Blog com artigos técnicos, teóricos, históricos e políticos, em português, sobre a preservação das imagens em movimento.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Nós precisamos mesmo da película?
O artigo "Do we need film?" foi publicado no Journal of film preservation, n.72, de novembro de 2006, a revista oficial da FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes). Seu autor, David Walsh, é o conservador-chefe do Arquivo de filme e vídeo do Imperial War Museum, em Londres. Criado em 1917 para guardar a memória da Primeira Guerra Mundial (então ainda em curso), foi provavelmente a primeira instituição oficial de guarda a criar um setor de documentação cinematográfica, com a finalidade de preservar as imagens em movimento sobre o conflito.
No artigo traduzido do inglês, Walsh faz uma defesa veemente do uso da tecnologia digital, sobretudo nos processos de restauração, o que surpreende frente a certa reticência ainda notada no meio. Traz ainda reflexões interessantes sobre dilemas sucitados pela qualidade extraordinária das ferramentas digitais na extração de informações das imagens fotográficas.
Ao longo do texto, optei por traduzir a palavra "film" por "película", ao invés do literal "filme", para restringir seu sentido, uma vez o autor se refere à tira de plástico fina, transparente e flexível utilizada como suporte para emulsões fotográficas e não à obra cinematográfica em geral, como a palavra é comumente entendida.
Por fim, o Congresso da FIAF realizado em São Paulo citado no texto foi organizado e sediado pela Cinemateca Brasileira.
Nós precisamos mesmo da película?
David Walsh
(tradução de Rafael de Luna Freire)
O quase total consenso atual de que o uso da película como suporte está prestes a desaparecer inteiramente da produção cinematográfica tem gerado muitas discussões angustiadas nos arquivos audiovisuais frente à dúvida se num mundo sem película ainda será possível prosseguir na tarefa de preservar e exibir filmes de arquivo. Assistir a um filme numa tela grande e numa sala escura é indiscutivelmente uma característica essencial da experiência cinematográfica, mas será realmente importante ter consciência sobre qual mecanismo é utilizado para produzir a imagem na tela?
Imaginem a seguinte situação: o congresso da FIAF de 2000 em Londres promoveu “A última sessão de nitrato”, uma rara oportunidade – e que talvez tenha sido a última – para o grande público apreciar filmes projetados em cópias originais em suporte de nitrato de celulose. Pouco antes do evento, o corpo de bombeiros local decidiu que essas projeções em nitrato a serem realizadas no National Film Theater – localizado atrás de uma congestionada ponte local e adjacente a um grande centro cultural – não poderiam ser permitidas. Sem querer frustrar os delegados do congresso, os organizadores impulsivamente decidiram substituir os nitratos por cópias de segurança em triacetato de celulosa e tendo os projecionistas como cúmplices do segredo, o evento foi realizado sem problemas. Ninguém percebeu diferença alguma.
O que foi descrito acima é obviamente uma fantasia. Acredita-se que os organizadores do congresso da FIAF sejam pessoas íntegras e temos todos os motivos para crer que as cópias originais em nitrato foram de fato projetadas. Entretanto, para o público no cinema, o frisson em ver filmes nos verdadeiros suportes de nitrato estava totalmente sustentado na crença de que nitratos estavam sendo realmente projetados (e talvez pela possibilidade deles pegarem fogo na cabine de projeção), e não por notarem diferenças entre cópias novas e velhas. (De fato, cópias modernas podem ser bastante inferiores devido à perda ou à deterioração das matrizes originais, mas de maneira alguma este é sempre o caso).
Agora, pulemos para o Congresso da FIAF de 2006 em São Paulo. O ponto principal do simpósio foi a chance de se comparar a projeção em película com uma projeção digital de alta qualidade. Nessa ocasião, a comparação foi infelizmente prejudicada pelo fato do simpósio ter ocorrido numa sala de cinema comercial que estava bem longe de ser perfeita. Mas mesmo relevando os problemas com o foco e a luminosidade da projeção, a mensagem principal – e algo chocante – foi cristalina: a projeção digital de um filme digitalizado em alta resolução facilmente se iguala em qualidade à projeção de um filme em película. E isso apesar do material digital estar sendo reproduzido nessa ocasião de um HDCAM, que não é de maneira alguma o melhor dos formatos HD correntes.
Essa constatação pode ser um pouco perturbadora, uma vez que os números nos dizem que o vídeo HD não se iguala à resolução e à textura da película cinematográfica, mas a verdade é que a tecnológica já chegou a um ponto em que, nas circunstâncias corretas, mesmo uma audiência sofisticada tem dificuldades em distinguir entre apresentações digitais e em película. E isso é rotineiramente demonstrado no Digital Test Bed no National Film Theater em Londres: compreensivelmente, o público precisa ser avisado “você vai ver esse trecho primeiro em película e depois projetado digitalmente”. Mas se essa diferença precisa ser anunciada, será que ela realmente importa?
É claro que julgando pelos comentários feitos em São Paulo, essa diferença importa sim. Mas que diferença é essa exatamente? Se as imagens na tela parecem as mesmas, então, assim como na última sessão de nitrato, o que importa é a nossa presunção acerca da origem das imagens. Mas por que isso deveria importar? Afinal de contas, uma consciência do mecanismo funcionado atrás de nós nunca fez parte da experiência cinematográfica, pelo menos não desde que o cinema chegou a sua maturidade. Os projetores e gerentes das salas de cinema se preocupam em tornar seus aparelhos os mais discretos possíveis e somente os projecionistas conhecem os misteriosos processos técnicos que criam as imagens e sons no auditório. Tentativas de dar ao público um gostinho da vida na cabine de projeção permitindo sua visitação, mesmo que atraentes e valiosas para aqueles com interesse pela tecnologia do cinema, raramente igualam o interesse pela visão do filme em si. Visitantes dos museus de cinema que apresentam essas cabines de projeções abertas só conseguem entreter com as maravilhas dos equipamentos de projeção quando se paga o preço de ignorar o que está passando na tela. Isso quer dizer que uma insistência na projeção da película ao invés do digital deve beneficiar somente aquelas pessoas que conhecem a projeção – os projecionistas?
Bem, talvez não. Há uma maneira segura de perceber quando se trata de uma projeção em película e não em digital: se você olhar com muito cuidado para tela, com certeza verá aquelas reveladoras marcas fugidias dos grãos de poeira que inevitavelmente pousam no filme, mesmo na cabine de projeção mais limpa que possa existir. Será que talvez nós realmente gostemos de todos esses confortantes riscos e pontos que nos dizem que a imagem vem de um processo imperfeito, mas de algum modo natural? É realmente difícil desenvolver qualquer afeição pelos possíveis defeitos nas projeções digitais; quando as coisas dão erradas nesse reino, nós somos geralmente apresentados a alguma imagem estranhamente esverdeada, a alguma imagem com linhas entrelaçadas, ou, mais provavelmente, a imagem nenhuma. Entretanto, uma defesa da projeção em película sustentada no argumento que ela tem uma classe melhor de defeitos dificilmente consegue muito apoio.
Não, a real preocupação com a morte da película está ligada ao desconforto que sentimos ao sermos vítimas de engodo. Uma pessoa que visite uma galeria de arte para ver uma obra conhecida fica compreensivelmente irritada ao descobrir que estava vendo uma réplica, mesmo que essa réplica seja indistinguível da obra verdadeira. Práticas de conservação correntes apontam que é cada vez mais comum nos museus expor cópias no lugar de obras preciosas. Quem visitar, por exemplo, a coleção permanente do Imperial War Museum verá uma série de réplicas cuidadosamente expostas e detalhadamente identificadas no lugar de originais que são muito delicadas para sobreviver a uma exposição longa. Este tipo de prática pode levar à percepção de que estamos nos encaminhando na direção de uma “Disneylandização” da cultura, onde tudo está sendo substituído por réplicas modeladas a partir do real. Diante dessa noção, a projeção cinematográfica digital pode realmente parecer mais um passo nessa direção.
Mas será que é mesmo? Até onde uma cópia em película pode ser considerada um original? Em um evento como “A última sessão de nitrato” pode haver alguma justificativa, desde que há indiscutivelmente uma dimensão extra em saber que a cópia passando no projetor é a mesma que entreteve as platéias originais daquele filme há 60 ou 70 anos atrás (embora seja verdade que dificilmente uma cópia até hoje em boas condições de projeção tenha realmente tido uma circulação significativa no circuito de exibição). Uma cópia como essa é talvez o equivalente uma edição limitada de uma obra – exceto pelo fato de que, diferentemente do dono desta obra, o público de cinema não olha a cópia diretamente e certamente não é permitida manuseá-la. Entretanto, em geral os arquivos não gostam de exibir cópias velhas de seus filmes, uma vez que ou elas são matrizes de preservação ou estão completamente estropiadas. Por outro lado, os arquivos adoram exibir, sempre que podem, cópias novas feitas a partir dos negativos originais. Uma cópia como essa certamente não representa o original, mas numa visão mais ampla pode ser considerada como tendo uma tênue conexão com o original, pois passou em contato íntimo com ele na copiadora, o que permitiu a criação de suas imagens pela exposição direta a ele. Mas o que dizer do produto de uma restauração moderna, de uma cópia feita a partir de um material intermediário digital? Essa é talvez a maior fraude: uma cópia em película recriada de um simulacro eletrônico do original, mesmo que um simulacro de muita qualidade. Criadas a partir de um feixe de laser oriundo de um arquivo de computador, essas imagens representam uma fabricação eletronicamente manipulada para mimetizar a aparência do filme original.
Mas por que então nos parece aceitável exibir uma cópia como essa, enquanto exibir os dados digitais por outros meios mais diretos, não? Onde está o maior engodo, se é que há algum engodo? Enquanto nos apegamos a esses detalhes, talvez estejamos perdendo o foco no ponto primordial da exibição de filmes de arquivo, que é o de apresentá-los nas melhores circunstâncias possíveis e o mais próximo possível de sua aparência original (como já estipulado pelo código de ética da FIAF: “Os arquivos devem buscar a maior aproximação possível com a experiência espectatorial original).
É exatamente na questão da recriação da aparência original das imagens – e não nos meios de produzir essas imagens – que a tecnologia digital nos leva a um território muito mais contencioso, algo perfeitamente ilustrado, embora muito pouco comentado, no próprio simpósio de São Paulo. Lá foi exibido um clipe de uma recém restaurada versão de O mágico de Oz (The Wizard of Oz). A cópia estava extremamente nítida, com cores brilhantes e grãos mínimos, e de fato parecia ter sido filmado ontem com o melhor equipamento disponível. Parecia realmente maravilhosa... e totalmente diferente de uma cópia Technicolor original.
A razão disso não tinha nada a ver com o modo de projeção: mesmo que as imagens tivessem sido transferidas para a película, o resultado pareceria o mesmo. E tampouco foi resultado de um possível embelezamento artificial levada a cabo por um técnico excessivamente entusiasmado com a moderna tecnologia de vídeo. A razão pela qual a cópia parecia absurdamente perfeita se deveu ao fato de os restauradores terem digitalizado as três tiras originais das matrizes de Technicolor em alta resolução, terem registrado e balanceado as informações das três cores primárias, e passado diretamente o resultado, sem nenhuma das intervenções com perda de qualidade exigidas por cada um dos estágios do processo foto-mecânico original do Technicolor. O resultado é o mais próximo possível de se ver a qualidade inerente ao negativo original, sendo tributário da excelente ótica da câmera de três negativos.
Não é nem preciso dizer que o problema está no resultado ser qualquer coisa, menos autêntico. Talvez os restauradores devessem piorar o resultado para que ele parecesse mais com a aparência original do filme de 1939? Restauradores são – esperamos! – conscientes dos perigos éticos de melhorias artificiais de materiais históricos, mas quem espera que eles estejam preparados para limitar seus esforços? Não há a menor chance de isso acontecer! Nós restauradores lutamos por anos contra as limitações da fotoquímica, tentando extrair de originais ruins algo que lembrasse pelo menos parcialmente a aparência original do filme, mas a realidade é que a fotoquímica simplesmente não dá conta do recado. E nunca deu – mas na ausência de qualquer alternativa, nós nos convencemos que os resultados eram aceitáveis e algumas vezes até bons. Agora, a chegada da tecnologia digital nos obrigou a aceitar a verdade: a não ser que tenhamos as matrizes originais para trabalhar em nossos laboratórios tradicionais (e mesmo assim, nem sempre!), os resultados são inevitavelmente imperfeitos. A tecnologia digital nos dá o que sempre quisemos ter: o poder de extrair toda a informação de imagem e som de matrizes muito distantes do ideal, de modo que começando de uma cópia de projeção, por exemplo, nós somos capazes de colocar uma réplica quase perfeita dessa cópia na tela como ela originalmente parecia – algo que a fotoquímica nunca permitiu. Até aqui tudo bem, mas descobrimos que a mágica também funciona quando aplicamos nossos novos poderes digitais em negativos originais e somos capazes de ultrapassar a qualidade das cópias feitas com tecnologia antiga através meramente da extração fiel da informação presente nela. E isso é particularmente verdadeiro com materiais coloridos. Será que se espera que deliberadamente limitemos nossas habilidades numa tentativa de aderir a uma moralidade pré-digital? Claro que não. A busca por melhor qualidade é algo profundamente enraizado na psique dos restauradores e se a qualidade estiver lá nas matrizes, nós vamos fazer o nosso melhor para levá-la para a tela.
Quão real é o perigo de se ir longe demais? É cada vez mais fácil – especialmente para a nova geração de técnicos formados na televisão e na computação – fazer uma restauração parecer... bem, do jeito que nosso humor quiser (Remover todo o grão? Fácil. Dar a aparência de vídeo digital? Sem problemas. Fazer parecer exatamente como uma cópia Eastmancolor dos anos 1950? Bem, como exatamente é uma cópia Eastmancolor dos anos 1950?) Alguém pode esperar, pelo menos, que esse tipo de prática seja difícil de ocorrer nos arquivos membros da FIAF: os compromissos no Código de ética de que restaurações “não devem buscar mudar ou distorcer a natureza dos materiais originais” e que “novas cópias de preservação devem ser réplicas acuradas dos materiais de origem”, claramente proíbem o tipo de melhoria artificial que a maior parte dos arquivos considera inaceitável – e vão continuar considerando inaceitáveis, se deduz, mesmo quando a copiagem fotoquímica pertencer a um passado distante. Se essas imposições permitirão a criação de cópias de exibição mais fiéis aos negativos originais do que era possível na época de feitura do filme, ainda é uma questão em debate, mas enquanto estamos ponderando sobre a necessidade de discussão, a tecnologia avança inexorável e rapidamente.
Devemos então nos preocupar? Se estivermos preocupados unicamente com acesso e apresentação, a resposta é definitivamente não! Podemos esperar um momento em que os arquivos serão capazes de produzir excelentes cópias de todo e qualquer material e quando poderemos ver na tela reproduções mais fiéis de filmes originais do que jamais pudemos antes, e quando essas cópias contrastadas, arranhadas e desfocadas, que por tanto tempo foram as marcas da preservação nos arquivos, serão finalmente coisas do passado. Mais além, com as técnicas de restauração se tornando apenas mais um item dentre as ferramentas cotidianas dos técnicos na duplicação de filmes, é provável que a distinção entre preservação e restauração desapareça. E mais importante, por ter sido filmado em película, o que irá para tela continuará parecendo película, mesmo que não se use mais filme para duplicá-lo ou exibi-lo.
Infelizmente, o que ainda não podemos fazer sem a película é encontrar algum meio confiável de preservar nossas imagens. A iminente obsolescência da película é um verdadeiro desastre anunciado para os arquivos do futuro. A preservação passiva de materiais digitais é simplesmente impraticável – nós podemos colocá-los no mais fundo, escuro e controlado cofre, mas isso não fará diferença alguma: o duplo perigo de obsolescência e deterioração física garante que não podemos dar as costas por um instante aos materiais digitais. A película pode se deteriorar e desvanecer, mas pelo menos ela pode ser estabilizada através de bom armazenamento, nos permitindo sair do arquivo com razoável confiança. Talvez o único ponto positivo que podemos pensar nesse atual estado de coisas é que, no mundo real, o armazenamento arquivístico é caro para se construir e para se manter – especialmente para aquelas películas que rapidamente se deterioram em climas úmidos e quentes, quando somente a mais rígida (e provavelmente impraticável) climatização vai oferecer alguma expectativa de vida significativa. Confrontada com essa situação, a opção de preservação por digitalização, com seu inevitável legado de perpétuo malabarismo de modo a prevenir os dados de simplesmente evaporarem, pode não ser das piores alternativas.
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Um comentário:
Aqui tem um artigo sobre a restauração digital de O Mágico de Oz: http://www.theasc.com/magazine/dec98/wizard/pgs1.htm
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