domingo, 23 de novembro de 2008

A imagem em movimento: tema ou objeto? - Parte 2

Continuação...

Bem, vamos dar uma olhada agora neste “surgimento a tempo dos arquivos”, como Pierce generosamente coloca, com uma breve e informal história da conservação fílmica, passando por suas características principais, algumas das quais servem para exemplificar as questões e ideologias dominantes que marcaram seu desenvolvimento.

Eu disse que algumas pessoas levaram o nascimento do cinema a sério, mas raramente foram seus primeiros inventores e empresários. Porém, a preservação cinematográfica teve suas isoladas vozes visionárias, pessoas que viram o potencial das imagens em movimento para alem de sua capacidade de excitar e entreter. Uma dessas pessoas foi Boleslaw Matuszevski, um cinegrafista polonês radicado em Paris que em 1898 – apenas três anos após os irmãos Lumière projetarem seus primeiros filmes para um público pagante no porão do Grand Café no Boulevard des Capucines em 28 de dezembro de 1895 – reconheceu a importância do filme como registro da vida contemporânea num livreto intitulado Uma nova fonte de História (Un nouvelle source de l’histoire). “O filme”, ele escreveu, “esse simples tira de celulóide impresso, constitui não apenas um documento histórico, mas uma parcela da história, e uma história que se apagou, mas não necessita de mágica para ganhar vida novamente... é necessário dar a essa fonte talvez privilegiada a mesma existência oficial e as mesmas possibilidades que são dadas a outros arquivos já reconhecidos”. Ele sugeria que esse arquivo de filmes proposto fosse ligado a uma organização como a Biblioteca Nacional francesa, e ele foi visionário o bastante para recomendar um sistema de depósito legal com padrões técnicos, como o depósito de negativos e o uso de cópias de referência para acesso. Como ele próprio previu, suas propostas não foram ouvidas: "Eu não tenho ilusões”, ele disse, “que meus projetos sejam rapidamente implementados”.


Houve sugestões similares no Reino Unido. No anuário Optical Magic Lantern Journal Annual de 1899, um escritor da revista Truth é citado como tendo dito que “uma espécie de Museu Nacional deveria ser criado para a coleção de todos os eventos públicos, como o Jubileu do ano passado”. Sete anos depois, o periódico Optical Lantern and Kinematograph Journal antecipou a possibilidade de depósito legal para filmes, como existia para livros e para a palavra impressa: “Chegará a época”, imaginou, “quando realizadores de registros bioscópicos terão que enviar duas cópias para o Museu Britânico, duas cópias para Biblioteca Bodleian e por aí em diante... até que um dia você será capaz de ver, anos e anos depois, esses incidentes acontecendo?”. De fato, o pioneiro cineasta britânico Robert W. Paul, em dezembro de 1896, ofereceu ao Museu Britânico várias de suas reproduções cinematográficas, que foram propriamente aceitas e depositadas no setor de Impressos e Desenhos. Em outubro de 1908, o Bioscope – num artigo chamado Não é uma moda – publicou algumas palavras que encorajavam o novo meio: “A voga do filme não é como dos cogumelos... Ele cresce vagarosamente como o carvalho... Ele não pode colapsar. Ele pode sofrer das tempestades de seus inimigos dos outros negócios de diversão e dos métodos inescrupulosos das pessoas mesquinhas, mas vai continuar crescendo e se ramificando em novos campos de utilidade. Seu futuro é garantido.” De volta à França, porém, o Ciné Journal de 27 de fevereiro de 1910 revelava que os primeiros quinze anos de produção de filmes franceses já tinham se perdido ou estavam ameaçados por mutilação, dispersão, perda, negligência ou destruição deliberada, e – ecoando Mautszewski – exigia o estabelecimento de uma “Cinematografoteca” para registro de direitos autorais e guarda de filmes, assim como existia para livros na Biblioteca Nacional Francesa. “O que”, reclamava o jornal, “se pode dizer da negligência de nossos contemporâneos? Eles não estão preocupados que o mais excitante espetáculo de suas vidas tenha desaparecido.”

Houve também nessa época um punhado do que você pode chamar de arquivos acidentais. A Biblioteca do Congresso nos EUA recebeu cópias em papel dos filmes [os chamados paper prints], com fins de registro de direitos autorais, de 1893 (os primeiros foram os “Kinetoscopic Records” de Edison) até 1912 – estes foram (satisfatoriamente) restaurados de volta para película. E o Abade Josef Joye, um padre jesuíta suíço, pediu, pegou emprestado e contrabandeou por baixo de sua batina mais de dois mil filmes curtos do início do cinema, de todos os tipos, para exibir em sua escola dominical na Basiléia nos primeiros anos do século XX. Cerca de 1.200 deles sobreviveram e estão preservados no NFTA no Reino Unido.

Houve também um arquivo constituído na Dinamarca nos anos 1920 para preservar registros de personalidades dinamarquesas célebres. Mas talvez o principal candidato ao título de primeiro arquivo de filmes autêntico e autorizado seja o Imperial War Museum, no Reino Unido, criado em 1917 como um memorial do Império Britânico para o sacrifício e esforço que a Grande Guerra representou. Em 1919, a coleta de registros cinematográficos oficiais da Primeira Guerra Mundial foi adicionado aos seus estatutos. O filme A Batalha de Somme (The Battle of the Somme) – agora designado como patrimônio mundial pela UNESCO – foi um de seus primeiros depósitos. A história do homem encarregado de construir esse arquivo – um discreto e talentoso servidor civil chamado Edward Foxen Cooper – é fascinante, e você pode encontrar um parte dela contada por Roger Smither e David Walsh do Departamento de Filme e Vídeo do Imperial War Museum em artigo em Film History, vol 12, n. 2000. O que está claro é que o arquivo de Foxen Cooper, apesar de especializado em conteúdo, foi, em conceito, a primeira organização de seu tipo a reconhecer e preencher a política completa de coleta, conservação, preservação, catalogação e disponibilização para acesso de filmes sobre a Primeira Guerra Mundial. Ele até advogou exibições públicas de filmes, utilizando a coleção do Museu, e lutou para um papel mais ativo do governo na filmagem de eventos importantes.

Mas nos fomos ensinados que os primeiros arquivos de filmes de verdade – aqueles que reconheceram o cinema como arte e como registro – foram criados em 1935. Dois anos antes, um protótipo de arquivo foi estabelecido na Suécia, mas era uma coleção privada, do falecido Einar Lauritzen [milionário suíço, oriundo de uma família de banqueiros]. Os primeiros arquivos oficiais dessa espécie, criados entre 1933 e 1935, foram o National Film Library do Reino Unido (depois National Film Archive), integrado à alçada educacional do então recém-fundado do BFI (o celebrado autor e membro do parlamento, John Buncan, foi a força atrás dessa iniciativa); o Departamento de Filme do MoMA de Nova York, que ambicionava coletar filmes como uma extensão de sua coleção de arte; e o Reichsfilmarchiv em Berlim, um produto da paixão de Josef Goebbels pelo cinema como instrumento de propaganda. Em 1936, a Cinemateca Francesa, a coleção privada do cinéfilo Henri Langlois, foi estabelecida em Paris (a expressão Cinemateca foi cunhada pela primeira vez pelo crítico francês Léon Moussinac, em um artigo da Cinémagazine em 1921; ele se referia a uma “biblioteca do cinematógrafo, ou cinemateca”. Ele também, em 1929, sublinhou o papel que uma cinemateca podia ter na vida cultural de uma nação - justamente a missão que a Cinemateca Francesa assumiria).

O que levou a esta súbita preocupação pelo cuidado e uso sério do cinema? Não foi apenas a perda de tanto do cinema silencioso – isso só ficou claramente aparente com o desenvolvimento dos arquivos –, mas uma crescente consciência do filme do algo mais do que apenas uma diversão popular: era agora oficialmente uma forma de arte. O crescimento dos círculos de filmes intelectualizados nos anos 1920, como The Film Society, em Londres, que importou os novos e iconoclastas filmes russos, franceses e alemães daquele período, e os movimentos artísticos europeus de vanguarda européia como o Expressionismo, o Surrealismo e o Futurismo, que abarcaram o cinema, contribuíram fortemente para os novos conceitos que viam os filmes como merecedores de serem guardados por seus méritos artísticos. Nos EUA, isso foi reforçado pela chegada de cineastas imigrantes da Europa, como F. W. Murnau, Ernst Lubitsch ou ambos os Vons, o Stroheim e o Sternberg, que injetaram uma estética do velho mundo no impetuoso cinema americano.

Um arquivo se destaca dentre esse disparatado bando de organizações novatas, e é aquele que se tornaria o National Film Archive (NFA) do Reino Unido. Ele merece uma visão mais próxima por ter se tornado universalmente conhecido como modelo de boas práticas e políticas de preservação. Ele nasceu como parte da competência do BFI, ele próprio criado em 1933 para promover filmes culturais e educativos na vida nacional e (como definido numa virtual sub cláusula) para “ser responsável pelos registros cinematográficos e manter um repositório nacional para filmes de reconhecido valor”.

Ernest Lindgren, fundador e primeiro curador do NFA, não foi um colecionador romântico como Lauritzen ou um flamboyant excêntrico como Henri Langlois. Formado em Literatura Inglesa e amante do cinema, ele entrou no instituto em seu Setor de Informação. Sua visão do arquivo se diferenciava da de Langlois e de outros contemporâneos de duas importantes formas. Primeiramente, ele tinha uma visão completamente eclética do filme e da preservação de filmes. Para ele, filmes de não-ficção, filmes de atualidade, documentários, filmes amadores – filmes como um registro vital da nossa vida e do nosso tempo – deveriam receber a mesma importância que os longas-metragens de ficção feitos para o cinema, especialmente num país como a Inglaterra, com uma forte tradição documentária. Eles eram um ingrediente autêntico dessa forma de arte. Numa brochura da NFA publicada em 1958, Lindgren especulava sobre a inquestionável importância e valor que haveria em registros filmados, por exemplo, da coroação da Rainha Elizabeth I e sua vida em Londres, se o cinema tivesse sido inventado 350 anos antes. Ele poderia ter tornado esse argumento igualmente potente, porém mais realista, se tivesse aproximado essa noção ao ser referir nesses termos à Guerra Civil Americana ou à Guerra da Criméia, já que esses eventos foram vívida e extensivamente registrados pelos precursores imediatos do cinema, como a fotografia. Mas o arquivo de Ernest foi o primeiro e único arquivo nacional durante muitos anos a adotar essa postura de ampla aquisição. Mais tarde, ele foi o primeiro a abraçar a televisão como uma parte importante da missão de coleta do NFA.

Em segundo lugar, ele nunca permitiria que cópias únicas fossem projetadas. Ele se preocupava mais com a sobrevivência em longo prazo da coleção do que com o acesso imediato. Cópias de visionamento viriam quando houvesse dinheiro para fazê-las. O armazenamento e a conservação adequados eram sua principal prioridade. Nesse campo, Lindgren se estranhou muito com Langlois, que exibia todo tipo de cópia que tivessem, não importando o dano infligido em cópias únicas. Langlois, então, virou um herói para seus espectadores, entre eles os críticos e futuros cineastas da Cahiers du Cinéma – Godard, Truffaut, Chabrol e os demais – enquanto Lindgren (sem admiradores glamourosos como esses) ganhou a fama de um rígido burocrata que odiava filmes e não deixava ninguém vê-los. Segundo recorrente piada de seus inimigos, NFA significava “Nenhum Filme Acessível” (No Film Available).

Mas qualquer um que já leu o livro de Lindgren, A arte do filme (The Art of the Film), sabe como isso é injusto. Na realidade, ele regularmente programava filmes da coleção do arquivo – cimentando o caminho para a criação da sala de cinema do BFI (o National Film Theatre) – e seu comprometimento genuíno com acesso o levou eventualmente a criar o primeiro serviço de visionamento de arquivos para estudantes, pesquisadores e cineastas (Eu sei disso por que eu fui o encarregado de escrever o rascunho dessa proposta). E, no final, suas medidas protetoras venceram: assim que as cópias do arquivo foram progressivamente preservadas e copiadas (um curador seguinte, David Francis, instituiu a prática de fazer uma cópia de checagem – na verdade, uma cópia de visionamento – de todo filme duplicado para preservação), a coleção de cópias de acesso do NFA se tornou não apenas a maior de todos os arquivos, como uma das que possuem cópias de melhor qualidade. Nos anos 1990, o serviço de visionamento do Arquivo com dois funcionários para agendamento, liderado pela ex-catalogadora Elain Burrows, chegou a emprestar mais de seis mil filmes anualmente para pesquisadores, cinemas do BFI e para arquivos estrangeiros – mais até do que o próprio departamento de distribuição do BFI. “Exibir para se preservar”, disse Langlois. “Não”, disse Lindgren, “Preservar para se exibir”.

O resultado dessa disputa ideológica eventualmente levou ao racha da comunidade dos arquivos de filmes, e por muitos anos Langlois e a Cinemateca Francesa, junto com alguns arquivistas com a mesma mentalidade, como James Card da George Eastman House e Freddy Buache na Suiça, se afastaram do movimento internacional de arquivos de filmes. Como Luke McKernan diz em seu verbete sobre Ernest Lindgren na Enciclopédia de Filmes Britânicos (Encyclopedia of British Film) de Brian McFarlane: “Lindgren não era tão divertido quando Langlois, mas era ele quem estava certo”.

Lindgren trabalhou em seu escritório até sua morte em 1973. Àquela altura ele tinha estabelecido regras de arquivos específicas, como catalogação padronizada, divulgação de procedimentos de seleção, e rigorosa revisão de filmes, que se tornaram práticas básicas da arquivística audiovisual em todo o mundo. Ele também negociou os primeiros acordos de aquisição vantajosos com uma indústria de cinema notoriamente desconfiada, pouco cooperativa e obcecada em proteger seus diretos, e que, ao mesmo tempo, atacava constantemente o governo por causa do depósito legal de filmes. Ele fez outra coisa que foi muito inteligente. Ele colocou no Setor de Preservação de Filmes do Arquivo um jovem chamado Harold Brown, que era office boy no Instituto. Tornando-se praticamente um autodidata após um sacrificante curso para projecionistas sobre como fazer emendas e revisar filme, e que, desde o início, inventava suas próprias técnicas de manuseio e preservação de filmes de arquivo, Harold Brown veio a se tornar um dos maiores especialistas do mundo em preservação de filmes. Desse modo, ele podia rapidamente treinar funcionários sem experiência em trabalhos especializados como reparo de filmes, e dar ajuda prática e esperança a arquivos em países pobres com pouco ou nenhum recurso. Sua visão básica é que profissionais de fora da indústria do cinema adotavam atitudes de visão mais longa do que a de profissionais da indústria cinematográfica, que viam o filme como o produto para exploração em curto prazo e com uma breve vida comercial, e conseqüentemente o manuseavam com menos preocupação para com sua sobrevivência mais longa.

Vou me reter à apenas duas histórias sobre Harold, mas ambas ilustram momentos importantes – talvez cruciais – da técnica arquivística de filmes. O primeiro o próprio Harold é quem conta numa lembrança sobre o início de sua carreira que eles escreveu em Este filme é perigoso: “Eu me deparei com um filme com um rasgo ao longo de dois fotogramas. O jeito ‘certo’ de lidar com isso era cortar os dois fotogramas danificados e fazer uma emenda normal. O que eu fiz foi juntar as partes rompidas e colar um pedaço de filme transparente sobre o corte. Eu fui severamente criticado pelo supervisor técnico do Instituto, mas quando Lindgren viu, ele disse: ‘você estava tentando salvar os fotogramas, não estava?’. Ele claramente estava aprovando aquela medida... e esse incidente revela a postura que passou a nortear nosso trabalho dali em diante”.

A segunda anedota de Harold Brown é narrada em outra citação de Tesouro secreto do século XX, no qual Harold demonstra sua revolucionária copiadora quadro a quadro Mark IV, projetada para copiar os primeiros filmes Lumière e construída por ele próprio com “peças de brinquedo metálico de montar, engrenagens de câmeras antigas, madeira balsa, clipes de papel, elástico de borracha e elástico de estilingue”.

É impossível exagerar a importância desse equipamento do “Dr. Pardal”, que copiou e salvou inúmeros e preciosos rolos de filmes nitratos encolhidos que, por muito tempo, nenhuma outra copiadora conseguia passar – assim como é impossível exagerar a contribuição do próprio Harold Brown para o desenvolvimento da arquivística audiovisual. Nas palavras de David Francis, segundo curador do NFA e depois chefe da divisão de filmes da Biblioteca do Congresso, em Washington, “foi a combinação única da mente ordenada e curiosa de Ernest Lindgren e a habilidade de Harold Brown em pensar em soluções simples e baratas para problemas técnicos complexos, que fez do National Film Archive a autoridade mundial em preservação cinematográfica”.

Eu devo agora fazer uma atualização da história da arquivística cinematográfica e considerar seu futuro. Em 1938, os primeiros arquivos de filmes se reuniram em Paris para criar a Federação internacional de Arquivos de Filmes (FIAF). A Segunda Guerra Mundial interveio e a FIAF teve um recomeço em 1946, agora sem o Reichsfilmarchiv, mas com novos membros em Bruxelas, Basiléia, Praga, Amsterdã e Varsóvia. Desde então o movimento internacional de preservação cinematográfica cresceu rapidamente por todo o mundo, com uma inevitável tendência na direção de arquivos na Europa e América do Norte, mas com uma significativa adição de membros da América Latina, Ásia e África. Sobre aquele primeiro encontro em 1938, Robert Daudelin, ex-presidente da FIAF, escreveu, por ocasião do 50° Aniversário da FIAF: “1938 marcou o fim do período heróico: aquele dos piratas românticos, trabalhando secretamente e isolados, entusiastas do cinema do nitrato subterrâneo. A criação da FIAF marcou o início oficial da era da colaboração, do intercâmbio e de projetos internacionais. Não significou o fim dos mistérios e segredos, mas paixões puderam ser reveladas sem vergonha e o papel dos conservadores de filmes se tornou respeitável. Os arquivos de filmes emergiram de suas atividades clandestinas...” (Bem, pelo menos a maior parte deles, em alguma medida).

Hoje a FIAF tem mais de 125 membros em 80 diferentes países, abrangendo todo tipo possível de arquivo de filme – grandes arquivos nacionais, instituições governamentais, arquivos de filmes especializados e regionais (O Reino Unido sozinho tem arquivos de filmes servindo cada grande região, incluindo arquivos nacionais sui generis na Escócia e no País de Gales), arquivos religiosos e militares, museus de cinema, museus de arte, departamentos universitários, fundações privadas; alguns pobres e outros não tão pobres (não que exista algo como um arquivo rico) – mas todos dedicados, através de um código de ética, à coleta e à preservação de filmes, tanto como elementos do patrimônio cultural como documentos históricos. Um livro excelente e acessível foi escrito sobre o movimento de arquivos de filmes (embora a orelha do livro infelizmente use a frase “imagens tremeluzentes do passado”) que é o livro de Penelope Houston Guardiões do fotograma (Keepers of the frame), publicado pelo BFI em 1994. Entretanto, eu vou ressaltar um aspecto particularmente importante da cooperação entre arquivos, especificamente a repatriação de filmes perdidos ou danificados. O filme é, acima de tudo, um meio internacional, vastamente disseminado por todo o mundo (e era assim particularmente na era silenciosa, quando a língua não era sequer um problema). Ernest Lindgren gostava de apontar o absurdo, por exemplo, do NFA do Reino Unido se concentrar somente em filmes britânicos – como se a National Gallery se restringisse apenas às pinturas britânicas. Felizmente, as maiorias dos conservadores de filmes concordavam com essa visão e freqüentemente os filmes perdidos de um país reaparecerão em outros arquivos, talvez hibernando até finalmente serem catalogados. Parte dos objetivos da FIAF é encorajar e possibilitar o retorno desses filmes aos seus países de origem através de doação ou troca. Alguns arquivos surpreendentes se revelaram uma rica fonte de cópias perdidas na diáspora do cinema, entre os ele os do Uruguai, da Tchecoslováquia, da Holanda e da Austrália. Não é incomum até hoje um clássico britânico ou americano aparecer numa cinemateca exibindo legendas em tcheco.

Eu posso contar uma divertida anedota sobre esse assunto. Num recente festival de cinema em Londres, eu programei uma restauração do mais popular filme silencioso australiano, "O cara sentimental" (The sentimental bloke), um filme de 1919 que por muitos anos sobreviveu somente na forma de um fragmento. Em 1970, um jovem (agora venerável) conservador de filmes, Ray Edmondson, da Divisão de Filmes do Australian National Library, sediado em Canberra (hoje The National Film and Sound Archive of Australia), numa visita à George Eastman House nos EUA, parou em frente a uma dúzia de latas de filmes etiquetadas como "A loira sentimental" (The Sentimental Blonde). Bem, poderia ser um filme esquecido da Jean Harlow ou algo parecido, mas ele era desconfiado – e seu faro estava correto: o arquivista americano, sem familiaridade com a gíria “cara” (bloke), a transformou em “loira” (blonde). Estes eram os negativos de câmera originais em nitrato de “O cara sentimental”, remontado para o mercado americano em 1921. Negociações para o retorno desse material para Canberra logo ocorreram, e o resto faz parte da história da preservação cinematográfica australiana. “A loira sentimental” foi então adicionada à lista dos títulos mais idiotas de todos os tempos, junto com Win Slow Boy ou Charabanc for Dead Lovers [1].

Eu também exibi no mesmo Festival de filmes de Londres a restauração de um filme silencioso americano de 1922 perdido, "Além das rochas" (Beyond the Rocks) – o único filme estrelando Gloria Swanson e Rodolfo Valentino junto - encontrado em partes numa coleção privada de dois mil rolos recentemente doada ao Netherlands Film Museum. Sem piadas aqui, mas é um sinal que ainda há tesouros perdidos meio escondidos debaixo de nosso narizes, e filmes freqüentemente não se perderam, mas estão desaparecidos. Eu digo isso, mas há países onde a situação é muito mais desastrosa. Por exemplo, um outro filme restaurado exibido neste mesmo festival foi um longa chileno silencioso de 1925, El húsar de la muerte – a história do herói nacional chileno Manuel Rodríguez – um dos três únicos longas que sobreviveram dentre os dezesseis produzidos no Chile na década de 1920, vítimas sobretudo de regimes ditatoriais repressivos ou – mais comum – de fábricas de plástico que derretiam cópias de nitrato para fazer escovas de cabelo.

Quais são, então, os problemas e desafios que os arquivos audiovisuais enfrentam hoje? Para todas as intenções e objetivos, eles permanecem fundamentalmente os mesmos que há setenta anos – no máximo, aumentados pelo tempo e pelo novo dilema de como lidar com novas e volúveis tecnologias em um mundo bombardeado por imagens em movimento de todos os tipos. Coleções de filmes de arquivo ainda vivem de orçamentos assustadoramente baixos, ainda mais quando comparados com artes tradicionais como ópera, artes plásticas e música. Anthony Smith, antigo diretor do BFI conhecido pelo seu talento em fazer o falecido Sir John Paul Getty [milionário filantropo, 1932-2003] assinar cheques, costumava dizer que precisaria apenas do equivalente ao que a National Gallery gastava anualmente com a compra de uma pequena pintura Impressionista para fazer funcionar todo o NFA. Os arquivos ainda têm poucos direitos; eles ainda enfrentam a indiferença ou a equivocada resistência de setores da indústria de filmes comerciais; quase nenhum arquivo no mundo tem um sistema de depósito legal satisfatório – apesar de esforços do lobby contrário, o Reino Unido não tem nenhum tipo de depósito legal para filmes, embora tenha amplos direitos (e fundos) para registrar e preservar programas de televisão. A bomba-relógio do nitrato citada por Scorsese, como acontece no clímax dos filmes de James Bond, continua contando seus minutos finais em muitos arquivos, esperando por aquela súbita curva ascendente no gráfico de deterioração. Enquanto isso, seu substituto nos últimos cinqüenta anos – o filme de acetato – que era suposto para durar por quinhentos anos e salvar nossas coleções da maldição do nitrato, ele próprio ameaça se deteriorar arbitrária e inesperadamente nos cofres sob o acre cheiro de vinagre. Se o nitrato é câncer na rosa do cinema, o acetato se tornou a minhoca da maçã. O poliéster, quimicamente estável e aparentemente robusto, é o novo suporte – mas será que ele tem um futuro viável num cenário predominantemente digital? Nossos filmes coloridos estão inexoravelmente desbotando, sem chamar atenção, há quase meio século, apesar da intensa campanha dos anos 1980 de Martin Scorsese e seus companheiros cineastas americanos para que os fabricantes de películas reformulassem a química da emulsão colorida. David Hockney comentou memoravelmente na época que “apesar das cores de Veermer terem mais de 300 anos de idade, vai viver mais do que as cores da MGM”. Mais recentemente, nós experimentamos a virtual obsolescência do videocassete, e nesse caso enfrentamos o território incerto e desconhecido das novas tecnologias – um ambiente em constante fluxo, desenvolvimento e mudanças de formatos.

Entretanto, o que torna o cinema único entre as artes não é apenas o fato de sua imperfeita composição o tornar vulnerável, mas que seu conteúdo visual original – sua razão de ser – não pode ser repetido ou fielmente reproduzido depois de sua desintegração ou desaparecimento ser permitido. Grandes pinturas sobrevivem porque são altamente visíveis e intrinsecamente atraentes, e são logo consensual e publicamente protegidas (sem mencionar seu lucrativo valor turístico). A literatura – a palavra escrita – pode sobreviver sem detrimento em muitas formas diferentes, como rascunhado no verso de um envelope, por exemplo (embora se Rudyard Kipling ou T.S. Eliot tiverem escrito no envelope, você provavelmente irá querer guardar o envelope), ou mesmo – como na cena clímax de Farenheit 451 [dir. François Truffaut, 1966] – confiadas à memória humana. Uma imagem original de um filme, sem a garantia de preservação intencional, é para sempre ameaçada pelo esquecimento. “O filme”, disse Orson Welles, “tem uma personalidade, e essa personalidade é autodestrutiva. O trabalho do conservador é antecipar o que o filme pode fazer – e prevenir isso”.

Então, o que os conservadores de hoje e de amanhã devem fazer? Três coisas. Primeiro, eles não devem entrar em pânico. Eles não devem se curvar às pressões para comprometer suas coleções. Lembrem-se que quando os cofres estão lotados, “debaixo da cama” ainda é uma opção válida. Eles devem a todo custo manter e guardar os materiais originais em seu cuidado e fazer o máximo que puderem para conservar e preservá-los pelo tempo necessário, lembrando-se sempre que não se deve confiar em nenhum suporte cinematográfico. A indústria comercial será a primeira a lhe agradecer. Do mesmo modo, deve manter integralmente e disciplina especializada de catalogação de seus filmes.

Em segundo lugar, assim como eles devem perpetuar a experiência cinematográfica, devem também monitorar e abarcar as novas tecnologias digitais e todas as outras tecnologias que vierem; os arquivos que falharem em fazer isso e preservarem somente o passado irão se apagar e depois morrer. A tecnologia digital de imagens em movimento já revolucionou a realização e exibição cinematográfica. Ele já transformou o acesso às coleções dos arquivos e ajudou a restaurar filmes danificados aparentemente irrecuperáveis. No futuro, qualquer que seja a forma assumida, novas tecnologias vão salvar as coleções – até porque eventualmente elas terão salvá-las. Isso significa que os arquivos devem conspirar de perto com as indústrias de novas tecnologias, com os novos tipos de laboratórios de restauração, e com aqueles estúdios e detentores de direitos que estão finalmente levando a sério seus antigos catálogos e tem, de longe, muito mais recursos que qualquer arquivo poderia sonhar em ter para restaurar e dar nova vida aos seus filmes.

Em terceiro lugar e acima de tudo, os arquivos – na verdade, todos nós que amamos os filmes – devem protestar barulhenta e incessantemente para elevar o status cultural das imagens em movimento no Reino Unido. Mesmo hoje, o filme neste país não é automaticamente encarado como uma forma de arte legítima. Apesar dos protestos de uma pequena elite, que alega reconhecer sim o filme como arte, não há um reconhecimento público como, digamos, a pintura claramente possui. Isso é ainda mais verdadeiro em relação ao novíssimo meio televisivo, apesar das claras evidências a seu favor como, por exemplo, os inovadoras programas de Dennis Potter e Stephen Poliakoff, os incomparáveis documentários de Bronowski, Clark, Attenborough e Vas, ou a genialidade cômica de Hancock, Milligan, Morecambe, Cleese e Gervais.

Para conter esse inerente materialismo, nós devemos exibir nossos produtos, seja Napoleon, The Red Shoes, Josef Joye ou Mitchell and Kenyon, e exigir o crédito por salvá-los como tesouros nacionais autênticos. Esse é o único modo de despertar consciência pública e política e cultural e fazer com que o patrimônio cinematográfico seja adequadamente financiado. Sempre me pareceu deprimentemente significativo que o financiamento do governo para o filme nos Reino Unido foi ligado durante muitos anos a coisas como telecomunicações ou esportes, ao invés de encaminhado através, digamos, do Arts Council (não que eu esteja necessariamente advogando que deva – de fato, hoje o BFI recebe seu financiamento através do Film Council do Reino Unido). O filme sempre foi colocado firmemente no seu lugar; ou lhe foi dito para se sustentar sozinho através do lucro da indústria. Bem, na verdade, por que não, já que há de fato lucro? Se a indústria bilionária dos videogames, por exemplo, fosse taxada em meio centavo para jogo que vendesse, os problemas de nossos arquivos acabariam. Depois de tudo, eu tento salvar Veneza toda vez que eu como uma pizza no PizzaExpress... Esses esquemas não estão além de nossa imaginação ou esperteza [2].

Eu finalmente termino citando novamente Anthony Smith, de uma brilhantemente perspicaz palestra que ele deu sobre a preservação de filmes e televisão para o Royal Society of Arts em 25 de março de 1981:

“O arquivo não é um tributo ao passado, mas uma garantia para o que vem pela frente. Ele representa apenas a ponta do iceberg da memória social e, logo, é parte do futuro... Chega-se a um ponto em que o patrimônio de uma sociedade, seja qual for a tecnologia em que esteja baseado, torna-se responsabilidade comum de toda a sociedade”.

Mas eu dou a última palavra, tipicamente objetiva, a Ernest Lindgren, de sua palestra em 1958: “Os filmes somente podem ser preservados permanentemente pelo interesse nacional por uma organização nacional que tenha, ela mesma, garantia de permanência, que desfrute da confiança da indústria cinematográfica, e que seja provida com recursos para aplicar em seus filmes o cuidado técnico especializado que sua preservação exige. Aqui reside a justificativa para um arquivo de filmes nacional”.

Clyde Jeavons
(tradução de Rafael de Luna)

[1] - Ao invés de Winslow Boy (dir. Anthony Asquith, 1948) e Saraband for Dead Lovers (dir. Basil Dearden, 1948).

[2] - A rede de pizzarias inglesa PizzaExpress criou uma promoção em que de cada pizza Veneziana vendida, 25 centavos eram doados para o fundo “Veneza em Perigo”, criado após as inundações de 1966 na cidade italiana. Segundo o site da cadeia, mais de £1.7 milhão foram doados no Reino Unido nos últimos 25 anos.

2 comentários:

Zeh disse...

Olá Rafael!

Ótima iniciativa este seu blog, gostaria de lhe solicitar teu contato de e-mail.

Rafael de Luna disse...

Obrigado, Zeh. Meu e-mail é rafaeldeluna@hotmail.com