Sobre o tema da preservação audiovisual no Brasil, hoje, eu poderia abordar diversos temas, como a necessidade cada vez maior de uma discussão sobre a ética na restauração de filmes em conseqüência, sobretudo, de outro assunto importante, que é o advento das tecnologias digitais e seu emprego no campo da preservação. Eu poderia ainda traçar um panorama das instituições brasileiras que possuem acervos audiovisuais e discutir a situação delas no contexto atual.
Entretanto, prefiro me ater, neste momento, ao lugar de fala da posição na qual me sinto mais confortável: a de pesquisador de cinema. Essa questão do lugar de fala é fundamental, lembrando que fragilidade do campo da preservação se reflete na própria indefinição na (auto)definição dos profissionais que nela atuam: Eles são (nós somos) preservadores, preservacionistas, técnicos de preservação ou arquivistas audiovisuais? Eu me lembro que numa mesa cujo tema girava em torno de Paulo Emílio Salles Gomes no X Encontro da SOCINE, em 2006, meu colega Fausto Douglas Correa Jr questionou se devia chamar Paulo Emílio de “cinematequeiro” ou de “conservador de filmes”. Como a discussão estava enverendando pelo viés político – no mesma encontro, o professor Arthur Autran causou polêmica ao alinhar o pensamento de Paulo Emílio ao do ISEB – alguém brincou que não era apropriado alcunhar Paulo Emílio de conservador...
De qualquer modo, o ofício de pesquisador, voltado para o estudo da memória e construção da História, está indissociavelmente ligado ao trabalho de preservação, de conservação dos rastros e traços de um passado que subsidiam necessariamente a pesquisa.
Entretanto, essa relação se coloca frequentemente como uma oposição, uma falsa dicotomia que opõe teoria e prática, trabalho intelectual e manual, o pensador e o técnico, o universo acadêmico e o dos arquivos, entre, digamos a SOCINE e a ABPA.[1] Como um dos poucos que freqüenta regularmente esses dois fóruns e transita entre esses dois universos, eu sustento que essa relação falsamente colocada como oposição precisa ser de diálogo, de uma colaboração não somente importante, como necessária e benéfica.
Mais especificamente no campo de estudos sobre a história do cinema brasileiro, essa relação sempre se mostrou das mais produtivas. E isso pode ser traduzido na mera menção a alguns nomes, como o do já citado Paulo Emílio Salles Gomes, que não foi somente uma das principais forças por trás da criação da Cinemateca Brasileira (ex-Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo), como também um dos maiores pensadores do cinema brasileiro e o primeiro autor de uma tese de doutorado sobre cinema nacional no país. Em seu estudo sobre o cineasta mineiro Humberto Mauro e a revista Cinearte, o autor já evidenciava a complementaridade de saberes do âmbito acadêmico e do das cinematecas, refletido na reflexão sobre a materialidade do filme com um rigor que, infelizmente, poucos de seus seguidores mantiveram. Ao abordar o filme Thesouro Perdido, por exemplo, Paulo Emilio não deixava de ressaltar como as degradações do tempo necessariamente influenciavam sua análise da obra devido à alteração da velocidade original e ao acesso somente a cópias feitas a partir de contratipagens que não reproduziram as viragens originais, e em bitola 16mm, quando o filme fora feita em 35mm. Segundo suas palavras: “com os valores plásticos alterados pela redução de formato, não são poucas as dificuldades que esperam um observador interessado em proceder a um exame minucioso da fita”.[2]
Ainda assim, a tradição pauloemiliana teve continuidade em São Paulo através de nomes que manifestaram, como ele, uma atuação tanto acadêmica (USP) quanto cinematequeira (Cinemateca Brasileira), bastando citar, por exemplo, Jean-Claude Bernardet, Maria Rita Galvão, Ismail Xavier, Carlos Roberto de Souza ou José Inácio de Melo Souza.
No Rio de Janeiro – do qual posso falar com mais propriedade – acredito que a situação seguiu de forma um pouco diferente. A Cinemateca do MAM – principal arquivo de filmes do Rio, como a Cinemateca Brasileira em São Paulo – nasceu como parte do agitado “caldo cultural” da então capital cultural do país que abrangia, no caso do cinema, atividades ligadas a cineclubes, cursos livres, mostras e publicações. Depois de sua consolidação nos anos 1950, a principal liderança da Cinemateca a partir da década seguinte foi Cosme Alves Netto. Diferente de um intelectual e futuro acadêmico como Paulo Emílio, Cosme estava mais próximo da linha de um Henri Langlois, da Cinemateca Francesa, com seu papel de dinamizador ou agitador cultural, estabelecendo uma ligação intensa com os realizadores (a Cinemateca do MAM produziu, co-produziu e colaborou com diversos filmes) e com a atividade na crítica da imprensa diária. Assim, diferentemente da linhagem uspiana em São Paulo, os principais nomes ligados à Cinemateca do MAM transitaram entre o universo dos arquivos de filmes e a imprensa escrita, bastando citar o nome de críticos consagrados como Antônio Moniz Vianna, Alex Viany, José Carlos Avellar ou Ronald Monteiro.
Para acelerar um pouco esse relato, devo apontar que, nos anos 1980, os arquivos carioca e paulista seguiram caminhos diferentes. Em 1984 a Cinemateca Brasileira, privada, foi incorporada ao governo, enquanto a Cinemateca do MAM permaneceu ligada a um museu privado cuja proeminência decrescia. Foi justamente nesse período que a decadência da Cinemateca do MAM se acentuou, acompanhando tanto o esvaziamento cultural e econômico do Rio de Janeiro, quanto o surgimento de uma nova cinefilia ligada à cineclubistas tornados exibidores profissionais – o Cineclube Estação Botafogo que deu origem ao Grupo Estação e ao Circuito Arteplex – e a novos centros culturais como o CCBB.
Por outro lado, enquanto em São Paulo a ligação entre a USP e a Cinemateca Brasileira se enfraqueceria, seria somente a partir dos anos 1990 que se fortaleceria a relação entre a Cinemateca do MAM e a Universidade Federal Fluminense (UFF), na vizinha Niterói, através especialmente de ex-alunos e professores como José Carlos Monteiro, João Luiz Vieira e Hernani Heffner. Esses dois últimos são nomes fundamentais nessa história recente.
A partir dos anos 2000, especialmente em face da crise que se avizinhava da Cinemateca do MAM, João Luiz Vieira – professor da UFF e ex-curador da Cinemateca nos anos 1990 – começou a organizar visitas periódicas de seus novos alunos aos arquivos de filmes do MAM. Desde 1996 o responsável técnico pelo setor era o pesquisador tornado preservador Hernani Heffner, que passou também a dar um curso optativo sobre preservação audiovisual na graduação da universidade, despertando o interesse de vários estudantes de cinema sobre o tema. [3]
Sobre essa história – relatada em detalhes no trabalho de Ines Aisengart[4] – interessa apontar que a aproximação da UFF com a Cinemateca do MAM se deu às vésperas da crise que quase significou o fim da própria Cinemateca e que teve como mais valentes defensores não os cineastas das antigas gerações cultivadas à sombra do já falecido Cosme, mas sim os jovens universitários que tinham recém descoberto sua existência e valor. Essa crise do arquivo carioca coincidiu, por outro lado, com o acelerado desenvolvimento estrutural e institucional da agora federal Cinemateca Brasileira, favorecendo a afirmação de uma prática centralizadora na política de preservação audiovisual no país que, por sua vez, já era defendida desde os anos 1980.[5]
Foi nesse momento que eu, recém-formado pela UFF, me aproximei de forma mais intensa da Cinemateca, sendo contratado justamente para identificar rolos de filmes a serem despachados em meio ao que foi chamado de despejo da Cinemateca pelo Museu de Arte Moderna. Ou seja, entrei na Cinemateca quando ela estava no fundo do poço. Curiosamente, sem experiência prática em preservação, minha contratação se deveu justamente pelo meu conhecimento sobre o passado do cinema nacional que auxiliaria no reconhecimento dos filmes na mesa enroladeira, já que eu havia sido monitor do então professor da UFF Hernani Heffner na disciplina “História do Cinema Brasileiro”.
Trabalhei durante seis anos ininterruptos na Cinemateca do MAM no que considero ter sido uma verdadeira pós-graduação. Paralelamente, fiz também mestrado e doutorado na UFF (outros seis anos...), e essa dupla vivência pessoal é que me faz ter certeza da complementaridade de ambas as formações. A Universidade é tão essencial para a Cinemateca, quanto a Cinemateca é essencial para a Universidade. Uma permite a reflexão, a produção bibliográfica e a formação de mão-de-obra. A outra fornece as obras, os materiais, o ambiente a ser explorado e aproveitado pelos professores e alunos. Uma talvez favoreça a captação de verbas e bolsas de estudo, enquanto a outra oferece um amplo universo de obras e assuntos a serem explorados pela nossa geralmente tão repetitiva e monótona academia. Assim como a preservação e o acesso, que dependem e se justificam um pelo outro, cinematecas e arquivos são duas faces da mesma moeda.
No recente painel organizado na Cinemateca do MAM uma discussão que teve grande desdobramento foi sobre a dificuldade de continuidade e estabilidade profissional no campo da preservação audiovisual no Brasil. Lila Foster levantou um questionamento importante: “Como é possível atuar em preservação não estando ligado institucionalmente a uma Cinemateca?” Posso aproveitar a deixa e perguntar também: “Como é possível atuar em pesquisa não estando ligado institucionalmente a uma Universidade?”[6]
Acredito, porém, que um cenário ideal a ser perseguido é um panorama no qual seja possível trabalhar com pesquisa numa Cinemateca e que seja possível trabalhar com preservação na Universidade. Atualmente, o que ocorre são mestrandos, doutorandos e professores doutores caírem de pára-quedas nas Cinematecas atrás de filmes e temas para suas teses e pesquisas – sendo vistos como parasitas ou transtornos pelos preservadores, que, por sua vez, são encarados como técnicos e burocratas que impedem ou dificultam o trabalho de reflexão –, ou os funcionários dos arquivos serem obrigados a ingressarem em programas de pós-graduação para realizarem pesquisas (e ganharem bolsas de estudo) que poderiam desenvolver nas suas próprias instituições.
No Rio de Janeiro, tivemos uma experiência interessante de pesquisa e reflexão ligada à Cinemateca do MAM e sem um obrigatório vínculo direto com a academia. Através do cineclube Tela Brasilis – posteriormente transformado na Associação Cultural Tela Brasilis – organizamos em parceria com a Cinemateca, em 2005 e 2006, um curso de História do Cinema Brasileiro, no Cinema Odeon. Organizado em dois módulos com seis meses de duração cada um e ministrado por Hernani Heffner com projeção de cópias em película de diferentes arquivos, o curso foi um sucesso absoluto, com mais de quinhentos alunos inscritos numa iniciativa certamente mais interessante que 99% dos cursos semelhantes organizados nos departamentos de cinema das universidades brasileiras atualmente. [7]
De qualquer modo, a relação entre Cinematecas e Universidades também se presta para a defesa da necessidade de uma política descentralizadora para a preservação audiovisual no Brasil. Hoje certamente ninguém mais argumenta a favor da idéia de que apenas uma Universidade, por melhor que seja, é suficiente para todo o país. Pelo contrário, cada vez mais se defende a regionalização e a criação de novas universidades federais fora das regiões tradicionalmente mais desenvolvidas economicamente do país. Do mesmo modo, é necessária a expansão e regionalização dos arquivos de filmes e das atividades de preservação talvez associadas – por que não? – às próprias universidades. Afinal, não bastam os cursos de cinema da UFF, no Rio, ou da USP, em São Paulo. São precisos novos cursos, no Sul, Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nos Estados Unidos, as grandes universidades têm acervos audiovisuais próprios ou algum convênio com arquivos de filmes da mesma localidade. Dependendo do tema, o pesquisador irá à Universidade de Chicago, de Los Angeles ou de Nova York. No Brasil também não basta ter só uma Cinemateca Brasileira e não cabe querer citar o exemplo da Cinemateca Francesa ou da Filmoteca Española – na França e Espanha também há várias e importantes cinematecas regionais –, devendo-se olhar também para os Estados Unidos, onde os acervos estão espalhados pela UCLA, pelo MoMA, pela Library of Congress e muitas outras instituições, todas compartilhando tarefas e responsabilidades.
Novas reflexões sobre o cinema devem implicar também em novas posturas no campo da preservação audiovisual. A valorização da recepção para a experiência cinematográfica, o entendimento do cinema como prática ou evento, a ampliação do interesse para além do longa-metragem de ficção (atentando, por exemplo, para os negligenciados filmes familiares, amadores, institucionais, publicitários etc.) precisam resultar em mudanças de atitudes na cadeia de preservação (prospecção, conservação, classificação e acesso). Por fim, o advento das tecnologias digitais que vem maximizando, acelerando e democratizando a produção e circulação de conteúdos audiovisuais também demanda, na mesma medida, uma prática de preservação mais ampla, descentralizada, democrática, participativa e ágil. Embora destinados a guardar a memória do passado, os arquivos audiovisuais tem que se espelhar no presente para definir um novo papel no futuro.
[1] Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine) e Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA)
[2] GOMES, Paulo Emílio. Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 146.
[4] MENEZES, Ines Aisengart Menezes. Memorial crítico na área de preservação audiovisual, Monografia de conclusão de curso – Departamento de cinema e vídeo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
[5] Para isso basta ler nas entrelinhas do livro Cinemateca Imaginária (Embrafilme, 1981), organizado por Carlos Augusto Calil, então diretor da Cinemateca Brasileira (cabe aventar, aqui, a abrangência da influência da experiência de Calil na Cinemateca da Alemanha Oriental...)
[6] I Painel de Preservação Audiovisual: Formação e Experiências Internacionais, Cinemateca do MAM, 21 set. 2010.
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