Enquanto isso, reproduzo aqui dois textos publicados no
catálogo da CineOP, por conta da estreia do projeto.
Mais informações podem ser acessadas no site criado especialmente
para o projeto: http://www.telabrasilis.com.br/gersontavares
Rodrigo Tavares (filho de Gerson), Hernani Heffner, Rafael de Luna e Chico Moreira |
Relato sobre o projeto “Resgate da obra cinematográfica de
Gerson Tavares
Por Rafael de Luna Freire, professor do curso de Cinema e
Audiovisual da Universidade Federal Fluminense e idealizador e coordenador do
projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”.
Uma especificidade deste projeto em relação à maioria das
iniciativas de restauração de filmes realizadas nos últimos anos no Brasil é o
fato dele ter sido proposto por alguém que era simplesmente um espectador da
obra de Gerson Tavares. Enquanto os mais conhecidos projetos de restauração da
obra de cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Nelson Pereira
dos Santos e Leon Hirszman foram “ação das famílias”, conduzidas pelos
herdeiros desses cineastas[1],
eu não tenho parentesco algum com Gerson Tavares e nem sequer o conhecia
pessoalmente quando comecei a elaborar este projeto.
Minha relação com a obra de Gerson Tavares se iniciou quando
assisti à exibição de uma cópia 35mm de Antes, o verão dentro da mostra
intitulada “Raros e esquecidos”, realizada na Cinemateca do MAM em 2004. Além
de ter ficado impressionado com o filme, notei na sessão um grupo de senhores
que cochicharam ao longo de toda a projeção. Somente descobri que se tratava do
próprio diretor que tinha ido à Cinemateca rever seu filme com amigos quando,
algum tempo depois, Gerson procurou o conservador-chefe da Cinemateca, Hernani
Heffner, surpreso pelo arquivo ter uma cópia de seu segundo longa-metragem. Ele
revelou que os negativos de Antes, o verão não mais existiam: ele mesmo os
havia destruído. Gerson deixou com Hernani seus telefones – ele morava em Cabo
Frio, na Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro – e trouxe posteriormente
algumas latas de curtas-metragens que ele ainda guardava em sua casa.
Assim, ao mesmo tempo em que foi desenvolvido por um
espectador, o projeto de restauração de Antes, o verão foi concebido de dentro
de um arquivo de filmes, e não de uma produtora. Foi por trabalhar na
Cinemateca do MAM que eu descobri que a sobrevivência de Antes, o verão
dependia das duas únicas cópias do acervo da instituição (que imediatamente
saíram de circulação, sendo elevadas a matrizes de preservação). E foi na
Cinemateca do MAM que, mais tarde, descobri que aquelas duas cópias únicas
haviam começado a “avinagrar” – isto é, a emitir o odor de ácido acético que
caracteriza a entrada definitiva de materiais em suporte plástico de triacetato
de celulose no estágio mais avançado de degradação.[2]
A oportunidade de efetivamente fazer algo para salvar da
destruição silenciosa um filme praticamente esquecido que tinha me cativado
tanto surgiu somente em 2012, com o edital “Preservação e Conservação da
Memória Artística Fluminense”, da Secretaria de Estado de Cultura do Governo do
Estado do Rio de Janeiro. Quando tive a ideia de propor um projeto para
restaurar Antes, o verão, entrei em contato com Gerson Tavares por telefone.
Foi a primeira vez que nos falamos, e a restauração só deixou o campo das
intenções porque o “cineasta aposentado” recebeu com entusiasmo a ideia,
apoiando-a generosamente desde o início. Inscrito através da Associação
Cultural Tela Brasilis, o projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson
Tavares” destinava-se à restauração do longa-metragem Antes, o verão, mas
acabou por abarcar praticamente toda a filmografia do cineasta. O projeto foi
selecionado no edital com o orçamento de R$ 247.068,48.
O objetivo primordial do projeto era garantir a salvaguarda
do segundo longa-metragem de Gerson Tavares e permitir o acesso a ele de forma
segura e qualificada. Para isso, seria feito um internegativo 35mm de Antes, o
verão que passasse a servir como matriz de preservação da obra, produzindo, a
partir dele, cópias de exibição no suporte original (35mm) e em formato digital
(DCP e DVD). O primeiro passo já tinha sido dado ainda na elaboração do
projeto: consultar diferentes arquivos para verificar a existência de outros
materiais além das duas cópias da Cinemateca do MAM. Infelizmente nenhum outro
material foi encontrado.
O segundo passo, dado após a divulgação do resultado do
edital, foi comparar aquelas duas cópias definitivamente únicas de Antes, o
verão, nomeadas como cópias A e B. Na Cinemateca do MAM, ambas foram projetadas
rolo a rolo, com o devido cuidado. Além de mim, coordenador do projeto,
convidei Hernani Heffner e a conservadora Natália de Castro Soares para
acompanharem a projeção. Ambas as cópias tinham diversos riscos no suporte e na
emulsão, emendas não originais, fungos e manchas de óleo. Entretanto, a cópia A
estava em melhor estado físico, embora sua qualidade fotográfica fosse
inferior. Já a cópia B estava mais deteriorada e seu encolhimento era tão
acentuado que um dos rolos sequer pôde ser projetado, mas apresentava uma
qualidade fotográfica superior. Essa cópia B também possuía fotogramas a mais
que a cópia A, sobretudo no início e final de cada rolo.
Enviadas para a Labocine, onde a restauração seria realizada
e conduzida por Francisco Sérgio Moreira (Chico), as duas cópias foram lavadas
em ultrassom e comparadas mais detalhadamente no sincronizador. A estratégia
então escolhida foi a de privilegiar a cópia A, compensando suas lacunas com
trechos da cópia B. Segundo Chico, o contraste mais elevado da cópia A em
comparação com a B poderia ser compensado no processo de copiagem e revelação, enquanto
o encolhimento da cópia B era um problema mais grave de ser contornado.
Entretanto, uma surpresa foi verificada nessa comparação das
duas cópias. Apesar de apresentarem durações próximas, o rolo 7 de cada uma
delas era bastante diferente um do outro, revelando alterações na montagem e
banda sonora. A primeira suspeita era a
ação da censura, uma vez que se tratava da sequência em que Luís (Jardel Filho)
corta o maiô de Maria Clara (Norma Bengell), havendo planos de nudez da
personagem. Entretanto, a numeração de borda era diferente, revelando não
apenas o corte ou duplicação de planos, mas o uso de outros trechos do negativo
com nova mixagem.
A descoberta de documentação sobre o processo de censura do
filme na sede do Arquivo Nacional de Brasília confirmou a suspeita. Uma carta
direcionada ao Chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, assinada pelo
próprio Gerson Tavares, desvendou a questão:
Conforme nossos entendimentos, estou enviando a V.S. [...] a
“cena do maiô” do meu filme “ANTES, O VERÃO” inteiramente remontada. Depois de
10hs de trabalho na moviola, cheguei a uma conclusão, podendo agora apresentar
a V.S. a cena censurada, com nova montagem, na qual V.S. constatará o
cumprimento total de minhas promessas. Nela não há nenhuma imagem imprópria
para menores de 18 anos, tendo eu eliminado todas as imagens apontadas por V.S.
(partes íntimas nuas e contato de Jardel em partes nuas da mulher) e
conservado, à risca, as imagens que V.S. me permitiu. Usei outras imagens, que
não faziam parte da cena, para poder completá-la e dar um mínimo de “clima”.[3]
Portanto, a cópia A apresentava a versão censurada –
trazendo, inclusive, a cartela de censura obrigatória em seu início –, enquanto
a versão anterior à censura seria a da cópia B, mais encolhida e provavelmente
exibida em sessões para convidados. Uma crítica ao filme em seu lançamento
esclarecia ainda mais a situação:
A inaceitável intervenção da censura também pesou no prato
adverso da balança. Ainda assim, a remontagem efetuada pelo cineasta com grande
habilidade não nos permite vislumbrar onde sua obra foi violentada. A cena
carnal da reaproximação entre os personagens de Norma e Jardel, no terraço
batido pelo vento, foi considerada magnífica por observadores que tiveram
acesso à versão integral, mas, após a remontagem realizada com mãos de expert,
mostra-se (ainda) um atestado da sensibilidade de Gerson Tavares.[4]
Qual deveria ser a versão utilizada na restauração? Em
conjunto, eu e Chico decidimos pelo rolo 7 da “versão integral” (cópia B). Isso
caracterizaria nosso projeto como uma “reconstituição”[5] ao invés de uma
“restauração”, no sentido de resgate da forma como o filme foi visto
publicamente em seu contexto original?[6]
Afinal, privilegiamos a versão concebida pelo diretor e não a que foi lançada
comercialmente em 1968. Entretanto, tomamos a devida precaução de também
garantir a preservação da versão censurada, contratipando inteiramente o rolo 7
da cópia A. Além disso, é preciso insistir na inegável existência de diferentes
versões da mesma obra – o que leva a considerações sobre a possibilidade de
eleição de uma única versão estritamente “original” –, destacando que tive
acesso a uma versão em vídeo de Antes, o verão exibida na TV Cultura na qual a
“cena do maiô” tinha sido quase inteiramente cortada.[7] Além do mais, tendo
contratipado ambas as versões, o quesito de reversibilidade necessário a
qualquer projeto de restauração foi contemplado.
Desse modo, feita a montagem das cópias A e B, privilegiando
reunir o máximo possível de metragem de ambos os matérias, foi feita a copiagem
por contato, em janela molhada, para dar origem ao contratipo. Ambas as cópias
tiveram seu som ótico monofônico de área variável digitalizado e enviado para
restauração pela Rob Filme.
Na processo de feitura do internegativo de imagem, a janela
molhada tinha a função de tentar eliminar, na própria copiagem, alguns dos
riscos do material. A copiagem por contato buscava garantir a máxima qualidade
fotográfica, uma vez que nossa futura cópia de exibição seria resultado de duas
gerações a mais (cópia MAM → internegativo → cópia nova), com a inevitável
perda inerente a qualquer reprodução analógica. Ainda assim, o resultado de
grande parte do material foi bastante satisfatório quando pudemos examinar o
contratipo na máquina telecine. Foram identificadas, porém, duas questões
problemáticas.
Os trechos mais encolhidos – oriundos principalmente da
cópia B – não passaram na copiadora e precisariam ser copiados por processo
ótico (que resulta em menor qualidade do que por contato) e “quadro a quadro”
(o que torna o processo mais lento).
Além disso, inúmeras imperfeições na imagem não foram
eliminadas pela janela molhada. Algumas delas podem ser definidas como
“defeitos” – isto é, “imperfeições oriundas da produção original do filme, como
aquelas resultantes de limitações técnicas na época de produção”.[8]
Um exemplo de “defeito” eram pontos brancos que pipocavam na sequencia noturna
inicial de Antes, o verão. Chico relatou que esses pontos estavam fotografados
nas cópias do MAM, o que o levou a crer que faziam parte dos negativos
originais do longa-metragem, sendo possivelmente resultado de grãos de poeiras
que se colaram a esses negativos durante o seu processo de revelação. A
hipótese de Chico se baseava em seu conhecimento das (más) condições de
processamento do laboratório Líder, onde Antes, o verão foi revelado em 1968.
Outras imperfeições persistentes, porém, podem ser definidas
como “danos”, traços resultantes da deterioração ou (mau) uso dos materiais. No
caso de Antes, o verão, esses danos mais evidentes consistiam, sobretudo, em
riscos contínuos no suporte e alguns riscos profundos na emulsão com perda de
imagem, além de efeitos da ação de fungos. Nesse momento da restauração
fotoquímica foi aventada a possibilidade de uso de ferramentas digitais. Embora
não houvesse a intenção de eliminar todas as marcas do tempo em uma obra
realizada há quase meio século – afinal, sabemos que algumas restaurações
digitais são criticadas por “sua falsa mensagem de que as imagens em movimento
não tem história, [por] sua ilusão de eternidade”[9] –, chegamos à
conclusão de que os danos mais intensos afetavam a apreciação do próprio valor
estético da obra, objeto primeiro da restauração. Riscos intensos que cruzavam
o quadro e atingiam o rosto dos atores em planos fechados potencialmente
desviavam a atenção do filme para o estado físico do suporte, o que não era a
nossa intenção. Chico também levantou a questão da aceitação social de uma
restauração – feita com recursos públicos – que poderia ser condenada pelo
público mais amplo por conta da manutenção de uma perturbação visual evidente a
qualquer espectador.
A decisão de apelar para ferramentas digitais para corrigir
danos que não puderam ser eliminados no processo fotoquímico – incluindo alguns
desenquadres resultantes do encolhimento – trouxe inúmeras consequências para o
projeto. A primeira delas foi o tempo de execução. O processo de escaneamento
(passagem da película para o digital), tratamento (com o auxílio de filtros
automáticos, mas essencialmente através da correção manual quadro a quadro) e transfer
(o retorno do digital à película) atrasou significativamente o cronograma da
restauração. Isso levou ao pedido de prorrogação do projeto por mais doze
meses, estendendo seu prazo de conclusão que originalmente se encerrava em dezembro
de 2014.[10]
Essa decisão também influiu no orçamento. Apesar da extrema
cooperação da Labocine em atender às necessidades do projeto, com seu súbito
fechamento no final de 2014 a conclusão do tratamento digital teve que ser
feita por outra empresa. Oferecendo um preço mais baixo do que todas as
empresas nacionais consultadas, realizamos o serviço de restauração digital de
um trecho de dois minutos de duração na ColorLab (Maryland, EUA).[11]
Entretanto, questionamos o resultado preliminar enviado, devido a uma
divergência entre nós (clientes) e a empresa (prestadora de serviço) do que
consistiria efetivamente a restauração contratada e do que se esperava dela. Ao
final, o resultado foi aceitável, mas deixou um aprendizado: no universo do
digital, onde as possibilidades são imensas, os custos podem ser
estratosféricos e as avaliações potencialmente subjetivas, uma lição é que os
contratos precisam especificar detalhadamente que serviços estão sendo pagos –
sua natureza, extensão e intensidade.
Por último, o uso de ferramentas digitais também impactou o
resultado estético da restauração. Na visão dos primeiros resultados
preliminares ainda na Labocine, apesar da fantástica correção de danos muito
intensos e/ou pontuais, parecia-me clara – apesar da subjetividade inerente a
essa avaliação – a diferença em termos de “qualidade” visual dos trechos que
passaram por intermediação digital daqueles que passaram por copiagem
fotoquímica por contato. Evidentemente, isso tem relação com o fato de que a
Labocine só poderia oferecer – e o projeto só poderia arcar – com escaneamento,
tratamento e transfer em 2K. Entretanto, entre a manutenção dos diversos danos
e sua correção com a perda resultante da intermediação digital, acreditamos que
a intervenção foi positiva e necessária para a restauração, sendo sutil, apesar
de perceptível, a diferença entre os planos restaurados digitalmente e o
restante do filme.
Com o fechamento da Labocine, no Rio de Janeiro, o projeto
teve continuidade na CineColor, em São Paulo. No momento em que escrevo este
texto, o contratipo está sendo finalizado para dar origem à cópia 35mm
restaurada de Antes, o verão que estreará na 10ª CineOP.
Amor e desamor e curtas-metragens
Ainda na elaboração do projeto, tomei conhecimento dos
curtas-metragens dirigidos por Gerson Tavares que também encontravam-se
completamente esquecidos, sendo incluída a proposta de digitalização do maior
número possível de curtas para entrarem como “extras” do DVD da versão
restaurada de Antes, o verão.
O orçamento do projeto não possibilitava, no caso dos
curtas-metragens em que isso era necessário, a confecção de materiais
intermediários (internegativo ou interpositivo), medida ideal para a
preservação da obra no suporte original da película cinematográfica.
Preferimos, portanto, optar por uma ação viável que permitiria amplo acesso aos
curtas-metragens de Gerson Tavares e poderia resultar, futuramente, em
iniciativas de duplicação ou restauração desses filmes.
Além disso, no caso dos curtas-metragens, havia uma
quantidade maior de materiais, pertencentes a diferentes arquivos e que se
encontravam em estados muito diversos de preservação. Alguns títulos só tinham
um material preservado, enquanto outros possuíam vários. O levantamento feito
em 2013 revelou a presença de materiais dos curtas de Gerson Tavares nos
acervos da Cinemateca do MAM, Cinemateca Brasileira e CTAv. Todos os materiais
foram examinados por mim em mesa enroladeira, permitindo a comparação deles
para eleição daqueles a serem utilizados.
Do filme A Petrobrás prepara seu pessoal técnico (1958) foi
localizado um único material: uma cópia sonora de preservação em 16mm da
Cinemateca Brasileira. O material em P&B estava em bom estado e foi
telecinado.
Dos três curtas-metragens dirigidos por Gerson Tavares em
1959 a situação era mais complicada, especialmente por serem coloridos. De O
grande rio havia uma cópia 16mm bastante avermelhada na Cinemateca do MAM,
depositada pelo próprio Gerson Tavares, e dois materiais da Cinemateca
Brasileira em 35mm, um internegativo e uma cópia de preservação. O
internegativo teria sido confeccionado a partir de cópia do CTAv –
possivelmente descartada posteriormente, já que o arquivo localizado na Avenida
Brasil não mais possuía nenhum material desse título –, e estava em bom estado
físico. Entretanto, seu esmaecimento – originário da cópia que lhe deu origem –
era mais acentuado do que o desbotamento da cópia 16mm. Já a cópia 35mm estava
ótima, mas era preto e branca! Como ela trazia uma cartela inicial destacando a
premiação de O grande rio no Festival de Bilbao, julguei ser uma cópia feita em
laboratório brasileiro (provavelmente a Rex Filme) posteriormente à estreia do
filme.[12]
De Brasília, capital do século só havia um material: um
internegativo 35mm da Cinemateca Brasileira, novamente feito a partir de cópia
outrora existente no CTAv. O estado físico era ruim e o desbotamento acentuado
– o filme já estava inclusive avinagrado –, mas não tínhamos outra opção.
Por último, de Arte no Brasil de hoje foram encontradas duas
cópias 16mm, uma na Cinemateca do MAM e outra na Cinemateca Brasileira. A
questão é que uma era a versão em francês do filme, e a outra a versão em
inglês. Optamos pela segunda, que estava em melhores condições.[13]
O curta-metragem mais conhecido de Gerson Tavares, Gafieira
(1972), tinha diversos materiais no CTAv e Cinemateca Brasileira, e optamos por
telecinar uma cópia de preservação 35mm do acervo do arquivo de São Paulo em
bom estado.
Ensino artístico (1973) possuía sete cópias 16mm e um
internegativo combinado 35mm no CTAv, mas optamos por simplesmente copiar a
matriz digital (Beta digital) produzida então recentemente pelo próprio CTAv a
partir do telecine de seu internegativo. O material estava em excelente estado.
O filme Saveiros (1977) possuía oito cópias 35mm e uma 16mm no
CTAv, mas sua situação era a mais difícil. As três cópias em melhor estado
foram examinadas e todas estavam muito degradadas e gastas, sendo que as em
35mm estavam particularmente encolhidas. Por falta de alternativas, foi
utilizada a cópia 16mm esmaecida, riscada e avinagrada.
Mais trágico, porém, era o caso dos curtas Tiradentes-Portinari
(1975) e Nova arca (1977). Do primeiro havia sete cópias 35mm no CTAv, mas
todas – absolutamente todas – encontravam-se meladas. A situação dos materiais
de Nova arca também era ruim, mas chegamos a enviar para o telecine uma cópia
16mm do filme. Entretanto, não foi possível passar o filme na máquina dado o
seu encolhimento e fragilidade e tivemos que excluir o título do projeto.
Tratam-se de dois filmes de Gerson Tavares que correm o risco de se perder
definitivamente. Ironicamente, são dois dos curtas-metragens mais recentes
dentre os localizados na pesquisa.
Além da triste ironia dos filmes mais novos serem os mais
ameaçados de desaparecimento, outra questão a se destacar é que, infelizmente,
nenhuma telecinagem foi feita dos negativos originais, já que nenhum dos
títulos possuía esses materiais preservados em arquivos. É um dado que revela
como a história do curta-metragem brasileiro está se perdendo ou sobrevivendo precariamente.
Por questões orçamentárias, todos os curtas foram
telecinados em Full HD (resolução máxima de 1920 x 1080 pixels). Acreditávamos
que o ideal seria o escaneamento em 2K (resolução máxima de 2048 x 1080
pixels), mas a diferença de custos entre o telecine Full HD e o escaneamento 2K
não compensava o investimento. Além disso, não havia condições de custear ações
de restauração digital nos curtas, com exceção de pequenas correções possíveis
durante o telecine online.[14]
Sem contar a questão orçamentária, nossa decisão também foi
pautada pelo fato de que muitos dos materiais selecionados dos curtas-metragens
tinham limitações (desbotamento e esmaecimento, cópias danificadas por
projeções, bitola 16mm etc.) que já comprometeriam a qualidade do resultado
final em formato digital. Além disso, grande parte do público terá acesso aos
filmes através do DVD do projeto, cuja resolução máxima é inferior à Full HD. A
primeira intenção era lançar os filmes em Blu-Ray (disco que comporta Full HD),
mas novamente a enorme diferença no preço de autoração entre o formato Blu-ray
e o formato DVD nos obrigou a decidir pela segunda opção. A qualidade máxima do
formato digital seria oferecida através das cópias para exibição digital no
formato DCP (Digital Cinema Package).
Como sempre ocorre nesses projetos, também tivemos uma outra
grande – mas, nesse caso, feliz – surpresa. Durante a execução do projeto,
consegui com o amigo José Quental o contato de Ruy Pereira da Silva, produtor
de três curtas-metragens de Gerson Tavares em 1959. Combinei uma entrevista com
ele para recolher seu depoimento e informações que auxiliassem na pesquisa
sobre a carreira do cineasta. Durante um bate-papo com Ruy em seu apartamento
em Copacabana, ele mencionou ter algumas latas guardadas em seu escritório. Ao
final, pedi para vê-las e, entre elas, encontravam-se cópias de O grande rio, Arte
no Brasil de hoje e Brasília, capital do século. Com alguma hesitação, Ruy
generosamente permitiu que eu levasse algumas das latas para examinar o estado
dos materiais e foi com muita felicidade que encontramos cópias de Brasília,
capital do século e O grande rio muito melhores do que aquelas que já tínhamos
telecinado. Apesar de estarem bastante fungadas, as cópias apresentavam as
cores do ferraniacolor surpreendentemente conservadas. Não tivemos dúvida em
telecinarmos novamente esses dois títulos, substituindo as versões anteriores.
De Arte no Brasil de hoje encontramos a versão original com narração em
português, embora a cópia estivesse extremamente avermelhada. Assim, optamos
por manter a imagem da versão em inglês, mas com a opção de áudio em português
dessa nova cópia do acervo de Ruy Pereira da Silva no DVD.[15]
Algo que não fora pensado inicialmente no projeto, mas que
foi incorporado ao longo do processo foi a inclusão do longa-metragem Amor e
desamor (1966). Verificou-se que seus negativos originais de imagem e som
estavam conservados na Cinemateca Brasileira, mas que o longa-metragem
mantinha-se fora de circulação há muitos anos, jamais tendo sido exibido em TV
ou lançado em vídeo. Optou-se, portanto, por também telecinar o único material
combinado de Amor e desamor, uma cópia de preservação 35mm legendada em inglês
do acervo da Cinemateca Brasileira. Do
filme fizemos uma cópia de exibição em DCP, o incluindo também no DVD do
projeto.
Por fim, um cuidado extra que tivemos – e aqui o plural
refere-se à toda a equipe do projeto, incluindo as produtoras Gisella Cardoso e
Daniela Santos – foi o de transcrever e traduzir a narração e o diálogo de
todos os filmes (dois longas-metragens e sete curtas) para que o DVD tivesse a
opção de legendas em português e em inglês, ampliando as possibilidades de
acesso à obra de Gerson Tavares, inclusive por plateias estrangeiras.
Conclusão
Além de permitir novamente o acesso à obra cinematográfica
de Gerson Tavares, o projeto também teve a intenção de resgatar a trajetória do
cineasta, contextualizando seus filmes. Na etapa de feitura do projeto havia a
ideia de simplesmente gravarmos uma entrevista com o diretor, mas isso acabou
evoluindo para a produção do curta-metragem Reencontro com o cinema (dir.
Rafael de Luna Freire, 2014). Trata-se de um documentário sobre a origem e os
bastidores da restauração, que traz entrevistas com Gerson Tavares, Carlos
Heitor Cony, Hernani Heffner e Chico Moreira, sendo destinado a anteceder a
exibição de Antes, o verão.
Para ampliar a difusão do projeto, foi desenvolvido também
um site – www.telabrasilis.com.br/gersontavares
– onde são disponibilizados textos, imagens e vídeos sobre a vida e a carreira
de Gerson Tavares. Indispensável a qualquer ação de restauração, a pesquisa
para este projeto foi ampla e extensa, incluindo visitas a arquivos,
levantamento de imagens e a realização de várias entrevistas (com muitas idas e
telefonemas para Cabo Frio). Obviamente que tudo isso só foi possível com o
envolvimento sincero e desinteressado de Gerson Tavares e sua família.
Apesar de ser uma iniciativa que buscou dar nova vida a
filmes antigos – permitir que essas obras reencontrassem novos públicos –, o
projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares” também simbolizou,
talvez inadvertidamente, o fim de várias coisas. Para o curta-metragem Reencontro
com o cinema, realizamos uma longa entrevista com Chico Moreira em seu
laboratório de restauração na Labocine, no bairro carioca de Vila Isabel.
Poucos meses depois, aquele que era o único laboratório cinematográfico do Rio
de Janeiro e um dos mais tradicionais do Brasil fechou suas portas.
Provavelmente a nossa foi a última gravação naquele espaço repleto de máquinas
antigas e supostamente obsoletas onde diversas películas brasileiras foram
restauradas nas últimas duas décadas.
Além disso, Reencontro com o cinema teve uma sequência filmada
na sala de projeção da Cinemateca do MAM. O curador da Cinemateca, Gilberto
Santeiro, apareceu num determinado momento e o convidamos para fazer figuração
numa das cenas. Ele deveria fazer apenas algo que para ele era ao mesmo tempo
banal e apaixonante: sentar na poltrona do cinema e olhar para a tela a sua
frente. Falecido prematura e subitamente em abril de 2015, aquelas
provavelmente são as últimas imagens em movimento de Gilberto, mostrando que
reencontros também podem ser, sem que imaginemos, inesperadas despedidas.
Apesar desses tristes fins e partidas, é com muita
satisfação que apresentamos na 10ª CineOP a versão restaurada de Antes, o verão.
Foi um trabalho realizado com muita paixão e esforço e com o qual esperamos ter
colaborado para a memória do cinema brasileiro, desejando ainda que essa
experiência contribua para o aprimoramento da reflexão e prática da preservação
audiovisual no Brasil.
***
Quem é Gerson Tavares?
Por Rafael de Luna Freire, professor do curso de Cinema e
Audiovisual da Universidade Federal Fluminense e idealizador e coordenador do
projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”.
Nascido em 1926, no bairro de Alcântara, em São Gonçalo –
município da região metropolitana do Rio de Janeiro –, Gerson Tavares pertencia
a uma família de classe baixa. Primogênito com duas irmãs, seu pai era
comerciante, mas faleceu quando ainda era adolescente. Após terminar o ensino
médio, teve diferentes trabalhos até se estabelecer no escritório carioca de
uma empresa dinamarquesa. Estava prestes a ser promovido, mas abriu mão do
emprego para realizar o desejo de ingressar na Escola Nacional de Belas Artes
(Enba). Admitido em 1947, finalizou o curso superior de pintura. Fez muitos
amigos e ampliou seus horizontes com os estudos.[16]
Já formado, realizou duas exposições individuais em 1951 e
1952. Nessa época, tendo feito parte do Diretório Estudantil da Enba, ganhava
um pequeno salário como secretário da União Nacional dos Estudantes, usufruindo
ainda das refeições a preços populares servidas em sua sede, no Flamengo.
A grande mudança em sua vida ocorreu quando realizou o sonho
de receber uma bolsa de estudos para estudar pintura na Europa em 1953,
conseguindo passagem de navio (terceira classe) Rio-Lisboa através da CAPES.
Tendo aprendido os macetes para viver com economia na Europa, ficou bem mais
tempo do que os seis meses de bolsa permitiriam. Posteriormente conseguiu nova
bolsa do Governo da Espanha, residindo por alguns meses em Madri. Viajou por
diversos países e frequentou vários museus, refinando sua cultura.
O cinema entrou em sua vida quando mudou-se para Paris. Lá
conheceu Sergio Montagna, um brasileiro bon vivant, funcionário do Escritório
de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil, que o “contagiou”. Passando a
frequentar a Cinemateca Francesa e diversos cineclubes da cidade, Gerson
descobriu a sétima arte, que ele ignorava anteriormente no Brasil. O sucesso do
filme brasileiro O cangaceiro (Lima Barreto, 1954) em cinemas parisienses nessa
época o impressionou, uma vez que durante toda a sua estadia em Madri não tinha
visto nem sequer uma pintura de um brasileiro no Museu do Prado, por exemplo.
Percebendo o futuro promissor da arte cinematográfica no Brasil, decidiu seguir
conselhos para se matricular naquela que era considerada a melhor escola de
cinema do mundo, o Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. Fez os
exames de seleção (em francês) e foi admitido como ouvinte no Curso de Direção.
Durante os dois anos do curso, entre 1956 e 1957, fez bicos como fotógrafo e
guia de turismo para sobreviver na Itália, além de participar de dois curtas,
um deles, Pistoia (dir. César Mêmolo Jr, 1956), documentário sobre o cemitério
italiano onde vários pracinhas brasileiros estavam enterrados. Trabalhou também
como correspondente da revista O cruzeiro em duas edições do Festival de Veneza
nesse período.
Ainda na Itália, seguindo a dica de colegas, comprou uma
câmera Arriflex 16mm e passou a ganhar dinheiro alugando o equipamento.
Entretanto, sem maiores perspectivas de trabalho, decidiu retornar ao Brasil em
1958. Vendeu sua antiga câmera e, em sociedade com Sérgio Montagna, comprou uma
câmera nova Caméflex francesa para levar para o Brasil e utilizá-la na
produtora que iriam abrir juntos no Rio de Janeiro. O terceiro sócio da empresa
– nomeada como Saga Filmes – seria um jovem vizinho de Montagna, em Ipanema,
que ofereceu a garagem da casa dos pais como sede da produtora: Joaquim Pedro
de Andrade.[17]
Além de um filmete de propaganda para a loja de produtos
importados Lidador, o primeiro trabalho da Saga Filmes foi o curta-metragem A
Petrobrás prepara o seu pessoal técnico (1958). Produzido através de seleção
pública da estatal – o aviso da abertura da concorrência foi dada por Claudio
Mello e Souza, amigo que trabalhava na empresa –, o documentário foi dirigido
por Gerson e contou com a assistência de Joaquim Pedro.
Nessa época, o fotógrafo italiano Giampaolo Santini, amigo
dos tempos da Europa, veio ao Rio de Janeiro propor a Gerson um projeto de
realização de três curtas-metragens sobre o Brasil para atender à curiosidade
internacional sobre o país. Santini tinha filme virgem colorido – alguns rolos
feitos da emenda de sobras de outras produções – e precisava de um parceiro
brasileiro. Como Gerson desejava dirigir os três filmes sem dividir a função
com os sócios da Saga, o cineasta saiu da empresa e encontrou um produtor em
Ruy Pereira da Silva.
Formado em medicina, Ruy também tinha vivido na Europa, mas
com o intuito de se preparar para a carreira diplomática. Estudando na
Sorbonne, em Paris, foi outro que descobriu a paixão por cinema na Cinemateca
Francesa, tendo conhecido seu célebre diretor, Henri Langlois. De volta ao Rio
de Janeiro, se aproximou do movimento cineclubista carioca e procurou Paulo
Emílio Salles Gomes, em São Paulo, com o objetivo de criar uma cinemateca no
Rio. De fato, em 1955 Ruy criou o Departamento de Cinema do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro – futura Cinemateca do MAM –, passando a realizar
sessões no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Em 1957,
apoiado pelo Itamaraty e pela ABI, viajou para a Europa e Estados Unidos,
travando muitos contatos que permitiram a realização, no ano seguinte, do
extraordinário Festival “A História do Cinema Americano”. No final de 1958,
porém, afastou-se da Cinemateca do MAM e decidiu “fazer cinema”, em suas
palavras.[18]
Muito bem relacionado, Ruy conseguiu levantar os recursos para realizar,
através de sua recém-criada produtora, a Procine, os filmes planejados por
Gerson e Santini.
Os três curtas-metragens foram realizados conjuntamente,
entre 1959 e 1960, e chamaram-se Brasília, capital do século, O grande rio e Arte
no Brasil de hoje. Era uma espécie de trilogia que fazia um retrato do Brasil
do passado, do presente e do futuro.
Arte no Brasil de hoje abordava a obra de artistas
brasileiros modernos em plena atuação – Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Cândido
Portinari, Burle Marx e Bruno Giorgi –, dedicando-se a mostrar a originalidade
e o talento de nomes que ajudavam a dar visibilidade internacional à arte
brasileira no final da década de 1950. Era o Brasil do presente que ingressava
na vanguarda da arte mundial.
Brasília, capital do século documentava a impressionante
construção da nova capital brasileira no planalto central. Criada do nada, num
esforço de engenharia e numa ousadia de arquitetura, assemelhava-se a um
cenário de ficção científica e projetava o Brasil como uma nação do futuro.
Se Brasília, capital do século e Arte no Brasil hoje
tornaram-se extraordinários documentos históricos, O grande rio teve um maior
reconhecimento na época em que foi realizado ao ganhar a Medalha de Ouro do I
Certamen Internacional de Cine Documental Ibero-Americano y Filipino de Bilbao,
na Espanha. O filme acompanhava uma viagem de barco pelo Rio São Francisco,
reproduzindo uma travessia que o próprio Gerson havia feito em 1949, nos tempos
da faculdade.
Em O grande rio, mostrando a pobreza, as festas populares,
os modos de vida tradicionais das populações ribeirinhas, estava o Brasil do
passado. Focando na expressão mais arcaica de um país tido como
subdesenvolvido, e flagrando tanto a desigualdade social como a riqueza da
cultura popular, o filme se aproxima de outros curtas-metragens contemporâneos
– hoje bem mais conhecidos – como Arraial do Cabo (Mário Carneiro e Paulo Cezar
Saraceni, 1960) e Aruanda (Linduarte Noronha, 1960). A representação da
estagnação, traduzida pela metáfora do eterno correr do rio e do girar da roda
do barco à vapor, alia o lirismo poético à denúncia realista da miséria.
Apesar da repercussão e dos prêmios, Gerson não voltaria a
filmar tão cedo. Sem respaldo familiar e calejado pelos anos de dificuldade
financeira, ele tinha uma visão pragmática sobre a sua sobrevivência
profissional. Os curtas haviam lhe dado projeção, mas não renderam dinheiro ou
novos trabalhos. Para pagar as contas, Gerson decidiu viver da locação de
equipamentos cinematográficos, como fizera ainda na Europa. Durante cinco anos
trabalhou apenas como locador de equipamento e eventualmente como diretor de
produção, como em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962) ou no episódio brasileiro da
produção ítalo-americana Il mondo di notte numero 2 (Gianni Proia, 1962).
Somente em meados da década, já com um situação financeira
mais confortável e estável, partiu para seu primeiro longa-metragem, Amor e
desamor (1966). Coproduzido pelas distribuidoras França Filmes e Condor Filmes
através da recém criada Lei de Remessa de Lucros, Amor e desamor era uma
história original filmada inteiramente em Brasília, embora passada em grande
parte entre quatro paredes. Estrelado por Leonardo Villar – surpreendendo com
um personagem contemporâneo, sofisticado e urbano após vários papéis como
retirante ou bandido nordestino[19]
–, o filme tratava das frágeis relações afetivas num mundo convulsionado. O
cenário duro e intimidador de Brasília após a invasão da UnB ajudava a conferir
o tom intimista do filme com a valiosa colaboração da música de Rogério Duprat.
O erotismo sutil e elegante do filme que contava também com Leina Krespi e a
novata Betty Faria no elenco foi destacado, embora Amor e desamor tenha tido
uma recepção fria da crítica, que fez restrições à teatralidade da encenação.
Para o seu segundo longa-metragem, Gerson buscou uma nova
história de amor e amargor, dessa vez tirada do então recente e bem-sucedido
livro “Antes, o verão”, de Carlos Heitor Cony. Parcialmente filmado na mesma
Cabo Frio de Os cafajestes, o longa-metragem aproxima-se do universo de filmes
como São Paulo, Sociedade Anônima (Luis Sérgio Person, 1965) ao restringir-se a
personagens burgueses e seus dilemas e inquietações. No caso de Antes, o verão,
o protagonista é o empresário de meia-idade Luís, que compra uma casa de praia
como símbolo de sua independência e sucesso profissional e pessoal. Mas apesar
de tentar erguer barreiras contra o resto do mundo, tanto sua vida quanto sua
casa são invadidas por forças externas, simbolizadas pela incessante ação do
vento, da areia e do sal. Com o magnetismo de Jardel Filho e Norma Bengell, Antes,
o verão seria elogiado pela sensível sensualidade distante do pudicismo ainda
moralista de boa parte dos filmes políticos, assim como do crescente erotismo
vulgar de certo cinema comercial.
Entretanto, como Amor e desamor, Antes, o verão também não passou impune
pelas tesouras dos censores, que obrigaram a remontagem total de um longa
sequência por conta de planos de nudez de Norma.
Lançado em 1968 e parcialmente financiado pela Carteira de
Auxílio à Indústria Cinematográfica (CAIC), Antes, o verão foi produzido pela
empresa Verona Filmes, criada por Gerson no ano anterior. O filme que
apresentava ainda os atores Hugo Carvana, Gilda Grillo e Paulo Gracindo foi
unanimemente recebido pela crítica cinematográfica como um bom filme, que
confirmava o talento e amadurecimento do cineasta.[20] Era o segundo
longa-metragem de Gerson, mas acabou sendo o último.
Com o aumento à repressão a um cinema crítico e questionador
após o AI-5, Gerson se espelhou na produção de filmes como Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) ou Os inconfidentes (Joaquim
Pedro de Andrade, 1971) para buscar financiamento internacional para o seu novo
projeto. Planejando levar às telas, num misto de ficção e documentário, o livro
“Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de Maria Carolina de Jesus, Gerson
adquiriu os direitos de filmagem da obra e trocou cartas com a autora, mas não
conseguiu concretizar a pretendida coprodução internacional. [21]
Na década de 1970 ele se dedicaria, além da locação de
equipamentos, à direção de curtas-metragens documentários, parte deles
produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema (INC). Do documentário
observacional, Gafieira (1972), filmado na tradicional boate Elite, da Praça
Tiradentes, ao filme de encomenda para o Ministério da Educação e Cultura Ensino
artístico (1973), sua produção é diversificada. Se em Gafieira, seu mais
célebre curta, não há nenhuma narração além do som direto, em Saveiros (1977), produção
da Embrafilme, Gerson já utiliza o método das entrevistas para examinar uma
atividade tradicional em risco de extinção. Realizou ainda filmes como Tiradentes/Portinari
(1973) e Nova Arca (1977), cujos materiais infelizmente encontram-se seriamente
deteriorados e em vias de desaparecimento.
Ao longo dos anos a Verona Filmes tornou-se uma empresa
respeitável e conhecida, reunindo um notável conjunto de equipamentos
cinematográficos para locação: lentes, tripés e câmeras 16 e 35mm, carrinho,
refletores e maquinário, gravador de som Nagra – tudo o necessário para atender
às necessidades de qualquer equipe. Gerson era frequentemente procurado para se
associar a projetos (fornecendo os equipamentos) e, nesse formato, a Verona
coproduziu o filme infantil A dança das bruxas (Francisco Dreux, 1970).[22]
Desgostoso com o meio profissional e com o Rio de Janeiro,
Gerson largou a profissão quando a crise econômica agravava a situação do
cinema brasileiro. Com bom timing para negócios, soube abandonar o barco antes
dele afundar. Aos poucos foi se desfazendo de seus equipamentos, até vender a
própria Verona Filmes e todo sua aparelhagem para a atriz e produtora Rossana
Ghessa, amiga desde 1972, quando ambos participaram da Semana do Cinema
Brasileiro em Nápoles.[23]
Desde os anos 1980, Gerson passou a residir definitivamente
em Cabo Frio, afastando-se completamente do cinema e dedicando-se a duas outras
grandes paixões: a pintura e o mar. Ao conhecê-lo pessoalmente no começo de
2013, encontrei a pessoa serena, generosa e ponderada que os amigos descreviam,
assim como pude identificar também o empresário honesto, intuitivo e batalhador
e o artista disciplinado, inteligente e sensível. Gerson passou por um AVC semiagudo
em novembro daquele ano, mas vêm se recuperando com esforço e dedicação.
A homenagem a Gerson Tavares pela Mostra de Cinema de Ouro
Preto é decorrência do projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson
Tavares”, cujo objetivo é trazer novamente à tona a obra desse cineasta
brasileiro injustamente esquecido, possibilitando seu conhecimento e avaliação
pelas novas gerações. Gerson Tavares merece todas essas homenagens, mas quem
mais ganha é a memória do cinema brasileiro e os espectadores que voltarão a
poder assistir e apreciar seus filmes.
[1] BUARQUE, Marco Dreer. A experiência com restauração
de filmes no Brasil. Mosaico, Rio de
Janeiro, Cpdoc/FGV, v. 3, n. 5, 2011.
[2] Discuti em outro artigo a importância de projetos de
restauração também serem conduzidas por cinematecas e arquivos de filmes – e
não somente através de projetos que precisam ser previamente elaborados e
inscritos em editais ou oferecidos a patrocinadores –, uma vez que os critérios
utilizados por uns e outros para guiar a escolha de filmes a serem restaurados
são diferentes. Ver: FREIRE, Rafael de Luna. A preservação do cinema brasileiro
da década de 60: ações e lacunas. In: MOSTRA DE CINEMA DE OURO PRETO, 7, 2012,
Ouro Preto. Catálogo da 7ª CineOP. Universo
Produções: Belo Horizonte, 2012. Disponível em: <http://preservacaoaudiovisual.blogspot.com.br/2012/08/a-preservacao-do-cinema-brasilerio-da.html>
[3] Carta de Gerson Tavares ao Cel. Aloysio
Muhlethaler de Souza, Rio de Janeiro, 8 out. 1968 (acervo do Arquivo Nacional).
[4] Jornal do Brasil, 16 nov. 1968, p. 31.
[5] WALLMÜLLER, Julia. Criteria for the Use of
Digital Technology in Moving Image Restoration. The Moving Image, AMIA, n. 7, 2007.
[6] Entretanto, sendo restauração entendida como
“o processo de compensar a degradação pelo retorno da imagem ou artefato o mais
próximo possível ao seu conteúdo original”, não há dúvida que nossa decisão
seguiu os princípios de uma restauração
(recuperação da qualidade visual) e
reconstrução (reordenação do texto) (READ, Paul; MEYER, Mark-Paul. Restoration of Motion Picture Film. Oxford: Butterworth-Heinemann,
2000).
[7] Agradeço a Teder Morás por franquear o acesso
a esse material.
[8] WALLMÜLLER, op. cit.
[9] USAI, Paolo Cherchi. The Lindgren Manifesto: The Film Curator of the
Future. Journal of Film Preservation, n. 84, abr. 2011, p. 4.
[10] Devido a compromissos já assumidos, uma versão
preliminar da restauração foi exibida, em formato digital, na repescagem da 38ª
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 3 de novembro 2014.
[11] A questão econômica foi determinante para a
escolha da prestadora do serviço, uma vez que o orçamento original do projeto
não contemplava essa despesa extra.
[12] O grande
rio teve suas primeiras cópias exibidas em setembro de 1959 e a premiação no
festival ocorreu somente no mês seguinte. Os três curtas coloridos foram
revelados no laboratório italiano La Microstampa, em Roma, conforme informação
no rótulo de algumas latas.
[13] O filme Arte
no Brasil de hoje teve cópias
comprados pelo Itamaraty para distribuição cultural internacional. Foram feitas
versões em inglês, francês e espanhol. Ver: UNESCO. Dix ans de films sur l’art (1952-1962). 1. Peinture et sculpture.
Paris: Unesco, 1966, p. 161.
[14] Agradeço ao funcionário da Labocine, Agson
Alessandre, pelo tempo e paciência na telecinagem dos materiais.
[15] No início de 2015, Ruy depositou todas as
latas que ainda possuía em casa na Cinemateca do MAM.
[16] As
informações sobre Gerson Tavares provém de várias entrevistas realizadas com
ele pelo autor entre 2013 e 2015.
[17] Ver também: ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Joaquim
Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013, p. 56-7.
[18]
Entrevista do autor com Ruy Pereira da
Silva, 2014. Sobre a criação da Cinemateca do MAM e o papel de
Ruy Pereira da Silva, ver: QUENTAL, José Luiz
de Araújo. A preservação cinematográfica no Brasil e a construção de uma
cinemateca na Belacap: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Dissertação – Mestrado em Comunicação, Imagem e Informação. Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 86-125.
[19] Leonardo Villar vinha de papéis em O
pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Lampião, o rei do cangaço (Carlos Coimbra, 1965) e A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto
Santos, 1965).
[20] Numa rara convergência de opiniões,
especialmente incomum em se tratando de filme brasileiro naquele contexto,
todos os críticos do Jornal do Brasil – Alberto Shatovsky, Ely Azeredo,
José Carlos Avellar, Miriam Alencar e Valério Andrade – concederam a cotação de
duas estrelas (bom) a Antes, o verão,
analisado na sessão “Filme em questão” (Jornal do Brasil, 16 nov. 1968,
p. 31).
[21] Ver correspondência nesse sentido trocada entre Gerson e o produtor francês
Michel Gast, da SND (Société Nouvelle de Doublage) ao longo do segundo
semestre de 1970 (Acervo pessoal de Gerson Tavares).
[22]
Não à toa, imagens desse filme aparecem no curta Ensino artístico (1973).
[23] Ver: “Alteração de contrato social
da firma Verona Filmes”, 28 abr. 1983 (Acervo pessoal de Gerson Tavares). A
atriz deixou de usar a empresa Rossana Ghessa Produções Cinematográficas,
passando a utilizar o nome da Verona Filmes em suas produções seguintes, assim
como a trabalhar com locação de equipamentos cinematográficos.
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