Este é um texto que escrevi em 2009 para a revista virtual "Projeções", que aparece aqui numa versão revista.
A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento.
por Rafael de Luna Freire (rafaeldeluna@hotmail.com)
Em seu livro sobre a história dos arquivos de filmes e da
preservação audiovisual, Penelope Houston – por décadas a editora-chefe da
revista inglesa Sight and Sound – relatou o episódio em que um
experiente crítico, sentado numa sala de cinema ao seu lado, certa vez divagou
sobre de onde vinha aquela luz que atingia a tela no momento de projeção dos
filmes. [1]
Esse “causo” servia apenas para ilustrar o argumento da
autora de que mesmo pessoas que estudam, pesquisam, conhecem, amam e estão
bastante familiarizadas com a experiência cinematográfica podem revelar uma
completa ignorância sobre tudo que está “por trás” dos filmes na tela. De modo
mais simples, sob a forma de uma pergunta que pode se assemelhar ao inevitável
questionamento das crianças sobre a origem dos bebês, trata-se de perguntar de
onde vem os filmes, afinal?
Quantos de nós já fizemos essa pergunta? E quais seriam as
respostas que nós ouviríamos a essa questão? Uma delas seria que por trás e na
própria tela o que temos é simplesmente o
filme. Essa resposta assume como certo o fato de que qualquer espectador em
uma sala de cinema – como também em frente à TV ou ao monitor em sua casa – tem
acesso direto à obra, e ponto final.
Este artigo tem como objetivo relativizar essa questão e demonstrar como muitas
vezes uma determinada cópia que assistimos não corresponde exatamente à obra (o
filme) tal como ela foi concebida, podendo nossa visão ser infuenciada por
diversas questões relativas à origem e qualidade desse material, assim como
problemas em sua forma de acesso. Indo ainda mais longe, pretendemos
inicialmente problematizar o que seria a própria obra audiovisual.
O original no cinema – conceito
de obra e materiais
De início, devemos assinalar que o cinema não é uma arte
tradicional como “as outras seis” e que, tomando as artes plásticas como
exemplo, possuem a aura da “obra de arte”, do objeto único e original. [2]
Podemos dizer que todos nós já vimos muitas vezes a imagem da famosa pintura Mona
Lisa, de Leonardo da Vinci, mas até hoje milhares de turistas vão
diariamente ao Museu do Louvre, em Paris, para ver esse quadro, para ter uma
visão direta do original da obra, ainda que (ou justamente porque) já a
conheçam muito bem através de reproduções em livros, jornais e revistas, assim
como de sua visão no cinema, televisão e internet. O motivo para tal é o fato
de que ali está a verdadeira e única Mona Lisa, ao alcance dos nossos
olhos sem nenhum tipo de intermediação ou interferência entre nós e as
pinceladas dadas pelo mestre renascentista há mais de cinco séculos atrás.
Muitos visitantes tiram fotos ao lado do quadro para levarem como lembrança o
momento em que estiveram diante daquela obra singular e inimitável.
O cinema, por outro lado, com seu estatuto inevitavelmente
ambíguo de arte e indústria, sustenta-se num princípio de reproduções, tendo
talvez um parentesco mais próximo com a técnica da gravura, responsável por
popularizar a circulação de imagens ao final da Idade Média ao permitir
reproduções mecânicas, rápidas e baratas.
Desse modo, podemos começar perguntando o que é o original
de um filme. No caso de uma realização em película cinematográfica – que, mesmo
com o advento do vídeo e da tecnologia digital, ainda é o suporte mais
frequente do que entendemos genericamente como cinema – seria o negativo
utilizado na câmera? Para começar, ninguém assiste a um negativo (com as cores
ou o preto-e-branco invertido) e o acesso à obra tal como ela foi concebida já
deve ser dar necessariamente a partir de uma primeira reprodução, do
filme negativo para o positivo, com a criação de um novo material que, este
sim, poderá ser visto e apreciado. Além disso, na quase total maioria dos
casos, o chamado “negativo de câmera”, mesmo já montado e editado – momento no
qual grande parte dos planos será descartada e apenas uma parte aproveitada –,
ainda não é a obra final. Este negativo ainda receberá marcações de luz,
trucagens óticas, além de, hoje em dia, uma infinidade de efeitos digitais
(incluindo até a total inserção de personagens e cenários) que diferenciarão
ainda mais o novo produto final (intermediado digitalmente ou não) do que foi
sensibilizado originalmente através da câmera. Entretanto, ao término do
processo moderno de “finalização”, chega-se a um material chamado justamente de
intermediário (no caso da película, um interpositivo) que será utilizado para
dar origem às cópias que serão vistas no cinema.
Assim, o melhor elemento para preservar uma obra são
aqueles que deram origem à cópia, os materiais intermediários, e que, mesmo
não podendo ser acessados diretamente, poderão dar origem a novas cópias com a
mesma qualidade, ainda que as “cópias de exibição” sejam fundamentais, no
mínimo, como referência. [3]
Dito desta forma, parece tudo muito simples: o material
intermediário (digital ou não) feito a
partir do negativo de câmera dá origem às cópias e, preservando todos esses
elementos, temos a obra cinematográfica salva e acessível. Obviamente, o mundo
real é bem mais complicado. Afinal, nem todas as cópias de um filme são iguais
e nem todos os elementos da obra estão sempre e igualmente presentes em todos
os seus materiais. E o pior: nem sempre são preservados ou sobrevivem todos os
materiais envolvidos na criação de uma obra. A película cinematográfica – o
vídeo e o digital então, sem se fala – revelaram ser suportes bem mais frágeis
do que a tela e as tintas usadas por Da Vinci.
Desse modo, é importante citarmos uma das “regras” assinaladas
por Paolo Cherchi Usai, de que o “original” de um filme é um objeto múltiplo,
fragmentado em diferentes entidades iguais ao números de materiais
sobreviventes. [4] Ao
contrário da pintura, em que a obra equivale a um único objeto (a Mona Lisa é
o quadro que está no Louvre), no cinema a obra existe em um conjunto de
diferentes materiais.
A citação de Usai é justificadamente tirada de seu livro
sobre o cinema silencioso, período em que as diferenças entre os materiais eram
mais agudas. A história do cinema também tem sido a trajetória do crescente
controle dos realizadores sobre a padronização das cópias que são exibidas de
suas obras. A conversão da indústria para o cinema sonoro, no final da década
de 1920, é um exemplo claro disso. Se antes as músicas, narrações e sonoplastia
ficavam a cargo de cada sala de cinema [5]
- que podia optar, inclusive, pelo silêncio –, com a sonorização mecânica e
sincronizada por discos e depois pelo processo ótico (com o som impresso
fotograficamente na própria película, junto com as imagens) todas as salas
passaram a supostamente reproduzir exatamente o mesmo som que fora gravado para
o filme. Num futuro bem próximo, com a transmissão via satélite dos filmes em
arquivos digitais diretamente para a sala de cinema, esse processo chegará ao
seu apogeu.
Ainda assim, não se pode supor a unicidade de algo tão
complexo como o cinema. Ao ousadamente propor pensar o “cinema como evento”,
Rick Altman ressaltou, entre outras características, sua “multiplicidade”,
“heterogeneidade” e seu caráter mais distante das artes plásticas do que das
artes performáticas. Se a “a apresentação padronizada nunca foi alcançada” (um
mesmo filme sempre tem diferenças entre as cópias, os suportes e as formas em
que ele é visto por diferentes plateias), cada exibição é única e
irreprodutível.
Assim, podemos pensar talvez que o original de uma obra cinematográfica
não é o objeto físico (o rolo de filme), mas o que é visto na tela. Ou seja, o
espetáculo de imagens e sons produzidos através de luzes, sombras, impulsos
elétricos e vibrações no ar? Giovana Fossati fala da diferenciação do cinema
como “artefato material” e “artefato conceitual”, no que precisa ser preservado
não apenas um objeto concreto, mas um “dispositivo”. Assim, a restauração seria
sempre e unicamente uma simulação.[6]
Nos primeiros trinta anos da história do cinema, a situação
era talvez ainda mais radical. Os primeiros processos de colorização, como a
pintura manual ou a viragem e tintagem [7],
se davam somente nas cópias e geravam cópias diferentes umas das outras. Por
serem processos custosos, alguns filmes eram lançados em cópias coloridas e
outras em preto-e-branco. Outras vezes cópias do mesmo filme podiam trazer
ainda mais diferenças, inclusive de enquadramento. Os primeiros negativos não
suportavam que fossem feitos números tão elevados de cópias antes de se
danificarem (não existindo ainda os materiais intermerdiários) e, desse modo, nos
anos 1920, diversas produções eram filmadas simultaneamente com duas câmeras,
dando origem a dois negativos ligeiramente diferentes, sendo um deles
geralmente destinado à exploração comercial no exterior [8]
Cópias de primeira geração (como as tiradas diretamente do
negativo) tem uma qualidade maior e, até hoje, são feitas em ocasiões
especiais, como na sessão de estréia de um filme ou em exibições em Festivais
de Cinema.
Para citar outro exemplo, mais próximo de nosso contexto,
durante a ditadura militar no Brasil a censura frequentemente exigia cortes de
determinadas cenas nas cópias que seriam exibidas nas salas de cinema e,
somente em casos extremos, eram feitos cortes no próprio negativo. Assim, podem
existir cópias de um longa-metragem sem cortes (respeitando a integridade da
obra conforme criada pelos seus realizadores) e outras com tais cortes (com uma
informação essencial sobre a forma no qual o filme foi visto pelas platéias na
época de sua exibição), diferenças fundamentais na ausência, nem um pouco rara,
dos negativos dos filmes. [9]
Hoje existe um consenso de que quando se realiza a restauração
de um filme, o objetivo geralmente é criar um novo material o mais próximo
possível à forma no qual o filme foi visto originalmente em seu lançamento. O
primeiro e mais importante passo nesse processo é justamente a localização e
verificação do estado de todos os materiais existentes dessa obra que possam
auxiliar na criação de uma versão de como essa obra existiu e foi apreciada em
determinada época.
Ou seja, a visão que temos da obra vai sempre depender da
cópia que assistimos ou do material que lhe deu origem, sendo este um universo
que comporta inúmeras diferenças (clássicos como Metropolis, de Fritz
Lang, ou Encouraçado Potenkim, de Serguei Eisenstein, foram exibidos em
versões diferentes em vários países ao longo dos anos). Mesmo falando apenas de
longas-metragens de ficção – a parcela reduzida e mais óbvia do que entendemos
como cinema – muitas vezes o que assistimos é uma dentre várias versões possíveis
da mesma obras. Não é nem um pouco raro que as cópias as quais temos acesso
representem apenas uma pálida e incompleta versão do do que teria sido a obra
em dado momento. Assim, o historiador –
ou o crítico mais comprometido – deveria sempre, ao escrever e analisar as
caracterísicas textuais de uma obra cinematográfica, apontar qual foi a cópia
que teve a oportunidade de assistir. Além disso, as origens de uma cópia são as
mais diversas e atribuladas.
Que cópia é essa?
Nem sempre, ou raramente, todos ou os melhores materiais da
maioria dos filmes realizados até os anos 1940 e 1950 foram preservados, o que
inevitavelmente afeta as cópias hoje disponíveis deles. O cinema era encarado
mais ou menos como o comércio de gelo [10] – a
exploração do lucro imediato de um produto efêmero – e um filme antigo era
quase tão desprezado como o jornal do dia anterior. Sob uma visão industrial, a
ampla consciência de que uma obra cinematográfica poderia continuar gerando
dividendos após esgotada sua carreira comercial inicial nas salas de cinema se
consolidaria apenas com o surgimento da televisão, sendo reforçada
posteriormente com os lucros advindos da venda dos direitos para o mercado de
vídeo doméstico e TV à cabo nos anos 1970. O caso da televisão – que, em termos
de preservação de seus produtos repetiu os mesmos erros do cinema – também não
é muito distinto, pois a Rede Globo, por exemplo, só atentou para a necessidade
de preservar todos os capítulos de uma novela (antes guardava apenas os
primeiros, alguns do meio e os finais, apagando o resto) quando passou a
comercializá-las para redes estrangeiras, nos anos 1980. Hoje, com as inúmeras
janelas de exibição – DVD, blu-ray, internet, celular – a noção de que um
acervo representa um ativo comercial já está mais do que disseminada, ao lado
de uma consciência de viés cultural igualmente mais difundida que defende a
necessidade de preservação do que passou a ser encarado como o patrimônio
audiovisual. [11]
Os materiais que sobreviveram dos filmes de ontem são
responsáveis pela visão e audição que temos – ou não – das obras hoje.
Praticamente nada sobreviveu dos primeiros dez anos de filmagens realizadas no
Brasil e muito do que ainda vêmos do cinema silencioso brasileiro são
fragmentos, copiões, cópias incompletas ou muito danificadas. A associação
entre filmes antigos e filmes riscados, sujos e tremeluzentes é baseada no
geralmente precário estado físico dos materiais que chegaram aos dias de hoje,
criando uma concepção equivocada sobre a qualidade, por exemplo, fotográfica
dessas obras. [12] A noção de um cinema antigo exclusivamente
preto-e-branco também se consolidou devido à perda das muitas cópias coloridas
que circulavam amplamente e a rara exibição das que ainda existem. Num outro
caso mais próximo, várias chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950 só
sobreviveram em cópias muito danificadas. Desse modo, devido à perda de seus
negativos, os novos materiais que podem ser feitos hoje dessas obras apresentam
sempre graves defeitos no som e imagem que não existiam originalmente, ampliando
um antigo preconceito a respeito da qualidade técnica destes filmes.
Esses equívocos também estão ligados não somente aos
materiais que sobreviveram, mas também à forma como eles são disponibilizados e
vistos. Muitas pessoas tem a impressão de que nos filmes silenciosos tudo era
acelerado. As pessoas não andavam, mas pareciam correr! Obviamente que os
filmes não eram assim, mas isso se deve à uma exibição incorreta deles hoje,
sobretudo quando popularizados através da televisão ou vídeo. A velocidade
padrão das câmeras e projetores durante o cinema silencioso variava muito, de 16 a 24 quadros por segundo, mas com o advento do som, a velocidade se
estabeleceu definitivamente em 24 quadros por segundo. Ao exibirem esses materiais numa
velocidade diferente da qual eles foram concebidos, o público associa à obra
uma característica decorrente da incorreta exibição daquele material.
O mesmo ocorre com filmes exibidos na televisão em formatos
diferentes daqueles para os quais foram criados. Filmes feitos em formatos
panorâmicos (ou seja, “retangulares”, como 1,85:1, ou o scope tradicional,
2,35:1) são mutilados para serem exibidos na TV, seja a convencional (1,33:1 ou
4x3), ou as digitais e ditas wide-screen (16x19 ou 1,78:1) e até mesmo
para serem lançados em DVD. Na televisão, através do simples corte lateral da
imagem ou do panning (criando um movimento panorâmico no que antes era
um plano estático), subjuga-se a imagem ao meio, mas sempre buscando tornar
invisível ou imperceptível essa alteração. Para voltar à analogia com a
pintura, corta-se o quadro para adaptá-lo à moldura. Alterações no formato
continuam sendo frequentes nas salas de cinema (em muitos casos, a visão do boom - o microfone – nos filmes está mais
associado a erros no formato de projeção do que dos filmes), e tem alimentado
um recente debate dos críticos brasileiros a respeito das imperfeições e da
baixa qualidade do padrão de projeção digital que está se impondo no Brasil. [13]
Ainda é importante tocar num outro aspecto, que é o suporte
do material. Os arquivistas audiovisuais (além dos cinéfilos frequentemente
acusados de purismo) defendem sempre a conservação e também, quando possível, o
acesso a uma obra no suporte original no qual ela foi concebida. Ou seja, um
filme realizado em película 35 mm deve ser preservado nessa suporte e bitola e
sua visão deveria se dar num material nessas mesmas especificações. Por
diversas questões, inclusive de custos, muitos filmes sobreviveram apenas em bitolas
16 mm, resultando na qualidade inferior dos materiais que podem ser criados – e
consequentemente vistos – a partir deles
Essa questão tem vários complicadores, pois muitas vezes os
suportes tem sua produção descontinuada. Até 1950, o cinema utilizava como
suporte películas de nitrato de celulose – que tinham um brilho e transparência
excepcionais, mas que eram quimicamente instáveis e, se mantidas em condições
inadequadas, eram perigosamente inflamáveis. Com o desenvolvimento do
triacetato de celulose (ou simplesmente acetato), o nitrato deixou de ser
fabricado. Desse modo, não só pelos risco de incêndio, mas por quase sempre
tratar-se de materiais de primeiras gerações e, por isso, destinados à
preservação, hoje praticamente não se exibe mais cópias em nitrato, não sendo
possível também fabricar novas cópias nesse suporte.
Entretanto, a diferença entre o nitrato e o acetato é muito
menos acentuada do que entre a película cinematográfica e formatos eletrônicos
ou digitais. Há sempre uma perda envolvida ou, pelo menos, uma diferença
significativa, mesmo quando falamos de arquivos digitais de alta qualidade
(como os que obedecem o padrão DCI).[14]
Porém, a indústria segue em sua “renovação” tecnológica e
hoje já se prevê um futuro em que a produção da própria película
cinematográfica será descontinuada – seguindo o que aconteceu com a fotografia still,
substituida quase totalmente pela fotografia digital. Diante desse panorama, há
quem avente a possibilidade de num cenário futuro em que, com o fim da fabricação
de filme virgem e dos laboratórios e não sendo mais possível fazer novas cópias
em película cinematográfica, todos esses materiais nesse suporte venham a se
tornar objetos raros. Nesse sentido, uma boa cópia 35mm de um clássico do
cinema – um objeto não mais possível de ser reproduzido ou recriado – passaria
a ser cercada dos mesmos cuidados com que se trata um quadro de um mestre da
pintura, como a Mona Lisa.
A dependência tecnológica
Diferentemente
de um quadro ou escultura, por exemplo, qualquer material audiovisual
necessita de uma mediação tecnologica para que a obra possa ser
desfrutada por qualquer pessoa. Mesmo que seja possível observar as imagens
fotográficas de cada fotograma de uma película cinematográfica a olho nu, a
ilusão de movimento, a representação visual ampliada para a qual as imagens
foram pensadas, além da própria audição do som, só podem ser alcançadas quando
a obra passa por uma máquina como o projetor cinematográfico. De forma mais
acentuada ainda, isso também se dá com as fitas magnéticas ou os discos óticos,
em que nem essa “pista” é possível. Não é o caso da Mona Lisa de Da
Vinci, voltando ao nosso exemplo anterior, que qualquer pessoa pode vê-la no
Louvre, ou, caso ela seja emprestada a outro museu, em qualquer outro lugar. O
“acesso ao conteúdo” da pintura é imediato, automático.
Já
os materiais e, consequentemente, uma obra audiovisual só é desfrutada através
de uma mediação mecânica. A inexistência desse equipamento – devido à sua
obsolescência tecnológica e à descontinuidade de sua fabricação industrial –
torna um material “inassistível” e, logo, compromete o próprio acesso e, assim,
a existência, dessa obra. Um exemplo são filmes realizados em bitolas (termo
que se refere à largura da película) diferentes da que viria a se tornar o
padrão da indústria (como o 28 mm) ou se tornariam obsoletas (como o 9,5 mm),
ou com tipos de perfurações distintas dos padrões (os filmes dos irmãos
Lumière, por exemplo, possuíam duas perfurações redondas por fotograma). Nesses
casos, a obra só pode ser recuperada através da contínua duplicação deste
material para outro formato ou suporte coerentes com os padrões correntes da
indústria. No caso do vídeo e dos inúmeros suportes utilizados nas primeiras
décadas da televisão (fitas de 1 polegada, 2 polegadas, U-matic, entre muitas
outras) a manutenção da operacionalidade dos aparelhos é ainda mais complicada.
A inevitável migração das fitas VHS – cujos players deixaram de
ser fabricados no país há poucos anos – é um exemplo ainda mais próximo desse
processo.
Por isso, a questão da obsolescência tecnológica é essencial
tanto em relação à fabricação dos
suportes, como também aos aparelhos específicos que permitem o acesso ou
reprodução de determinados materiais. Enquanto no caso das artes plásticas é
necessário apenas se preocupar com a preservação do objeto (que equivale à
obra, como vimos), no cinema é necessário também manter o equipamento
necessário à sua visão, ou, pelo menos, recriar (ou emular) aparelhos
que permitam a sua duplicação para os padrões atuais.
Se não há nada que atrapalhe diferentes pessoas verem da
mesma forma a Mona Lisa, no caso do cinema essa mediação pode fazer com
que um mesmo material seja visto de formas distintas. Aqui nos referimos, por
exemplo, a erros de projeção das cópias, que podem afetar o som, o foco, a
luminosidade, o enquadramento, enfim, quase tudo relacionado ao que vemos na
tela. Ou seja, mesmo quando você possui uma boa cópia de um filme (uma cópia
nova, processada com qualidade e a partir de um material em igualmente bom
estado e de uma geração inicial), seu acesso à obra pode ser comprometido por
essa mediação, por interferências não relacionadas à integridade do material.
Infelizmente, no Brasil temos graves problemas nos dois
campos. Por um lado, há uma despreocupação cada vez maior em que se projetar
cópias de boa qualidade e em seus formatos originais, exibindo com assustadora
frequencia filmes em cópias em DVD de baixa qualidade, por facilidade e
economia, mesmo em Cinematecas, Centros Culturais e em mostras e festivais que
deveriam ser mais rigorosos nesses quesitos. Por outro lado, mesmo quando se
dispõe de boas cópias e nos suportes originais, a projeção da quase totalidade
das salas de cinema está longe de um padrão mínimo que permita ao espectador usufruir
de toda a potencialidade da obra expressa naquele material.
Entretanto, sabendo mais sobre o que está sendo projetado e
como está sendo projetado, colocando em questão uma equivalência automática
entre obra e material, indagando sobre a origem e o estado das cópias exibidas,
estaremos fazendo justiça ao nosso interesse e paixão pelo cinema, tornando-nos
mais exigentes sobre como essas obras nos estão sendo apresentadas para melhor
desfrutarmos delas.
1 - HUSTON, Penelope. Keepers of the frame: the film archives. Londres: BFI, 1994.
3 - Aqui deve ser citado o conceito
de “geração”, que se refere à cada passagem da criação de um novo material
positivo a partir de um negativo (ou vice-versa), em que há inevitavelmente
perda de qualidade em qualquer suporte cinematográfico ou eletrônico. Como para
uma cópia dar origem a outra cópia são necessárias pelo menos duas gerações, os
materiais mais próximos às primeiras gerações (ou seja, aos negativos originais
ou aos materiais intermediários que deram origem à primeira geração de cópias)
tem melhor qualidade e seriam os mais apropriados para serem preservados. Uma
grande vantagem da tecnologia digital em relação aos processos analógicos é
ausência de qualquer tipo de perda na feitura de cópias.
5 - Um caso exemplar é o dos filmes cantantes
brasileiros, filão explorado no Rio de Janeiro na primeira década do século XX
em que cantores posicionados atrás das telas “dublavam”, ao vivo, os filmes
exibidos, geralmente filmagens de operetas populares. Embora tenham sido
realizados filmes cantantes brasileiros, esse processo também foi colocado em
prática acompanhando a exibição de filmes estrangeiros. Sobre os cantantes, cf.
Fernando Morais da Costa. O Som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro:
Sette letras, 2008.
9 - Filmes brasileiros os mais
diferentes – incluindo os do Cinema Novo, do Cinema Marginal ou da Boca do Lixo
– quase sempre eram feitos com poucos recursos e raramente custeavam a feitura
de um material intermediário. Nesse caso, todas as cópias eram feitas
diretamente do negativo original montado, resultando frequentemente no
comprometimento desse material e no consequente paradoxo de que, quanto mais
popular o filme fosse (e mais cópias fossem feitas), mais prováveis eram as
chances de seus melhores materiais se degradarem pelo excesso de uso.
12 - Cf. JEAVONS, Clyde. Imagens em
movimento: tema ou objeto. Journal of Film Preservation, Bruxelas, n. 73, 2007. Disponível no blog.
13 - A partir de discussões em listas da
internet, um grupo de críticos escreveu e divulgou, em outubro de 2009, uma
“Carta aberta aos responsáveis pela projeção digital no Brasil”, acompanhado de
uma lista de assinaturas.
14 - Sobre o padrão DCI, cf. WALSH,
David. Uma revisão do cinema digital. NFSA
Journal, Camberra, v.2, n.1, 2007. Disponível no blog.
Nenhum comentário:
Postar um comentário