domingo, 27 de fevereiro de 2011

Exibidores ambulantes na Índia

Preservar o cinema é mais do que preservar filmes, apenas. O contexto de exibição é tão importante quanto a obra, sobretudo quando se percebe o quanto a recepção é determinante para a compreensão do texto e como o cinema é tanto uma arte ou indústria quanto uma prática ou evento.
Ver filmes em DVD não é melhor ou pior do que numa sala de cinema, mas é indiscutivelmente diferente. O problema é a extinção total de modos de exibição de inegável importância histórica, social e cultural.
Nesse sentido, é interessante ler essa matéria sobre os cinemas ambulantes na Índia.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Cinédia e Alice Gonzaga

Em 2010 foram comemorados os 80 anos de fundação da Cinédia, estúdio criado por Adhemar Gonzaga e posteriormente dirigido por sua filha, Alice Gonzaga. A preservação da memória da Cinédia - e do cinema brasileiro, de modo geral - encontrou ainda em Alice Gonzaga uma batalhadora incansável. O texto abaixo foi escrito para o catálogo do 5. CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto, realizado em junho de 2010, que homenageou a Cinédia e Alice Gonzaga.


Dona Alice, Sra. Alice ou simplesmente Alice

Conheci pessoalmente Alice Gonzaga Assaf, popularmente chamada no meio cinematográfico por Dona Alice, através de Hernani Heffner, meu ex-professor do curso de cinema da UFF e com quem havia passado a trabalhar na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Antes disso, porém, já conhecia por meio dos comentários de outras tantas pessoas sua fama de “durona”, conduzindo com “mão de ferro” o famoso acervo da Cinédia, naquela época localizado na Estrada do Soca, em Jacarepaguá. Nos estúdios construídos a partir de 1956 (depois da venda das instalações originais de São Cristovão) por seu pai, Adhemar Gonzaga – um nome que qualquer estudante de cinema conhecia por causa da revista Cinearte ou por sua relação com Humberto Mauro estudada por Paulo Emílio Salles Gomes –, estavam guardados centenas de rolos de filmes e um acervo documental por vezes descrito como um tesouro fantástico escondido num local distante. Eu que vivia então mergulhado no caos do extraordinário acervo de recortes de jornais, livros, revistas, catálogos, programas, fotos e cartazes da Cinemateca, me surpreendia com os comentários do Hernani descrevendo as preciosidades que descansavam nas gavetas da Cinédia e como Dona Alice cuidava de tudo aquilo sozinha, atualizando diariamente os já entupidos envelopes e pastas.

Aliás, o mesmo “temor” que Dona Alice ainda despertava nos anos 2000, ela já o provocava no início dos anos 1980, quando Hernani a conhecera. Ele estava então envolvido em sua fantástica pesquisa sobre o fotógrafo Edgar Brasil, em parceria com Lécio Augusto Ramos e financiada pela Embrafilme através de seu programa Cinetema[1], e em certo ponto do trabalho se viu diante da necessidade inevitável de consultar o acervo da Cinédia. Graças ao apoio de José Carlos Avellar, que conseguiu verba para custear as taxas de consulta ao material, Hernani teve acesso à mais valiosa fonte documental sobre o diretor de fotografia de Limite, Bonequinha de Seda, Moleque Tião e de tantos outros clássicos do cinema brasileiro. Nesse primeiro contato, sempre cercado de desconfiança por conta dos aventureiros e larápios que frequentemente apareciam, Dona Alice se surpreendeu com aquele rapaz alto, magro e de cabelos compridos, que não ia ao banheiro, não bebia água e não saía nem por um minuto de perto das pastas. Hernani depois contou que tinha medo de abandonar mesmo por um instante o acervo e a “temível” Dona Alice não mais permitir que ele voltasse aos documentos. Com o tempo, essa relação de temor e desconfiança mútuos deu lugar a uma relação de carinho e respeito. Como Dona Alice escreveu em 1988, Hernani e Lécio eram dois “jovens pesquisadores que conhecem verdadeiramente o Cinema Brasileiro”.[2] Ambos haviam se tornado funcionários fixos da Cinédia em 1986 e Dona Alice se orgulhava por sua empresa cinematográfica ser a única do país a contar com dois pesquisadores em seu quadro de profissionais. Os dois viriam a auxilá-la na pesquisa para outros livros, como seu ainda hoje imprescindível estudo sobre a história das salas de cinema do Rio de Janeiro.[3]

Mas tudo mudaria em 1996, quando a enchente que tomou conta da cidade do Rio de Janeiro em decorrência das fortes chuvas de verão (cujo remake assistimos esse ano) provocou danos graves ao acervo fílmico da Cinédia. Como numa piada trágica, aqueles filmes que sobreviveram ao fogo que destruíram as películas de tantos outros estúdios, dessa vez sofriam com os males resultantes do acúmulo de água e lama. Mesmo os rolos que não foram atingidos diretamente também entraram em processo acentuado de deterioração em decorrência da umidade elevada a qual ficaram expostos. Diante disso, Hernani se viu mergulhado no complexo universo da preservação cinematográfica. De pesquisador de cinema, foi obrigado a se transformar em conservador de filmes, opção que se consolidou três anos depois quando veio a substituir seu mentor, Francisco Moreira Filho, o “Chico”, no cargo de conservador da Cinemateca do MAM, onde até então excercia o posto de curador do acervo documental.

As atividades desenvolvidas pela Cinédia desde seu início sempre foram múltiplas, fossem no campo da produção, de serviços ou de memória[4], e a empresa fundada por Adhemar Gonzaga foi a única a relançar ou exibir sistematicamente filmes de seu acervo ao longo de toda a sua história. Já em 1941, o pioneiro Clube de Fãs Cinematográficos do Rio de Janeiro exibia Lábios sem beijos, feito dez anos antes, na sessão inaugural de seu Retrospecto do Cinema Brasileiro. Na década de 1950, auge dos filmes carnavalescos da Atlântida, a Cinédia relançava comercialmente seu famoso Alô, Alô, Carnaval, de 1936, acompanhando as chanchadas contemporâneas de Oscarito e Grande Otelo. A própria realização da Primeira Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, em 1952, ocorreu em decorrência de uma ação da Cinédia como Caio Scheiby reconheceu: “A idéia de realização de uma Retrospectiva do Cinema Brasileiro surgiu quando Adhemar Gonzaga, compreendendo a necessidade de conservação das velhas películas nacionais, resolveu numa atitude simpática, doar à Filmoteca do Museu de Arte Moderna [futura Cinemateca Brasileira] uma série de filmes historicamente fundamentais para documentar o passado do nosso cinema.”[5] Esse evento iria promover a “exumação” de um filme como Ganga Bruta, que, dois anos depois, na segunda Retrospectiva do Cinema Brasileiro, realizada durante o I Festival Internacional de Cinema no Brasil, em São Paulo, consolidaria Humberto Mauro como “a figura mais importante […] de todo o cinema mudo brasileiro e do seu cinema sonoro primitivo”[6], redescobrindo o cineasta de Cataguazes para a geração do Cinema Novo. Já nos anos 1970, durante a era Embrafilme, a Cinédia promoveu o lançamento em cópias novas dos já àquela altura “clássicos” Bonequinha de Seda e O Ébrio, com direito a novos cartazes assinados pelo célebre Benício.

Ao assumir a condução da Cinédia com a doença do velho Gonzaga – que veio a falecer em 1978 –, Dona Alice enfrentou as normas tradicionais da sociedade e da família que não viam com bons olhos uma mulher formada em colégio católico, que já era mãe de família e carregava respeitosamente o sobrenome do marido, se envolver com “cinema” e menos ainda com “filmes velhos” e “chanchadas”. A Sra. Alice – como é chamada quando se telefona para sua casa – passou a ser tratada no meio mais informal do cinema brasileiro como Dona Alice, dando continuidade ao importante trabalho de seu pai que permitia às novas gerações o contato com o passado do cinema brasileiro através da preservação da memória audiovisual do nosso país. Além de se dedicar vigorosamente à pesquisa e contextualização histórica do elenco, equipe técnica, e das condições de realização, distribuição e exibição das produções da Cinédia, Dona Alice sempre acompanhou todas as etapas dos trabalhos de recuperação e restauração dos filmes. Entretanto, como ela própria admite, por falta de uma boa “assessoria” e pelo excesso de maus conselhos, cometeu alguns erros durante esse processo que eram comuns na época, como a destruição dos materiais originais em nitrato após sua duplicação para acetato. Em 18 de janeiro de 1986, como forma de protesto contra o descaso com a memória do cinema brasileiro, a Cinédia promoveu um evento quando ia se “queimar todos os negativos de clássicos do cinema brasileiro”. O convite dizia “Venha queimar o filme!” Demonstrando sabedoria, hoje Dona Alice é a primeira a reconhecer e lamentar o erro que, na verdade, foi cometido em todo o mundo e por incontáveis pessoas e instituições.

Numa trágica ironia, a Cinédia que havia conseguido o feito raro de duplicar todas as matrizes de seu acervo em suporte de nitrato para acetato ainda nos anos 1980, se viu praticamente de volta à estaca zero diante dos danos resultantes do inundamento dos arquivos em 1996. Mas dessa vez Dona Alice estava bem assessorada.

Como disse anteriormente, a conheci através de meu trabalho na Cinemateca, onde eu frequentemente atendia Dona Alice ao telefone pedindo uma informação ou conselho ao Hernani, geralmente com urgência e sofreguidão. Por outro lado, não eram raras as vezes em que era Dona Alice quem saía em socorro do Hernani e da própria Cinemateca, sobretudo durante o trágico período entre 2001 e 2003 quando a direção do Museu decidiu “despejar” o arquivo de filmes do MAM. Muitos tesouros do cinema brasileiro não se perderam durante a sanha destruidora da diretora Maria Regina do Nascimento Britto e seu cúmplices (ativos ou passivos) graças à Dona Alice que, muitas vezes, encarava até o papel de motorista! Em outras ocasiões e circunstâncias, Dona Alice e Hernani – como uma dupla de super-heróis da memória do cinema brasileiro – saíam juntos em missões de resgate do acervo de algum pioneiro esquecido num apartamento qualquer em Copacabana ou em alguma casa de praia em Cabo Frio.

Mas também havia os próprios filmes da Cinédia para restaurar e preservar, num processo lento e difícil, levado a cabo com perseverança ao longo dos últimos anos por Dona Alice e Hernani através do “Instituto para Preservação da Memória do Cinema Brasileiro”, criado em 1998. Apesar dos recursos sempre escassos para o enorme volume de trabalho, os frutos foram surgindo pouco a pouco: a estréia da restauração de Alô, Alô, Carnaval! no Cine Odeon BR; o resgate do som original de Mulher graças à descoberta dos discos do vitaphone; as novas gerações redescobrindo a comédia Vinte e quatro horas de sonho, um dos filmes preferidos do próprio Hernani; o lançamento de O Ébrio em DVD num momento em que ainda haviam poucos filmes brasileiros antigos nesse formato; a restauração digital de Bonequinha de Seda esse ano; o resgate ainda em curso das desconhecidas co-produções da Cinédia com Moacyr Fenelon...

Não sei qual foi a primeira vez que fui apresentado a Dona Alice, mas lembro especialmente quando o cineclube Tela Brasilis – então organizado por mim, Gustavo Bragança, Eduardo Ades e Rodrigo Bouillet – programou para sua sessão mensal, em junho de 2007, na Cinemateca do MAM, o filme Samba em Berlim, acompanhado do único fragmento existente de Abacaxi Azul. O que havia disponível então para projeção da comédia musical da Cinédia era um telecine de uma cópia com os rolos completamente fora de ordem e eu e Luis Alberto Rocha Melo tivemos que “remontar” o filme na ilha de edição emprestada por André Sampaio. Nós brincávamos que estávamos nos sentindo na pele do próprio Lulu de Barros, montado o filme às pressas, poucas horas antes de sua exibição. A sessão foi maravilhosa, numa dupla homenagem à Dona Alice e à atriz Dercy Gonçalves, que havia completado cem anos de idade e que tinha tido seu primeiro papel no cinema justamente em Samba em Berlim. Depois do filme, fomos todos tomar um chope no Beduíno e a “temível” Alice Gonzaga parecia estar contente – embora um pouco deslocada – por se ver em meio a jovens quase da idade de seus netos que discutiam avidamente os filmes produzidos por seu pai que ela há tantos anos lutava para manter vivos, na memória e no celulóide.

A partir de então, nosso convívio se tornou cada vez mais comum e passei a rever Dona Alice frequentemente. Acompanhei de perto a angústia de sua mudança de Jacarepaguá – deixando para trás os estúdios construídos pelo seu pai, cercado pelas árvores que ele próprio plantara –, até a sua satisfação na nova sede em Santa Tereza. Desde os anos 1970 a Cinédia sobrevivia primordialmente do aluguel de sua infraestrutura de estúdios para produções de cinema, publicidade e sobretudo televisão, mantendo desde 1975 uma parceria com a Rede Globo. Em 1989 passara a atuar também na locação de equipamentos e Dona Alice alimentava planos de fazer a Cinédia voltar a produzir longas-metragens. Porém, a partir de 1995, com a perda de seu maior cliente por conta da inauguração da Central Globo de Produção, mais conhecida como Projac (abreviatura de Projeto Jacarepaguá), a saúde financeira da mais antiga empresa cinematográfica em funcionamento no Brasil começou a se agravar, paralelamente ao aumento dos gastos e preocupações com o acervo fílmico e documental. A venda do terreno em Jacarepaguá foi definitivamente bem-vinda também nesse sentido.

Presenciei todo o trabalho para realojar as dezenas de arquivos, estantes e equipamentos nos cômodos do lindo casarão de dois andares na Rua Santa Cristina, que facilitou a ida e vinda de Dona Alice de seu apartamento em Copacabana para sua “segunda casa”. Entre 2008 e 2009 passei a organizar visitas da turma de “Preservação, Memória e Políticas de Acervos Audiovisuais” do curso de graduação em cinema da UFF, da qual eu era professor, à nova sede da Cinédia e Dona Alice foi se acostumando a se ver diante de uma pequena multidão de jovens fascinados em descobrir os tesouros cada vez menos escondidos da Cinédia e a ouvir suas muitas histórias, sempre pontuadas por inesperados e divertidos comentários de bastidores.

De Dona Alice passei a conhecer melhor Alice, como ela própria se descreve. Ao longo dos anos em que fui descobrindo suas diferentes faces, encontrei uma pessoa que, apesar dos inevitáveis dissabores da vida, parece ter rejuvenescido desde a primeira vez que a vi – do mesmo modo que os filmes da Cinédia.

Rafael de Luna Freire



[1] HEFFNER, Hernani; RAMOS, Lécio Augusto. Edgar Brasil, um ensaio biográfico: Aspectos da eveolução técnica e econômica do cinema brasileiro. Inédito.

[2] GONZAGA, Alice; AQUINO, Carlos. Gonzaga por ele mesmo: memórias e escritos de um pioneiro do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1989.

[3] GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Record, 1996.

[4] HEFFNER, Hernani. Um empreendimento arriscado. In: catálogo da mostra Cinédia 75 anos. São Paulo, Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.

[5] Catálogo da I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, São Paulo, Filmoteca do Museu de Arte Moderna, nov-dez., 1952.

[6] Catálogo da Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, São Paulo, fev. 1954.