No último encontro da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), realizado outubro passado na UnB, o conservador da Cinemateca Brasileira, Carlos Roberto de Souza, fez uma comunicação sobre a preservação cinematográfica no Brasil intitulada "Desafios de sobrevivência", no qual citava este artigo de Jurandy Noronha como o primeiro escrito no Brasil em que se afirmava a necessidade de se fazer a prospecção do cinema nacional, encarado como "patrimônio nacional".
De fato, Jurandyr apresenta uma série de questões básicas da preservação de forma extremamente arguta e pioneira, não se restringindo somente à prospecção de filmes.
O respeito à integridade da apresentação do filme, por exemplo, é levantada por ele quando fala da necessidade de se respeitar a velocidade (16 q/s) e a "janela antiga" (1:1,33) do cinema silencioso em relação à velocidade (24 q/s) e janela (1:1,37) do cinema sonoro daquela época.
Escrito no ano em que a Filmoteca do MAM-SP, futura Cinemateca Brasileira, se filiaria à FIAF, e seis anos antes da criação da Cinemateca do MAM-RJ, em 1955, trata-se de um documento essencial para a História da preservação audiovisual no Brasil.
Publicado há exatos 60 anos, a divulgação deste artigo é também uma pequena homenagem a Jurandy, que continua vivendo no Rio de Janeiro, onde está escrevendo suas memórias.
Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira
Reportagem de Jurandyr Bastos Noronha
Publicado em Cena muda, n.28, de 13 de julho de 1948.
Noticiaram os suplementos literários a fundação do Museu de Arte Moderna, estando, à frente do mesmo, nomes os mais representativos da cultura brasileira. Vemos assim (e não há nenhum bairrismo, pois sou mineiro e moro na ilha do Governador...) que o Distrito Federal segue o que vem de acontecer no estado bandeirante, em cujo capital já existe um museu congênere.
Não posso afirmar que o museu de São Paulo tenha uma sessão de cinema, como pretende o do Rio, mas sei que o Clube de Cinema de lá, com Saulo Guimarães, Rubem Biáfora, Almeida Salles e Benedito Duarte, é o melhor organizado do país. Seus debates tornaram-se famosos, bem como famosa é a sua filmoteca, recentemente enriquecida com novas aquisições, feitas na Europa por Paulo Emílio Salles Gomes, entre os quais contam-se os clássicos Um chapéu de palha da Itália e O milhão, de René Clair, A paixão de Joana D’Arc, de Carl Deyer e Sangue de poeta, de quando Jean Cocteau se dedicava às abstrações cinematográficas.
A cidade de Belo Horizonte tem igualmente o seu núcleo de estudiosos, bem como, aqui está em atividade o Diretório de Cinema da Faculdade de Filosofia, ao qual se junta o corpo social do velho Chaplin Clube, com Otávio de Faria, Plínio Sussekind e outros. Acontece que as “libraries” acima citadas cuidam tão somente das grandes obras do cinema mundial, havendo quase completo esquecimento do que fizeram os nossos pioneiros. Apenas o pequeno museu do Recife, criado graças à dedicação de Luis Maranhão, está com os antigos filmes silenciosos feitos no norte, como A filha do advogado, No cenário da vida, Dança, amor e ventura, Aitaré da praia e Herói do século XX.
Confesso que a perda de tantos filmes passados – o que vem acontecendo – é coisa que me tem deixado aturdido, por considerá-los verdadeiro patrimônio nacional. Porque o Cinema Brasileiro não tem sido apenas as aventuras de vésperas de carnaval, como no passado não o representavam os pseudo filmes científicos: tem importância muito maior do que geralmente se supõe, se não quisermos, naturalmente, tomar em conta os farsantes e improvisadores que sempre existiram, em todas as épocas.
Produções há que, dentro do tempo e das condições em que foram feitas, igualmente e até, em alguns casos, superam trabalhos de países mais adiantados. É este confronto que eu pretendo seja feito um dia, para que haja justiça a artistas esquecidos, que não contavam com departamentos de publicidade e letreiros luminosos nas portas das grandes casas de exibição. Não avanço coisa alguma no que pode parecer uma afirmação audaciosa, sendo, apenas, a certeza de quem, há muito tempo vem estudando o cinema de todos os países – em caráter particular o do nosso – sem concordar com tudo o que chamavam de bom, mas sim levando em conta as conquistas feitas do Edwin S. Potter, Griffith, Wiene, Dupont, Grierson e Murnau: Eis porque considero da maior importância o levantamento e recuperação imediata de tudo quanto já fizemos de mais significativo, pois, em caso contrário, dentro em breve nada mais restará, com imenso e deplorável prejuízo artístico.
Preocupação idêntica à minha tem assaltado pessoas, como Álvaro Rocha, Pedro Lima ou Pery Ribas. Ainda recentemente ouvi do Dr. Pedro Gouvêa, diretor do INCE, de sua intenção de criar o Museu do Filme, no qual estivesse garantida a conservação dos filmes nacionais: coisa idêntica ao feito pelo Museu de Arte Moderna de Londres ou pelo de New York, organizador daquela “cavalcade” da sétima arte nos Estados Unidos que o ator Abdias do Nascimento e o poeta argentino Ephraim Bó me levaram para ver, ambos fazendo indagações sobre o destino do cinema
Desde já podem ser firmadas algumas “indicações”, às quais dei o título deste trabalho, e que são os seguintes:
a) Levantamento de toda a produção nacional até hoje
b) Contato com produtores e possíveis possuidores de negativos ou cópias
c) Organização de arquivo fotográfico sobre os filmes; datas de filmagem, equipes, cenário, inclusive tamanho das cenas, condições técnicas como máquinas e película usadas – se ortocromática ou pancromática – laboratório etc. Comentário, baseado nos dados acima, feito por uma comissão
d) Reconstituição, com fotografias, do que não for possível recuperar. Diafilmes. Letreiros
e) Regulamentação da conservação; banhos endurecedores, limpagem e tempo de rebobinagem.
f) Projeção na cadência de 16 quadros por segundo e com a antiga janela.
g) Troca de informações com outras organizações
*
Vejamos os “itens”, cada um de per si. Um trabalho destes, necessariamente, tem que começar pela consulta às revistas da época e às pessoas que de perto estiveram ligadas à nossa filmagem. Exemplos: Dustan Maciel e Gentil Roiz, no Rio, que facilitarão o contato com o pequenino museu de Pernambuco; as famílias de Antonio Leal e Victor Capellaro e muitas outras.
Feito o levantamento, poderá então ser dado início à filmoteca. A ela, que deverá determinar qual o primeiro filme rodado no Brasil, não devem faltar aqueles considerados históricos, como Um transformista original, feito em 1903, na cidade de Barbacena; A quadrilha do esqueleto, sob o patrocínio de A Noite, e Pátria e Bandeira, mostrando manobras do Exército Brasileiro em 1916 e que tinha como finalidade a propaganda do serviço militar.
São filmes de basilar importância, sem que isto signifique que não se deva procurar obter toda a produção muito antiga: A esposa do solteiro e O dever de amar, todo o “ciclo de Cataguazes”, O caçador de diamantes, de Capellaro; Iracema, de Marques Filho, Sinfonia de São Paulo, de Adalberto Kemeny e Rodolpho Lustig, Barro Humano, de Adhemar Gonzaga, Limite, de Mário Peixoto, Lábios sem beijos e Ganga Bruta de Humberto Mauro e Às armas e Mulher, de Otávio Mendes. Limitei-me nesta breve lista, às realizações da era do silencioso, sendo de lamentar o não mais poder contar-se com Urutáu, dirigido pelo americano William Jansen e que marcava o início de Carmen Santos; com Cruzeiro do Sul e com os dois Guaranys feitos por Capellaro, em 1916 e 1925, filmes perdidos em incêndios, em acidentes ou mesmo desgastados pelo tempo. A produção mais nova, pela experiência que existe, deve ser cuidadosamente acompanhada, de maneira que, mais tarde, não venha a acontecer o mesmo.
Os documentários têm, neste ponto, posição de grande relevo, pois estão marcando, ao vivo, a nossa evolução nos últimos tempos. Eles, tanto quanto o filme de ficção, tem que ser tomados em consideração na coleção de uma filmoteca.
Deixo assim, ligeiramente esboçado, o que diz respeito aos dois primeiros itens.
*
Quanto ao item “c”, deve ser lembrado que a cronologia dos filmes é, como tudo que se refere à história, da maior importância, assim como, para a história, devem ser anotados, com o maior cuidado, as condições técnicas.
Possuímos motivos, do maior interesse, para marcar a evolução de uma arte e uma indústria. Exemplos: o colorido e o “cronofone” de Benedetti que era a projeção, no lugar em que hoje estão os letreiros sobrepostos dos filmes estrangeiros, da partitura a ser seguida pela orquestra, havendo sido filmados, com sincronismo, até bailados; A Esposa do solteiro, com os famosos artistas italianos Laetitia Quaranta e Claro Campogalliani e com exteriores do Rio e de Buenos Aires, possibilitando a exibição fora dos nossos circuitos e que foi, por isso, a primeira tentativa de industrialização: Tesouro perdido, com avanços e recuos de máquina, feito em 1923, mais ou menos à época em que Ewald André Dupont fazia o seu Varietê na Alemanha (ainda não exibido no Brasil) e tido como criador do recurso; a Sinfonia de São Paulo, no qual podia ser sentida a influência do Berlim de Kari Ruttman, mas nem por isso despido de valor; Limite, realização super-intelectualizada, discutida até hoje a interpretação da sua narrativa, não havendo sido exibida para o público; João Ninguém, com a seqüência de um sonho inteiramente colorida, o que talvez também nos dê prioridade n’esta história de filmes com trechos em preto e branco e colorido; e Bonequinha de Seda que mostrava pela primeira vez entre nós, o “process-short”, pequeno é verdade, mas perfeito quando víamos, através do vidro o posterior de um automóvel, o desfilar das ruas cariocas; Coisas nossas, o primeira filme da fase do sonoro, feito ainda pelo “sistema-vitafone”, isto é, com discos; os primeiros “movie-tones” como A voz do carnaval e Estudantes, bem como todas as seqüências mais marcantes de toda e qualquer produção.
Não quero dizer que os nossos primeiros “travellings” hajam sido uma maravilha, melhores que os famosos de W. Tourjansky e John Farrow, nas primeiras cenas, respectivamente, da versão falada de A sublime mentira de Nina Petrowna e de Irmãos em armas ou o do ataque à fábrica que vimos o ano passado em Assassinos, que Robert Siodmak dirigiu, tampouco quero afirmar que João Ninguém tivesse uma combinação de preto e branco e colorido melhor que Neste mundo e no outro, filme inglês. Mas que foi antes não é possível negar, pois, enquanto o nacional teve sua apresentação feita em 1936, no Alhambra, o segundo apenas há poucos dias foi mostrado ao público...
De todo o histórico que for possível conseguir-se, uma comissão fará um juízo definitivo, tomando em consideração “o tempo e o espaço”... e as “condições técnicas” acima citadas. É, para este aspecto do trabalho, da mais absoluta necessidade que os filmes tenham a sua cenarização analisada, conseguindo num mtdidos até o tamanho de cada cena, de foram que possam ser avaliadas, não só a tendência de cada realizador, mas os seus conhecimentos das regras fundamentais de montagem e do ritmo.
*
Cuida de letreiros e diafilmes, o item “d”. Acho que deverão ser feitas, nos filmes incompletos, explicações com letreiros, se for o caso de não existirem trechos de capital importância. O som, neste caso, apenas trará prejuízos.
Quando nada mais existir sobre determinado filme, então projeções fixas, feitas com diafilmes, será melhor que coisa alguma.
O item “e” fala em “regulamentação da conservação”.
Sim. Efetivamente é necessário que, de tempos em tempos, digamos anualmente, o filme seja passado n’uma enroladeira, ou melhor, rebobinado. Esta medida tem por finalidade fazer com que os filmes, não ficando guardados muito tempo nas latas não venham a sofrer a corrosão do hiposulfito, muito comum quando a película não esteve em laboratório que lhe dispensasse tratamento adequado, no caso, banho suficientemente demorado.
A limpeza com tetracloreto de carbono e a passagem em um banho dos chamados endurecedores, eis outras medidas da maior importância em filmes que se queiram recuperar.
*
A projeção em 16 quadros por segundo e em projetor com a janela do tempo do silencioso, eis do que trata o item penúltimo.
O advento do som trouxe, para a sua reprodução prefeita, o aceleramento para 24 quadros por segundo, motivo pelo qual os filmes da era do silencioso, quando exibidos em projetores com a cadência sonora ficam ridículos, com os atores dando saltos e corridinhas, pois, como é claro, uma cena filmada em um número de quadros e projetada em velocidade maior tem que assim resultar. No entanto, tal não acontecerá se os projetarmos da maneira para o qual foram realizados.
A janela da projeção deve ser a antiga. Usada a atual, tudo aparecerá desenquadrado. O som, cortando a parte destinada à gravação, cortou também as extremidades superior e inferior das cenas, de maneira à que a parte da emulsão não ficasse um quadrado. Este é o motivo pelo qual tantos artistas de filmes antigos aparecem de cabeças cortadas ou como que filmados em um canto.
Aqui surge novo problema: o copiador usado para trabalhos de um museu deve possuir uma janela das antigas, pelo mesmo motivo exposto.
Estes cuidados parecem imprescindíveis, para que não se torne em uma coisa cômica, o que é merecedor do maior respeito.
*
E chegamos, finalmente, ao último item, que fala em “troca de informações”.
Este item está em íntima e perfeita conexão com o da letra “c”, quando fala em “comentário feito por uma comissão”.
A medida sugerida tem por fim entrar em contato com historiadores da importância de Rogér Manwell e Leon Moussinac, ou com organizações, expondo as nossas conquistas no novo meio de expressão e citando datas, não só para comunicarmos o que já tenhamos feito ou estejamos fazendo – forçando a que nossos filmes sejam citados nas antologias do cinema mundial – mas, igualmente, para termos uma visão completa do cinema em todos os países, pois como é sabido, tomamos conhecimento real apenas do que se passa em pouquíssimos centros produtores.
*
Creio estar absolutamente certo no que disse.
Assunto da maior complexidade, não tenho a pretensão de o haver esgotado, devendo, no entanto, ressalvar que o fiz tão somente de memória, sem consultar dados, técnicos ou históricos. No que se refere, por exemplo, a importantes filmes antigos, devem existir faltas, as quais serão completadas em “A pequena História do Cinema Brasileiro”, trabalho já com as pesquisas iniciadas.
Está é a minha contribuição para o que está sendo anunciado: a criação entre nós dos primeiros museus de cinema
Reportagem de Jurandyr Bastos Noronha
Publicado em Cena muda, n.28, de 13 de julho de 1948.
Noticiaram os suplementos literários a fundação do Museu de Arte Moderna, estando, à frente do mesmo, nomes os mais representativos da cultura brasileira. Vemos assim (e não há nenhum bairrismo, pois sou mineiro e moro na ilha do Governador...) que o Distrito Federal segue o que vem de acontecer no estado bandeirante, em cujo capital já existe um museu congênere.
Não posso afirmar que o museu de São Paulo tenha uma sessão de cinema, como pretende o do Rio, mas sei que o Clube de Cinema de lá, com Saulo Guimarães, Rubem Biáfora, Almeida Salles e Benedito Duarte, é o melhor organizado do país. Seus debates tornaram-se famosos, bem como famosa é a sua filmoteca, recentemente enriquecida com novas aquisições, feitas na Europa por Paulo Emílio Salles Gomes, entre os quais contam-se os clássicos Um chapéu de palha da Itália e O milhão, de René Clair, A paixão de Joana D’Arc, de Carl Deyer e Sangue de poeta, de quando Jean Cocteau se dedicava às abstrações cinematográficas.
A cidade de Belo Horizonte tem igualmente o seu núcleo de estudiosos, bem como, aqui está em atividade o Diretório de Cinema da Faculdade de Filosofia, ao qual se junta o corpo social do velho Chaplin Clube, com Otávio de Faria, Plínio Sussekind e outros. Acontece que as “libraries” acima citadas cuidam tão somente das grandes obras do cinema mundial, havendo quase completo esquecimento do que fizeram os nossos pioneiros. Apenas o pequeno museu do Recife, criado graças à dedicação de Luis Maranhão, está com os antigos filmes silenciosos feitos no norte, como A filha do advogado, No cenário da vida, Dança, amor e ventura, Aitaré da praia e Herói do século XX.
Confesso que a perda de tantos filmes passados – o que vem acontecendo – é coisa que me tem deixado aturdido, por considerá-los verdadeiro patrimônio nacional. Porque o Cinema Brasileiro não tem sido apenas as aventuras de vésperas de carnaval, como no passado não o representavam os pseudo filmes científicos: tem importância muito maior do que geralmente se supõe, se não quisermos, naturalmente, tomar em conta os farsantes e improvisadores que sempre existiram, em todas as épocas.
Produções há que, dentro do tempo e das condições em que foram feitas, igualmente e até, em alguns casos, superam trabalhos de países mais adiantados. É este confronto que eu pretendo seja feito um dia, para que haja justiça a artistas esquecidos, que não contavam com departamentos de publicidade e letreiros luminosos nas portas das grandes casas de exibição. Não avanço coisa alguma no que pode parecer uma afirmação audaciosa, sendo, apenas, a certeza de quem, há muito tempo vem estudando o cinema de todos os países – em caráter particular o do nosso – sem concordar com tudo o que chamavam de bom, mas sim levando em conta as conquistas feitas do Edwin S. Potter, Griffith, Wiene, Dupont, Grierson e Murnau: Eis porque considero da maior importância o levantamento e recuperação imediata de tudo quanto já fizemos de mais significativo, pois, em caso contrário, dentro em breve nada mais restará, com imenso e deplorável prejuízo artístico.
Preocupação idêntica à minha tem assaltado pessoas, como Álvaro Rocha, Pedro Lima ou Pery Ribas. Ainda recentemente ouvi do Dr. Pedro Gouvêa, diretor do INCE, de sua intenção de criar o Museu do Filme, no qual estivesse garantida a conservação dos filmes nacionais: coisa idêntica ao feito pelo Museu de Arte Moderna de Londres ou pelo de New York, organizador daquela “cavalcade” da sétima arte nos Estados Unidos que o ator Abdias do Nascimento e o poeta argentino Ephraim Bó me levaram para ver, ambos fazendo indagações sobre o destino do cinema
Desde já podem ser firmadas algumas “indicações”, às quais dei o título deste trabalho, e que são os seguintes:
a) Levantamento de toda a produção nacional até hoje
b) Contato com produtores e possíveis possuidores de negativos ou cópias
c) Organização de arquivo fotográfico sobre os filmes; datas de filmagem, equipes, cenário, inclusive tamanho das cenas, condições técnicas como máquinas e película usadas – se ortocromática ou pancromática – laboratório etc. Comentário, baseado nos dados acima, feito por uma comissão
d) Reconstituição, com fotografias, do que não for possível recuperar. Diafilmes. Letreiros
e) Regulamentação da conservação; banhos endurecedores, limpagem e tempo de rebobinagem.
f) Projeção na cadência de 16 quadros por segundo e com a antiga janela.
g) Troca de informações com outras organizações
*
Vejamos os “itens”, cada um de per si. Um trabalho destes, necessariamente, tem que começar pela consulta às revistas da época e às pessoas que de perto estiveram ligadas à nossa filmagem. Exemplos: Dustan Maciel e Gentil Roiz, no Rio, que facilitarão o contato com o pequenino museu de Pernambuco; as famílias de Antonio Leal e Victor Capellaro e muitas outras.
Feito o levantamento, poderá então ser dado início à filmoteca. A ela, que deverá determinar qual o primeiro filme rodado no Brasil, não devem faltar aqueles considerados históricos, como Um transformista original, feito em 1903, na cidade de Barbacena; A quadrilha do esqueleto, sob o patrocínio de A Noite, e Pátria e Bandeira, mostrando manobras do Exército Brasileiro em 1916 e que tinha como finalidade a propaganda do serviço militar.
São filmes de basilar importância, sem que isto signifique que não se deva procurar obter toda a produção muito antiga: A esposa do solteiro e O dever de amar, todo o “ciclo de Cataguazes”, O caçador de diamantes, de Capellaro; Iracema, de Marques Filho, Sinfonia de São Paulo, de Adalberto Kemeny e Rodolpho Lustig, Barro Humano, de Adhemar Gonzaga, Limite, de Mário Peixoto, Lábios sem beijos e Ganga Bruta de Humberto Mauro e Às armas e Mulher, de Otávio Mendes. Limitei-me nesta breve lista, às realizações da era do silencioso, sendo de lamentar o não mais poder contar-se com Urutáu, dirigido pelo americano William Jansen e que marcava o início de Carmen Santos; com Cruzeiro do Sul e com os dois Guaranys feitos por Capellaro, em 1916 e 1925, filmes perdidos em incêndios, em acidentes ou mesmo desgastados pelo tempo. A produção mais nova, pela experiência que existe, deve ser cuidadosamente acompanhada, de maneira que, mais tarde, não venha a acontecer o mesmo.
Os documentários têm, neste ponto, posição de grande relevo, pois estão marcando, ao vivo, a nossa evolução nos últimos tempos. Eles, tanto quanto o filme de ficção, tem que ser tomados em consideração na coleção de uma filmoteca.
Deixo assim, ligeiramente esboçado, o que diz respeito aos dois primeiros itens.
*
Quanto ao item “c”, deve ser lembrado que a cronologia dos filmes é, como tudo que se refere à história, da maior importância, assim como, para a história, devem ser anotados, com o maior cuidado, as condições técnicas.
Possuímos motivos, do maior interesse, para marcar a evolução de uma arte e uma indústria. Exemplos: o colorido e o “cronofone” de Benedetti que era a projeção, no lugar em que hoje estão os letreiros sobrepostos dos filmes estrangeiros, da partitura a ser seguida pela orquestra, havendo sido filmados, com sincronismo, até bailados; A Esposa do solteiro, com os famosos artistas italianos Laetitia Quaranta e Claro Campogalliani e com exteriores do Rio e de Buenos Aires, possibilitando a exibição fora dos nossos circuitos e que foi, por isso, a primeira tentativa de industrialização: Tesouro perdido, com avanços e recuos de máquina, feito em 1923, mais ou menos à época em que Ewald André Dupont fazia o seu Varietê na Alemanha (ainda não exibido no Brasil) e tido como criador do recurso; a Sinfonia de São Paulo, no qual podia ser sentida a influência do Berlim de Kari Ruttman, mas nem por isso despido de valor; Limite, realização super-intelectualizada, discutida até hoje a interpretação da sua narrativa, não havendo sido exibida para o público; João Ninguém, com a seqüência de um sonho inteiramente colorida, o que talvez também nos dê prioridade n’esta história de filmes com trechos em preto e branco e colorido; e Bonequinha de Seda que mostrava pela primeira vez entre nós, o “process-short”, pequeno é verdade, mas perfeito quando víamos, através do vidro o posterior de um automóvel, o desfilar das ruas cariocas; Coisas nossas, o primeira filme da fase do sonoro, feito ainda pelo “sistema-vitafone”, isto é, com discos; os primeiros “movie-tones” como A voz do carnaval e Estudantes, bem como todas as seqüências mais marcantes de toda e qualquer produção.
Não quero dizer que os nossos primeiros “travellings” hajam sido uma maravilha, melhores que os famosos de W. Tourjansky e John Farrow, nas primeiras cenas, respectivamente, da versão falada de A sublime mentira de Nina Petrowna e de Irmãos em armas ou o do ataque à fábrica que vimos o ano passado em Assassinos, que Robert Siodmak dirigiu, tampouco quero afirmar que João Ninguém tivesse uma combinação de preto e branco e colorido melhor que Neste mundo e no outro, filme inglês. Mas que foi antes não é possível negar, pois, enquanto o nacional teve sua apresentação feita em 1936, no Alhambra, o segundo apenas há poucos dias foi mostrado ao público...
De todo o histórico que for possível conseguir-se, uma comissão fará um juízo definitivo, tomando em consideração “o tempo e o espaço”... e as “condições técnicas” acima citadas. É, para este aspecto do trabalho, da mais absoluta necessidade que os filmes tenham a sua cenarização analisada, conseguindo num mtdidos até o tamanho de cada cena, de foram que possam ser avaliadas, não só a tendência de cada realizador, mas os seus conhecimentos das regras fundamentais de montagem e do ritmo.
*
Cuida de letreiros e diafilmes, o item “d”. Acho que deverão ser feitas, nos filmes incompletos, explicações com letreiros, se for o caso de não existirem trechos de capital importância. O som, neste caso, apenas trará prejuízos.
Quando nada mais existir sobre determinado filme, então projeções fixas, feitas com diafilmes, será melhor que coisa alguma.
O item “e” fala em “regulamentação da conservação”.
Sim. Efetivamente é necessário que, de tempos em tempos, digamos anualmente, o filme seja passado n’uma enroladeira, ou melhor, rebobinado. Esta medida tem por finalidade fazer com que os filmes, não ficando guardados muito tempo nas latas não venham a sofrer a corrosão do hiposulfito, muito comum quando a película não esteve em laboratório que lhe dispensasse tratamento adequado, no caso, banho suficientemente demorado.
A limpeza com tetracloreto de carbono e a passagem em um banho dos chamados endurecedores, eis outras medidas da maior importância em filmes que se queiram recuperar.
*
A projeção em 16 quadros por segundo e em projetor com a janela do tempo do silencioso, eis do que trata o item penúltimo.
O advento do som trouxe, para a sua reprodução prefeita, o aceleramento para 24 quadros por segundo, motivo pelo qual os filmes da era do silencioso, quando exibidos em projetores com a cadência sonora ficam ridículos, com os atores dando saltos e corridinhas, pois, como é claro, uma cena filmada em um número de quadros e projetada em velocidade maior tem que assim resultar. No entanto, tal não acontecerá se os projetarmos da maneira para o qual foram realizados.
A janela da projeção deve ser a antiga. Usada a atual, tudo aparecerá desenquadrado. O som, cortando a parte destinada à gravação, cortou também as extremidades superior e inferior das cenas, de maneira à que a parte da emulsão não ficasse um quadrado. Este é o motivo pelo qual tantos artistas de filmes antigos aparecem de cabeças cortadas ou como que filmados em um canto.
Aqui surge novo problema: o copiador usado para trabalhos de um museu deve possuir uma janela das antigas, pelo mesmo motivo exposto.
Estes cuidados parecem imprescindíveis, para que não se torne em uma coisa cômica, o que é merecedor do maior respeito.
*
E chegamos, finalmente, ao último item, que fala em “troca de informações”.
Este item está em íntima e perfeita conexão com o da letra “c”, quando fala em “comentário feito por uma comissão”.
A medida sugerida tem por fim entrar em contato com historiadores da importância de Rogér Manwell e Leon Moussinac, ou com organizações, expondo as nossas conquistas no novo meio de expressão e citando datas, não só para comunicarmos o que já tenhamos feito ou estejamos fazendo – forçando a que nossos filmes sejam citados nas antologias do cinema mundial – mas, igualmente, para termos uma visão completa do cinema em todos os países, pois como é sabido, tomamos conhecimento real apenas do que se passa em pouquíssimos centros produtores.
*
Creio estar absolutamente certo no que disse.
Assunto da maior complexidade, não tenho a pretensão de o haver esgotado, devendo, no entanto, ressalvar que o fiz tão somente de memória, sem consultar dados, técnicos ou históricos. No que se refere, por exemplo, a importantes filmes antigos, devem existir faltas, as quais serão completadas em “A pequena História do Cinema Brasileiro”, trabalho já com as pesquisas iniciadas.
Está é a minha contribuição para o que está sendo anunciado: a criação entre nós dos primeiros museus de cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário