Um trabalho que escrevi durante o doutorado para uma disciplina sobre o gênero musical ministrada pelos profs. João Luiz Vieira e Fernando Morais.
A cor, a vida e a arte em Os Sapatinhos Vermelhos
Introdução
Dadas as circunstâncias particulares em que esse texto foi escrito, espero que permitam certa dose de informalidade em seu estilo, freqüentemente assumindo a narração em primeira pessoa, o que espero não prejudicar seu resultado final.
Estando há alguns dias em Los Angeles, a milhares de quilômetros de Niterói, as aulas do curso sobre o gênero musical na sala de projeção do IACS, apesar de extremamente interessantes e proveitosas, pareciam uma realidade distante e a definição do tema para o trabalho final, uma tarefa difícil. A idéia para este texto surgiu apenas no dia 1º de agosto, quando fui pela primeira vez ao Billy Wilder Theater, a sala de cinema do UCLA Film and Televison Archive, assistir à estréia nos Estados Unidos da cópia restaurada pela própria UCLA do filme britânico The Red Shoes, dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger, e lançado em 1948.
“The Red Shoes restored”, como o programa era chamado nos jornais locais, fora exibido com sucesso no Festival de Cannes e essa estréia americana seria precedida por uma introdução do restaurador do filme, Robert Gitt. (1) Sabendo disso, decidi chegar com antecedência ao cinema, localizado dentro do prédio do Hammer Museum, a poucos quarteirões do campus da universidade e relativamente próximo a minha casa.
Chegando lá cerca de cinqüenta minutos antes do início do filme, encontrei uma fila relativamente longa, que logo descobri ser para comprar ingressos para a sessão, marcada para as 19h30. As vendas ainda não tinham sido sequer iniciadas, pois os atendentes deviam antes esperar a retirada dos ingressos vendidos pela internet, além daqueles destinados aos Cineclub members. A tensão na fila foi crescendo conforme o tempo ia passando e as vendas não eram liberadas, sob a alegação de que deveria se verificar primeiro quantos ingressos iriam sobrar. Um funcionário do cinema, de tempos em tempos, contava o número de pessoas na fila e estimava quem ainda seria felicitado com a entrada. Alguns desistiam, comprando ingressos para as três outras apresentações de The Red Shoes nos dias seguintes. Eu esperava tranqüilo, pois na segunda recontagem minha entrada já tinha sido aparentemente “garantida”, embora a fila tivesse dobrado de tamanho desde a hora em que cheguei.
Entretanto, por volta das 19h20, com ingressos sendo vendidos a cota-gota, comecei a ficar apreensivo. Um acontecimento pitoresco se deu quando um homem bem vestido anunciou para a fila que tinha um ingresso sobrando e que venderia por vinte dólares. O funcionário do cinema o reprimiu asperamente falando que cambistas não eram permitidos, mas um companheiro de fila, compreensivelmente revoltado uma vez que o ingresso custava nove dólares, reagiu de forma mais impulsiva, com xingamentos e fazendo sinal de “banana” com os braços. Poucos minutos mais tarde, quando minha vez no guichê já estava próxima, outro senhor – esse mais simpático – que parecia esperar até o último minuto sua companhia que não chegava, me perguntou se eu estava sozinho e me deu o ingresso extra que tinha às mãos para pode entrar correndo para a sala, pois já passava da hora.
No final de contas, entrei de graça e consegui um lugar na segunda fila do cinema de aproximadamente trezentos lugares que se encontrava completamente lotado. Logo as luzes se apagaram e um apresentador chamou ao palco Robert Gitt, que começou sua fala enquanto imagens na tela ilustravam suas palavras. O restaurador falou um pouco do próprio processo de filmagem em Technicolor, com sua câmera que, através de um prisma, dividia a luz da objetiva para três negativos preto-e-branco que corriam sincronicamente e eram individualmente sensibilizados para as três cores primárias: verde, azul e vermelho.
Os negativos originais do filme encontravam-se preservados no National Film and Television Archive (NFTA), arquivo nacional vinculado ao British Film Institute, mas a emulsão tinha sofrido danos causados por fungos, que se alimentam da gelatina que mantém em suspensão os grãos de prata da imagem. Entretanto, esses problemas não apresentaram grandes dificuldades para a restauração digital em 4K, uma vez que o escaneamento com wetgate (janela molhada) já eliminaria boa parte desses problemas. O maior desafio se deveu ao fato de que algumas cenas apresentavam problemas na sobreposição das cores, com os tons azuis flutuando pouco acima do contorno das pessoas e objetos e os tons vermelhos pouco abaixo. Conforme Gitt, para acelerar a dispendiosa produção de The Red Shoes, foram utilizadas pelo diretor de fotografia Jack Cardiff duas câmeras Technicolor e aparentemente uma delas apresentou problema na sincronização – que deveria ser absolutamente perfeita – entre os três negativos, resultando no desalinhamento das cores no momento de sobreposição das matrizes na cópia final colorida. Esses problemas foram em grande parte amenizados, embora mesmo na versão restaurada, caso se olhe com muita atenção (e com certa dose de má vontade), ainda seja possível identificar quais foram as poucas cenas feitas com a câmera defeituosa.
Como sempre ocorre nas apresentações de filmes restaurados, imagens de “antes” e “depois” foram exibidas, provocando justificados murmúrios de admiração na platéia. Robert Gitt encerrou então sua simpática e instrutiva apresentação, sendo seguido por um vídeo em que o cineasta Martin Scorcese – diretor da The Film Foundation, promotora da restauração patrocinada pela Hollywood Foreign Press Association e pela Louis B. Mayer Foundation – também introduzia a sessão. Além de nomear e agradecer os responsáveis pela feitura do filme e por sua restauração, Scorcese recordava de quando assistiu à obra de Powell e Pressburger pela primeira vez, destacando como talvez o “mais belo filme em Technicolor jamais realizado”.(2)
Essa introdução ao trabalho – relatando minha própria introdução à visão do filme numa cópia 35 mm irrepreensível (que eu tinha visto pela primeira vez há cerca de um ano atrás, numa bem cuidada edição em DVD do selo Criterion) – tem como objetivo justificar a escolha deste filme para o trabalho final, apesar de ser questionável defini-lo como um musical. Afinal, The Red Shoes não tem canções e seus números de dança (mais do que números musicais) são sempre diegeticamente justificados como apresentações da companhia de balé. Entretanto, como estou neste exato momento escrevendo uma tese de doutorado que questiona definições rígidas e essencialistas sobre os gêneros cinematográficos, acho bastante compreensível minha escolha recair sobre um título que talvez desafie esse tipo de definição rígida e determinista. Independente de ser um musical, um drama ou um “backstage drama about music and dance”, trata-se de uma obra que levanta questões relevantes a temas abordados pelo curso sobre os limites entre vida, arte e entretenimento. Por esse motivo também, será feita uma breve referência comparativa ao filme A Roda da Fortuna (The Band Wagon, Vicente Minnelli, 1953) na conclusão do texto.
Por fim, The Red Shoes se presta perfeitamente ainda a uma análise que leve em consideração a questão da cor no cinema, sobretudo quando obtida através do histórico processo Technicolor número 4, utilizado em tantos outros musicais dos anos 1940 e 1950, muitos dos quais vistos e discutidos em classe, como os clássicos da MGM Um dia em Nova Iorque (On the town, Gene Kelly e Stanley Donen, 1949), A roda da fortuna ou Sete noivas para sete irmãos (Seven brides for seven brothers, Stanley Donen, 1954), entre outros.
A cor no cinema em geral e no musical em particular
Assim como se tornou quase um clichê dizer que o cinema silencioso nunca foi silencioso (apesar de algumas vozes discordarem radicalmente dessa afirmação, como a de Rick Altman), novos estudos, pesquisas e descobertas nos arquivos de filmes estão colaborando para consolidar a noção de que o cinema silencioso nunca foi também somente preto-e-branco.
Desde os primórdios do cinematógrafo – que pode ser visto como mais um elo da longa história das tecnologias e dos formatos de representação visual – já existia diferentes procedimentos para dotar de cor as imagens fotográficas em movimento, como a pintura manual direta e praticamente artesanal dos fotogramas ou o mais mecanizado sistema de pintura por estêncil, colocado em prática em grande escala no começo do século XX pela então poderosa Pathé, através do pathécolor.
Sucedendo e existindo concomitantemente à fotografia (que também utilizava a pintura manual e por estêncil), aos espetáculos de lanternas mágicas (com o brilho de suas cores projetadas nas imagens em placas de vidro) e aos panoramas (que buscavam através do realismo de suas pinturas “transportar” os espectadores para outras espaços e épocas), o cinema não podia se contentar com imagens monocromáticas da realidade colorida, meras “sombras da vida”, como escreveu Máximo Górki, em 1895.
De fato, muitos filmes desde o início do cinema – inclusive na histórica primeira sessão dos irmãos Lumière em Paris, em 1895 – foram apresentados em versões coloridas, em cópias tintadas (em que o suporte da película recebia uma cor, que substituta o branco), viradas (em que outro sal metálico ou colorante substituía a prata e, conseqüentemente, o preto) ou com ambos os processos conjugados.
Além do processo de tintagem ou viragem, o período entre 1911 e 1928 presenciou a agressiva concorrência entre diferentes métodos que buscaram captar fotograficamente a realidade em cores (cf. USAI, 2000). Entretanto, as dificuldades técnicas eram imensas e a irregularidade de todos os processos resultava em cópias ou projeções distintas umas das outras, além de altamente dispendiosas.
Lançado em 1928, o Technicolor Process n. 3 representou uma revolução na tecnologia do cinema, embora utilizasse, como diversos outros métodos, a simplificação para apenas duas cores primárias. Dessa forma, o verdadeiro marco se deu com o Technicolor Process n. 4, lançado em 1930, quase concomitantemente ao advento do som no cinema e, conseqüentemente, com o surgimento do gênero musical.
No artigo Sound and Color, Edward Buscombe (1978) apontava que antes da introdução do Technicolor n.4 (mas também durante o apogeu desse sistema), as cores eram utilizadas, sobretudo, em gêneros como a animação, musical, western, filme de época ou comédia fantástica – todos mais associados a representações menos preocupadas com a “vida como ela é” –, em detrimento dos gêneros majoritariamente preto-e-branco como os cinejornais, documentários, filmes criminais, filmes de guerra etc. A partir da leitura de um manual técnico – Elements of Color in Professional Motion Pictures (1957) –, Buscombe procurou demonstrar que as cores eram utilizadas para mostrar não a realidade em si, mas como o público deveria entendê-la, estando seu uso sempre submetido aos ditames da narrativa ou do estrelismo, mesmo que em confronto direto com o que seria o “real”. Nos gênero fantástico e no musical, os elos com a realidade poderiam se esgarçar ainda mais, pois, conforme o manual:
Filmes musicais e fantásticos são mais abertos às oportunidades ilimitadas para o uso criativo da cor. Aqui nós não somos amarrados pela realidade, passada ou presente, e nossas imaginações podem voar. Os filmes musicais e fantásticos são geralmente concebidos para prover aos olhos o mesmo prazer que a música proporciona aos ouvidos.
Desse modo, até o filme colorido se tornar padrão da indústria (o que só aconteceria no final da década de 1960), segundo Buscombe a cor não precisava servir ao realismo, ela devia simplesmente prover prazer – e esse prazer seria geralmente uma celebração do luxo ou do espetáculo, ou ainda da própria tecnologia do cinema, como também aconteceria no caso do Cinerama, do CinemaScope e do 3-D etc., todos obviamente coloridos.
Num artigo mais recente e fruto de pesquisas históricas mais rigorosas, o especialista em “primeiro cinema” Tom Gunning (1994) apontou de forma mais enfática o papel contraditório da cor no cinema, que, além de satisfazer o desejo por realismo (a cor como índex do real), pode também surgir com “pouca referência à realidade, como uma presença puramente sensual, um elemento que pode até mesmo indicar a divergência da realidade”. Além disso, no período de “invenção da vida moderna”, tanto no cinema como em outras mídias e meios (publicidade, literatura, design gráfico etc.), “as cores carregariam conotações de novidade e apareceriam como seleções especiais contra o panorama de imagens monocromáticas”. No cinema silencioso em particular, a adição da cor aos filmes “não se ressentia da ausência de naturalismo. Pelo contrário, o uso arbitrário e não-natural das cores, mais intenso que a realidade, permitia às cores serem experimentadas como uma poder nelas mesmas, ao invés de apenas uma qualidade secundária dos objetos”.
Mesmo no cinema sonoro, nos filmes musicais, em especial, o “poder metafórico das cores” continuou presente, tendo como exemplo clássico o filme O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, Victor Fleming, 1939) com sua diferenciação entre o preto-e-branco realista, sóbrio, dramático (a paisagem árida do Kansas) e o colorido mágico, irreal e musical (a terra fantástica de Oz). De certa maneira, isso se repetiu na refilmagem pop-black O mágico inesquecível (The Wiz, Sidney Lumet, 1978), com a diferenciação entre um subúrbio pastel e um universo urbano-fantástico de grafite e neon.
As cores extremamente intensas e saturadas do processo Technicolor n.4 eram obviamente um elemento que reforçava esse apelo às cores como atrações em si próprias, sobretudo antes da introdução dos grandes formatos panorâmicos. A partir da análise do filme The Red Shoes, exemplo de um exuberante filme em Technicolor ainda em formato acadêmico (1:1,37), destacarei a cor – juntamente com o cenário e figurino – como uma potencia que amplia as principais questões temáticas discutidas pela obra.
A cor dos sapatinhos vermelhos
Reunidos sob a designação de Os Arqueiros (The Archers), Michael Powell e Emeric Pressburger trabalharam juntos em diversos filmes que são considerados verdadeiros clássicos do cinema britânico. Grande parte do prestígio que as obras dessa dupla desfrutam atualmente se deveu ao trabalho do então National Film Archive (NFA), que preservou, restaurou e colocou em circulação cópias de seus principais filmes, auxiliando sua descoberta pelos críticos e público contemporâneo.
Os sapatinhos vermelhos (The Red Shoes) é talvez o mais aclamado trabalho de Powell e Pressburger, não tendo obtido na época grande repercussão no Reino Unido, mas tendo vindo a ser tornar um dos filmes britânicos de maior sucesso em todos os tempos nos Estados Unidos.
Tematizando a criação artística, o filme apropriadamente começa no cenário de um teatro, onde estudantes correm para pegar um lugar na platéia para assistir a um balé. Desde o início já se nota a perfeita triangulação entre os três protagonistas do filme: no lugar mais barato, alto e central, o promissor estudante de música Julian Craster (Marius Goring) vai assistir ao espetáculo de dança interessado apenas na trilha musical composta por seu professor; numa lateral, a jovem bailarina Victoria Page (Moira Shearer), assiste ao balé do camarote acompanhada de sua aristocrática tia; e em outra lateral, Boris Lermontov (Anton Walbrook), o temperamental diretor da companhia, está presente à estréia de sua nova produção. A maior parte das ações ocorre na própria platéia (Julian percebe que foi plagiado pelo professor e Lady Nelson, tia de Vicky, convida Lermontov para uma recepção em sua casa), tendo pouca importância e merecendo poucos planos o que ocorre no palco. Ou seja, trata-se de uma trama de bastidores que começa na platéia e posteriormente migrará, junto com seus personagens, para os bastidores propriamente dito.
Em diferentes circunstâncias, Julian e Vicky acabam sendo convidados por Lermontov para entrarem para a companhia. Fica claro o comprometimento que o diretor exige de seus artistas com o ofício de criar Arte. Ao ser questionado o motivo pelo qual ela dança, a candidata à bailarina deixa o diretor sem palavras (e admirado) ao replicar: “Por que você vive?”. Dançar é muito mais que apenas um desejo – como viver, deve ser uma necessidade ou um impulso inexplicável. Ao mesmo tempo, o talento para a arte é um dom, um privilégio de poucos e invejado por muitos, como se deduz da primorosa fala de Lermontov quando sugere a Julian não levar adiante a descoberta do plágio pelo seu professor: “Ter que roubar é muito pior do que ser roubado”.
O próximo projeto da companhia Lermontov é um balé baseado na fábula de Hans Christian Andersen, Os sapatinhos vermelhos. Ao contar a trama, percebe-se o fascínio e entusiasmo do diretor pela história da moça que recebe um par de sapatos mágicos que a faz dançar maravilhosamente, mas também ininterruptamente. Do mesmo modo, nota-se seu divertido descaso e desinteresse pelo final do conto de fadas, que termina com a morte da bailarina, completamente esgotada. O projeto do ambicioso Lermontov é de uma obra de arte total, a junção de música, teatro, dança, pintura e literatura, sendo a companhia uma reunião de diferentes talentos a serviço de uma só criação, guiada por ele.
O filme evolui de forma leve e com toques de humor ao mostrar a dura rotina de ensaios da companhia em suas viagens e apresentações por toda a Europa, assim como as diversas tramas de bastidores. Novamente, poucos planos dos próprios espetáculos são mostrados, enquanto os artistas, quando retratado fora dos palcos, agem de forma espetacular e exageradamente teatral, seja a exagerada e emotiva primeira bailarina Irina (Ludmilla Tchérina) que larga a companhia para se casar, o exigente e histérico coreógrafo Grischa (Léonide Massine) ou o rígido e “britanicamente” controlador Lermontov.
Quando a companhia viaja para a paradisíaca Monte Carlo para ensaiar o novo balé, ocorre uma reviravolta no filme. Ao receber um convite para um encontro com Lermontov, Vicky se veste para uma cerimônia de gala, com vestido longo e jóias luxuosas (que incluem até uma pequena coroa). Entretanto, o que ela imaginava ser um jantar, era somente uma reunião de trabalho na qual ela era escolhida para substituir Irina como primeira bailarina e Julian para compor a música original para o balé. Nesse momento, quando os dois jovens talentosos e esforçados finalmente ganham a chance de brilhar no palco, o filme começa a elaborar textualmente o embricamento das fronteiras entre arte e vida, palco e bastidores, realidade e fantasia. A imagem de Vicky literalmente vestida como uma princesa subindo as escadas de um castelo em ruínas, que poderia ter sido retirada de um conto de fadas, antecipa a cena bastante banal em que ela é anunciada como a protagonista do balé baseado no conto de Christian. Ou seja, estranhamente vestida como uma princesa numa cena real, mas “fantástica”, ela descobria que viria a ser a heroína da fábula encenada nos palcos.
Na cena seguinte, Vicky e Julian, músico e bailarina, se encontram na sacada do hotel e conversam sobre os acontecimentos daquele dia. O cenário é explicitamente falso, com o mar e o céu reproduzidos no cenário pintado. Se o azul das águas do mediterrâneo já parecia de uma verdade excessiva pelas cores do Technicolor, ele passava a ser literalmente pintado e francamente artificial. Essa mudança de um regime mais realista para um francamente formalista – que a princípio pode parecer brusca na trama do filme –, já vinha sendo trabalhado pela fotografia de cores extremamente vivas da paisagem de Monte Carlo. Ao mesmo tempo, significa também um momento-chave para os dois jovens, quando diante da grande oportunidade, a vida parece mais artificial – não no sentido de “falsa”, mas de menos importante – e a arte passa a representar suas verdadeiras e únicas realidades.
Durante todo o período em Monte Carlo – dos ensaios à apresentação – as paisagens reais quase desaparecem e o filme passa a operar praticamente todo em interiores. No escritório de Lermontov, cenário recorrente da trama, a janela mostra sempre uma paisagem pintada, artificial. O mundo exterior torna-se distante do universo dos membros da companhia, especialmente do diretor, restritos exclusivamente ao palco e seus bastidores.
A seqüência da estréia de Os sapatinhos vermelhos é um momento crucial para o filme. A apresentação começa com o ponto de vista da platéia, com o palco ocupando todo o espaço da tela enquanto as cortinas se abrem. Curiosamente, a partir daí, o palco perde todo tipo de barreiras e fronteiras e suas três paredes desaparecem por completo. A história de Anderson é apresentada numa longa seqüência que usa praticamente todos os tipos de recursos disponíveis para um filme de 1948. A obra de arte total de Lermontov passa a abranger, com Powell e Pressburger, também o próprio cinema. Reproduzindo irrealisticamente o que poderia ser o balé The Red Shoes, o filme faz uso de cortes diversos na edição, de backscreen projection, de sobreposições de imagens, de ilusões de ótica baseadas em palcos infinitos ou de repetidos truques de aparição/desaparição Meilèsianos. Ou seja, o balé é a vida dos protagonistas do filme e não há limites para sua forma de representação, apelando a todos os recursos cinematográficos disponíveis que possam auxiliar a realização dessa obra. O balé dentro do filme é um louvor à possibilidade do cinema ser conjugado às outras artes na reprodução da beleza artística. Talvez por essa noção de não apenas reproduzir, mas recriar o balé no cinema, é que o filme é considerado um dos mais belos filmes sobre dança já feitos. (3)
A cor, obviamente, é um elemento de grande força no balé do filme, a começar pelos sapatos extraordinariamente vermelhos, numa referência à cor como símbolo da tentação, do desejo e do perigo, sobretudo diante do verdadeiro Fausto que é a figura do sapateiro que cria e oferece o maligno par de sapatinhos. A exuberância e, ao mesmo tempo, a ausência de naturalismo no uso das cores ao longo das seqüências de dança (a maquiagem vermelha em torno dos olhos de Vicky, além de seu cabelo ruivo dotam sua imagem de um tom quente constante) parecem uma referência clara ao uso sensual das cores típico do cinema silencioso. Não há um mundo real e um artificial – apenas o mundo do espetáculo. A platéia nunca é mostrada (quando aparece, posteriormente, em planos que focam Julian conduzindo a orquestra, novamente é claramente um cenário pintado, propositadamente artificial, desimportante, imóvel e sem vida), e os pontos-de-vista durante o balé nunca são o do espectador da audiência diegética.
Como uma obra completa dentro do próprio filme, o balé se encerra com um plano frontal do palco com as cortinas se fechando. Conforme Rick Altman (1987, p. 265), para um musical típico esse seria o final clássico. Afinal, temos o casal de artistas felizes, platéia feliz e o espetáculo criado, apresentado e aplaudido.
Mas trama do filme continua após o estrondoso sucesso de The Red Shoes, da atuação de Vicky e da música de Julian, obviamente se encaminhando para a paixão entre os dois jovens. O romance provoca os ciúmes e a ira de Lermontov, para quem a arte está acima da vida, e o amor pelo balé (e conseqüentemente por ele) deve estar acima da paixão mundana. A tensão chega ao ponto do diretor demitir Julian e obrigar Vicky a escolher entre um (representando o amor pela dança) e outro (o homem que ela ama). Lermontov perde a briga quando Vicky e Julian largam a companhia para se casarem.
O tempo passa e assim como o diretor se ressente da ausência de sua grande descoberta, Vicky sente saudades do balé, enquanto Julian investe em sua nova composição. Em oportuna visita à Monte Carlos acompanhada de sua tia, a bailarina reencontra Lermontov e acaba sendo seduzida a retornar à companhia para estrelar novamente The Red Shoes. Poucos minutos antes de sua apresentação, Julian – que falta à estréia de sua composição em Londres – surge repentinamente no quarto de hotel em Monte Carlos, confrontando Vicky. Dessa vez é ele quem a obriga a escolher entre um e outro, mas Lermontov – e o balé – acabam sendo escolhidos dessa vez.
Aos prantos e destroçada emocionalmente, ela vai sendo levada para o palco, mas a visão dos sapatos vermelhos a faz sentir-se como a própria protagonista da fábula de Anderson, encaminhando-se para a dança que será sua glória, mas também seu martírio. A bailarina sente-se escrava de sua arte como a moça de seus sapatos enfeitiçados. Em desespero, Vicky corre pelo hotel e passando pela mesma (falsa) sacada de hotel onde se encontrara com Julian no início de seu romance, desaba do alto, caindo na linha do trem. A articulação entre aquele mesmo cenário claramente artificial do hotel (onde a fumaça e o apito eram símbolos, mas não índex, do trem) e o cenário real da linha de trem onde ela cai (referência provável ao pioneiro filme de Lumière), é uma pungente metáfora do rompimento com um mundo idealizado, belo e falso, para uma vida possivelmente dolorosa, mas real. Mais do que uma analogia simplista, a ligação imagética entre os sapatos vermelhos e o sangue carmim que passa a cobrir o vestido de Vicky é um belo exemplo do uso metafórico da cor no cinema, representado os limites estreitos entre a possibilidade de a arte servir como impulso, mas também como negação da vida (ou seja, a morte). O vermelho como símbolo da paixão, nascimento e morte ganha uma enorme beleza e reverberação em The Red Shoes ao questionar o equilíbrio entre o amor pela arte e o amor pela vida.
Conclusão
Apesar de se aproximarem pela mesma trama de duros ensaios e intrigas constantes nos bastidores de um espetáculo bem-sucedido, podemos dizer que o filme de Powell e Pressburger se distancia radicalmente em outros aspectos do musical A Roda da Fortuna, no qual está presente a tradicional sintonia entre o sucesso nos palcos (na arte) e nos bastidores (na vida). The Red Shoes questiona ainda, como lembra Rick Altman (1987, p. 228), “a correlação entre prazer do artista e prazer do público” tão cara a diversos musicais.
O famoso número musical Dancing in the dark é um exemplo da sugestão, sensível e elaborada, de que a compreensão na arte (na dança) entre os protagonistas resulta em igual compreensão no relacionamento pessoal (no amor), tendo como cenário um local inusitado como um parque que se transforma imediatamente num palco para os dançarinos. Nesse sentido, o sucesso do (segundo) show dentro do musical da MGM caminha junto com o enlace amoroso entre os personagens Tony Hunter (Fred Astaire) e Gabrielle Gerard (Cyd Charisse) na direção da resolução final de todos os conflitos, pessoais, financeiros e artísticos, inclusive com o diretor Jeffrey Cordova (Jack Buchanan), dotado da humildade que falta em Lermontov. Aliás, essa característica parece ausente do diretor de The Red Shoes, pois, como sugere Altman, por ser escravo dos palcos, ele precisa ser o senhor dos dançarinos.
Se o filme de Vincente Minelli proclama, como diz a música símbolo That’s Entertainment, que o “o mundo é um palco, e o palco é um mundo de entretenimento”, o apagamento das fronteiras (e das diferenças) entre palco e realidade serve a uma sugestão de possível e desejável harmonia entre a vida, a arte e entretenimento. Conforme Altman (ibid, p. 265), Os sapatinhos vermelhos apresenta o “palco como um pesadelo”, revelando um final muito distante do happy-end coletivo de A Roda da Fortuna. Desse modo, utiliza criativamente procedimentos realistas e não-realistas, muito calcados no uso da cor, para refletir sobre os limites freqüentemente mais dolorosos e inconciliáveis entre a criação artística e a vida pessoal.
Referências principais:
ALTMAN, Rick. (1987) The American Film Musical. Indianapolis: Indiana University Press.
BUSCOMBE, Edward. (1978) Sound and Color, Jump Cut, n.17, abril. Disponível em: http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC17folder/SoundAndColor.html
GUNNING, Tom. (1994) Colorful Metaphors: the Attraction of Color in Early Silent Cinema. Fotogenia, n.1. Edição especial: il colore nel cinema. Disponível em: http://www.muspe.unibo.it/period/fotogen/num01/numero1d.htm
USAI, Paolo Cherchi. (2000) Silent Cinema: an introduction. London: BFI.
1) Sobre a exibição do filme em Cannes, conferir o blog do crítico Kléber Mendonça Filho sobre essa sessão: http://cinemascopiocannes.blogspot.com/2009/05/scorsese-apresenta-red-shoes.html
2) Aobra de Michael Powell (1905-1990) foi revisada nos anos 1970 em parte devido à admiração manifestada por cineastas como Francis Ford Copolla e o próprio Scorcese. É interessante salientar que em 1984 Powell se casou (e permaneceu casado até sua morte) com Thelma Schoonmaker, amiga, montadora e parceira de longa data de Scorcese, que co-coordenou a restauração de The Red Shoes.
3) Essa afirmação do cinema como parceiro das demais expressões artísticas mais nobres na criação do espetáculo encontra uma ligação com uma discussão sempre presente no filme sobre a hierarquização das diferentes artes, seja no começo do filme, quando os estudantes de música discutem com os estudantes de dança, cada qual interessado em um distinto aspecto do balé; seja quando Julian demonstra seu desejo em compor música para ópera, provocando o agressivo Lermontov ao dizer que muitas pessoas consideram balé uma arte de segundo escalão.
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