Através do relatório ficamos sabendo que foram queimados 1.003 rolos de filmes de nitrato, correspondendo a 731 títulos, praticamente todos em Preto e Branco e 35mm. A grande maioria desses rolos tinha entre 5 a 10 minutos de duração, sendo que 98,1% eram de cinejornais - o que é compreensível, uma vez que a maior parte dos filmes brasileiros produzidos e preservados até a década de 1950 (a era da película de nitrato, cujo depósito foi o atingido pelo incêndio) era de filmes documentários. Como esperado, sabemos que se queimaram sobretudo negativos de imagens de vários cinejornais, que são consideradas suas matrizes de preservação.
Uma parte dos materiais incendiados tinha outras cópias no acervo, embora sua qualidade ainda não tenha sido checada e apresentada no relatório, que admite que essas cópias podem estar em "película, vídeo ou digital". O mais triste, é claro, são as obras que não possuíam outras cópias no acervo. Esses rolos queimados representavam as únicas manifestações dessas obras, que passam a ser dadas como inteiramente perdidas por não existir nenhuma outro material desses títulos preservado atualmente.
A partir dos números do relatório, chegamos à seguinte porcentagem:
- 63% dos títulos queimados tinham outras cópias. 37% dos títulos desapareceram.
- 60,5% dos rolos queimados tinham outras cópias. 39,5% dos rolos eram de obras agora consideradas perdidas.
- 62,5% da metragem total de filmes queimados tinha outros materiais. 37,5% da metragem total era de filmes sem nenhuma outra cópia.
Ao meu ver, dois quintos de perda irremediável, ou pouco menos de 40%, é algo muito distante de dizer irresponsavelmente que "quase todo o material" estava copiado. E sobre esses filmes agora desaparecidos, restam apenas informações muito pontuais e vagas sobre seu conteúdo a partir de títulos ou descrições como "Presidente Getúlio Vargas visita Uberaba", "Parada da Juventude de 1941", "Contrato DCB e Vera Cruz" (o que devia ser isso!?), "Certame automobilístico - Circuito da Gávea - 1936" etc. Pior do que eles terem se perdido, é o fato deles desaparecerem sem terem circulado amplamente nos últimos anos, sem sequer terem sido vistos quer por cinéfilos, historiadores ou pesquisadores, numa mesa enroladeira que fosse. Nem a memória da visão desses filmes sobreviveu.
Como eu disse no post anterior, a responsabilidade por existir esse enorme volume de filmes de nitratos sem nenhum tipo de cópia no acervo da Cinemateca Brasileira é certamente uma responsabilidade a ser compartilhada por todas as gestões recentes da instituição, cujos esforços deveriam ter sido, pelo menos em grande parte, mobilizados para duplicar suas matrizes de nitrato. Devemos lembrar que esse foi um esforço feito pelos principais arquivos de filmes há décadas atrás. Como aponta Anthony Slide, no final dos anos 1960 foi lançado, inclusive, o slogan "nitrate won't wait" (o nitrato não pode esperar), acreditando-se ser necessário duplicar todos os materiais nesse suporte que não iriam sobreviver até o século XXI.
Posteriormente, essa visão fatalista foi reconsiderada, percebendo-se que, nas devidas condições de armazenamento e com revisão constante, a película de nitrato podia apresentar uma estabilidade maior do que se imaginava. De fato, muitos nitratos brasileiros chegaram até 2016, por exemplo. Mas com a interrupção dos trabalhos necessários de análises do acervo entre meados de 2013 e 2014, como apontado pelo relatório, alguns dos nitratos da Cinemateca Brasileira chegaram ao seu limite e entraram em autocombustão no início desse ano. Assim, não se pode deixar de apontar que foi uma irresponsabilidade que a Cinemateca Brasileira - e o Estado Brasileiro, sobretudo, na figura da Secretaria do Audiovisual - não tenham se esforçado o suficiente, especialmente num momento de alardeada pujança, em fazer nos últimos anos o que sempre foi tido como a tarefa básica de qualquer cinemateca: salvaguardar o patrimônio audiovisual.
No último encontro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), em junho passado, em Ouro Preto, fiquei sabendo que está em curso um programa de duplicação de matrizes na Cinemateca Brasileiro. Ótima notícia. Antes tarde do que nunca. Mas por que sempre precisamos esperar uma tragédia para fazermos o que já devia ter sido feito tempos atrás?
8 comentários:
Quero fazer uma pequena correção. Os trabalhos de análise do estado de conservação dos filmes, inclusive das películas em suporte de nitrato, foram mantido inclusive tanto em 2013 quanto durante o ano inteiro de 2014. Pelas condições limitadas daquele momento, esses trabalhos aconteceram em menor volume. Mas nunca foram interrompidos. E afirmo isso na qualidade de quem era responsável por essas rotinas durante o ano de 2014.
Ola, Fernanda. Obrigado pela correção. Não quis ser injusto com ninguém e, por isso, deixei claro que era uma informação do relatório citado. Transcrevendo: "Devido ao período de crise vivido pela instituição desde o início de janeiro de 2013, entre meados de 2013 e o ano de 2014, deu-se a interrupção total das análises desses materiais, com a sua retomada parcial em janeiro de 2015" (p. 1). Mas agradeço novamente seu reparo. Um abraço.
apenas a título de contextualização, segue trecho de relatório da gestão 2014. Este documento pode ser consultado na biblioteca da própria cinemateca.
“Revisão de conservação preventiva do acervo de Nitrato de Celulose – uma vez que a última revisão deste acervo foi em 2012, nas circunstâncias excepcionais da instituição, avaliou-se que seria possível adiar esta atividade para o segundo semestre.” - Relatório Anual de Atividades 2014 - página 10. Os quadros com percentuais informam que nada foi feito com os nitratos em 2014.
Além disso, verifica-se qual era a prioridade da então gestão: difusão, difusão e mais difusão...
Inácio Araújo já definiu bem o que foi a Cinemateca Brasileira na gestão de 2014: “um bordel”.... (http://inacioaraujo.blogfolha.uol.com.br/2016/02/03/bordel-cinemateca-matadouro/)
ao invés de transformar a instituição na “Geni” da preservação audiovisual, poderíamos nos preocupar em cobrar das autoridades efetivas ações para o fortalecimento dos arquivos de filmes.
Conversando com pessoas da própria Cinemateca, o que percebe-se é um voluntarismo e um enorme esforço para manter viva a instituição, à revelia de todas as adversidades e desprezos do poder público, e também dos seus pares.
Façamos um debate mais justo e honesto sobre as mazelas da preservação audiovisual no país.
Amig@ da Cinemateca
Obrigado pelo comentário, prezado "anônimo" (embora sempre estranhe alguém querer dar opiniões num blog pessoal sem dizer a própria identidade). Suas informações são úteis, embora eu discorde do comentário de que tenha havido a intenção, pelo menos nesse blog, de transformar a CB em "Geni" da preservação audiovisual. A centralidade dela no cenário da preservação audiovisual é parte de sua história, tendo sido reforçada pela concentração inegável de recursos nas últimas duas décadas. Assim, ninguém discorda de sua importância fundamental na preservação do patrimônio audiovisual. Portanto, não aceito um discurso vitimizador para ela, assim como para nenhuma instituição pública. Como ficou claro no texto, todas as críticas à direção da CB são também direcionadas à SAv, ao qual ela é vinculada. E discordo igualmente de que haja um "desprezo" pela CB por seus pares. Se fosse assim, não haveria tanto interesse para que ela volte a funcionar como deveria, e nem tanta revolta por sua missão ter sido desvirtuada nos últimos tempos. Um abraço.
Les deseo muy buena suerte a mis amigos y colegas de la Cinemateca Brasileira...nosotros en la Filmoteca de la UNAM sabemos que se necesitan muchos recursos,humanos y económicos para preservar las películas por muchos años...adelante queridos amigos
Rafael, meu comentário foi apenas para dizer que houve um equívoco no relatório. De forma alguma me senti "injustiçada" por suas palavras.
Todo meu respeito ao trabalho realizado através dos anos, por tantas pessoas apaixonadas. Todo meu respeito também ao trabalho que está sendo feito atualmente e aos esforços inegáveis dos que se mantém na labuta diária da Cinemateca Brasileira.
Apenas é preciso que as informações sejam corretas.
Oi Rafael, só vi seu post hoje. Sobre seu parágrafo final, gostaria de indicar que o projeto de duplicação emergencial teve início efetivo em março (com início dos trabalhos de parte da equipe), mas já estava formatado e encaminhado antes do incêndio, desde final de 2015.
Boa noite Rafael, gostaria de ter mandando um e-mail diretamente a você porem não conseguir achar o seu endereço, estou recorrendo a algumas pessoas ligadas de certa forma ao cenário brasileiro de animação, através do vídeo "ANIMANIA - Entrevista com MÁRCIA LATINI sobre SINFONIA AMAZÔNICA" que está disponível no youtube onde você faz participação apresentando um projeto sobre animações antigas brasileiras. gostaria de saber se você pode me informar com quem ou como posso conseguir o filme Sinfonia Amazônica, sei que é um filme raríssimo e de difícil acesso, mas não custa tentar não é mesmo?! obrigado.
Postar um comentário