em cima da hora das cópias à cabine, atrasando todo o trabalho dos operadores. E essa pressa é, muitas vezes, causadora de imprecisão, fator gravíssimo no tocante à preservação dos filmes.
Qualificação e aprendizado
Nesse tópico, fica evidente que muitos dos problemas e divergências entre operadores e preservadores têm origem na falta de um preparo mais aprofundado dos operadores profissionais.
Não existe, aqui no Brasil, um curso permanente que forme operadores cinematográficos. Deles é exigido o segundo grau de estudos completo.
Segundo descreve Kleber (que começou e por muito tempo trabalhou com o grupo Severiano Ribeiro), no antigo circuito comercial havia, além do operador cinematográfico, um ajudante – uma espécie de aprendiz – na cabine. Geralmente, um trabalhador do próprio grupo, mas que exercia outra função, era convidado a se tornar esse ajudante de operador, auxiliando e aprendendo na prática o exercício de projeção de filmes.
Após seis meses de aprendizagem, o auxiliar estava apto a se tornar operador cinematográfico e receber a companhia de um ajudante para si. Aprende-se, assim, na cabine, a montar e desmontar os filmes, além de fazer as emendas necessárias.
Kleber – que trabalhava como operador particular do próprio Severiano Ribeiro (na sala de cinema que este tinha em casa) – teve a oportunidade de participar da primeira (de duas) turma do curso para operadores cinematográficos oferecido pela Embrafilme.
Já Alexandre procurou por conta própria um curso oferecido pela Fundação Casa de Rui Barbosa, na qual Kleber também já ministrou algumas aulas.
Foi aí que adquiriram também algum conhecimento sobre a constituição da película e alguns conhecimentos um pouco mais aprofundados sobre preservação.
Cuidados com a cópia e com os equipamentos
Apesar de o trabalho do operador focar apenas na exibição dos filmes, alguns cuidados e reparos na cópia acabam por se fazerem necessários em alguns momentos.
Na cabine precisam, às vezes, trocar e refazer emendas prestes a arrebentar novamente, ou aquelas que ameaçam o sucesso da sessão. Contudo, eles não mexem nas perfurações, e nem fazem qualquer outro tipo de reparos na película, conscientes de que esse trabalho cabe a um restaurador.
Frequentemente recebem na cabine cópias em estados péssimos. Cabe a eles revisá-las e dizer se ela está apta ou não para ser exibida. Muitas vezes, recebem avisos dos organizadores da mostra para que tenham cuidados extras com certas cópias, por sua raridade ou por seu estado frágil.
A manutenção dos equipamentos da cabine de projeção do Centro Cultural Banco do Brasil é feito a cada seis meses, por uma equipe contratada de fora. Pelo menos um dos operadores deve estar presente no momento da manutenção, para que ajude na identificação dos problemas com o equipamento.
Conclusão
A conclusão desse trabalho não poderia ser outra além da afirmação de que um bom preparo dos profissionais que operam nas cabines cinematográficas é um passo importante, e praticamente esquecido, para a preservação dos filmes.
O primeiro passo talvez seja a valorização desse setor, um maior reconhecimento da importância desses profissionais, para que eles próprios se sintam incentivados a melhor entender sobre a película, e os cuidados necessários para preservá-la.
Encerro, então, com as palavras dos entrevistados, Kleber e Alexandre:
“a profissão de operador cinematográfico deveria ser muito mais respeitada, não só pelo público em geral, mas também pelos produtores, as pessoas que trabalham com cinema. A gente não é muito reconhecido pela classe que faz cinema, geralmente tratam a gente como se fosse a ponta, lá no final do rabicho, né? Gostaria de falar só isso, que tem que respeitar mais o profissional que trabalha dentro da cabine de cinema.”
(Alexandre Barbosa dos Reis)
“(...) fazer esse reconhecimento, porque nós não somos aquela ponta lá. Na verdade, nós somos a ponta principal, porque você, antes do espectador, do diretor e de toda a sua produção, no meio, tem o projecionista, o operador, o cara que vai botar aquele filme na tela. Porque o diretor não vai botar, o filme não vai pra tela sozinho, se não tiver uma pessoa para apertar o botão. E essa pessoa que vai apertar o botão somos nós, e é um serviço que, hoje as sala são pequenininhas, duzentos, trezentos lugares, mas eu já fiz projeções para muita gente numa sala só. No Tijuca, Roxy, América, Carioca. Passava filme para duas mil pessoas, com várias sessões.”
(Kleber da Costa e Rocha)
Bibliografia:
AUGER, François. Projecionista de Cinemateca (caso da cinemateca do Quebec). Journal of Film Preservation, FIAF, Número 67, 2004
Entrevistas concedidas à autora no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em 19 de Junho de 2009.
4 comentários:
Ei, Julinha.
Tem razão quando diz que a profissão deveria ser mais reconhecida, no sentido em que deveriam ser dadas melhores condições de trabalho, mais tempo etc. Mas um dos grandes problemas dessas exibições alternativas no Brasil é também a falta de comprometimento desses próprios profissionais, que sentem falta desse tal reconhecimento mas, ao mesmo tempo, não assumem como em parte responsabilidade deles o melhor cuidado com as cópias, mas apenas da instituição, da produção das mostras etc. Isso fica claro quando você diz que eles, por exemplo, não fazem reparos em perfurações "conscientes de que esse trabalho cabe a um restaurador". Esse discurso é comum em revisores (a revisora daqui também dizia que não refazia emendas, mas sim cortava fotogramas porque "é revisora, não técnica"). Mas sabemos que não é bem assim, porque cortar um fotograma no Harry Potter não é tão problemático, mas numa cópia única de um filme brasileiro raro etc. já é mais embaixo, e os projecionistas em geral não parecem ter essa consciência. Não estou centrando a culpa neles, mas com certeza em geral eles reclamam de tempo, condições de trabalho (e estão certos), mas também se isentam totalmente de qualquer responsabilidade (se o filme não passar bem eles não têm nada a ver com isso; se eles tiverem mais tempo eles vão continuar fazendo o estritamente necessário e/ou cortando fotogramas, riscando a emulsão dos filmes para fazer marcas de projeção, não reparando perfurações...). Eu acho que as próprias instituições (CCBB, por exemplo) têm que ser convencidos de que o tratamento deve ser outro, começar a exigir esse outro tratamento e então um treinamento específico para esses locais poderia começar a ser feito e dar, efetivamente, resultado.
Um beijo, Natália.
É triste ver comentários como esse da nati. Parece que ela não conhece nem um pouquinho da realidade que vivemos. Deveria pesquisar mais, e não viver num mundo de faz de conta. Que pena!!!
Klebe,
em que momentos do meu comentário você observou essa ignorância em relação à realidade de vocês de que você fala?
Alex, tem razão. Mas eu não disse que devemos cortar um fotograma do Harry Potter, pelo contrário. Não acho que devemos cortar fotograma nenhum. O que eu disse é que cortar um fotograma numa cópia de exibição brasileira de Harry Potter não ameaça a sobrevivência daquela obra, mas a prática de cortar fotogramas por anos e anos em cópias brasileiras nos deixou muitas vezes materiais mutilados como único material de preservação de uma obra. Claro que esses materiais não deveriam ser os materiais de preservação, mas o que aconteceu ao longo de anos e décadas foi que, muitas vezes, foram os únicos materiais restantes, o que dá às nossas cópias muitas vezes um outro peso.
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