sábado, 16 de maio de 2015

Nitrate Picture Show


George Eastman House
Este post é uma colaboração da conservadora Ines Aisengart Menezes, que escreveu para o blog um relato sobre o Nitrate Picture Show 2015, realizado de 1 a 3 de maio de 2015 na George Eastman House, em que ela esteve presente. As fotos também são da autora.
Primeiramente, alguns links do site do evento que era uma celebração do cinema da era das películas no suporte de nitrato de celulose, fabricadas até 1950:


A programação foi divulgada somente no primeiro dia do evento. Segundo o curador Paolo Cherchi Usai, não foi uma jogada de marketing, mas sim uma forma de engajar as pessoas na experiência do nitrato, não importando os títulos. Para mim soou também como uma solução para a produção do festival, considerando que a investigação/preparação de cópias é um dos fatores determinantes da programação. A curadoria foi focada em filmes narrativos de Hollywood do final da década de 30 e 40. Segundo Usai e Jurij Meden (Curator of Film Exhibitions, que escreveu esse belo texto), foi uma forma de não estigmatizar o festival (e filmes de nitrato) com o cinema mudo, acompanhados por piano, etc.
Usai constantemente reforçou que as cópias que foram projetadas ainda estão acessíveis hoje por terem sido preservadas ao longo dos anos (George Eastman House, MoMA, UCLA, Academy Film Archive, Library of Congress, British Film Institute); e sobretudo que a exibição é parte crucial da preservação; que deveria ser uma regra o acesso à experiência original, e não uma exceção. As cópias estavam em ótimo estado (riscos leves, um curta com esmaecimento da cor, e dois longos visivelmente encolhidos, causando variação foco constante); sendo que algumas destas eram do mesmo ano de lançamento do filme, e em outros casos, eram relançamentos ou cópias feitas em anos seguintes. Pela manhã antes do primeiro filme, uma mensagem gravada indicava as medidas de segurança enquanto alunos da Selznick School of Film Preservation indicavam as saídas de emergência mais próximas (em estilo usado por tripulante de cabine). Durante a apresentação de cada filme, os projecionistas eram nomeados e aplaudidos; e eram sempre três projecionistas por sessão: um controlando o projetor, outro assistindo ao filme e alertando sobre a qualidade da imagem, e o terceiro supervisionando os outros dois. Me chamou a atenção que dois dos projecionistas são jovens. A projeção foi feita através de dois projetores Century, que eram limpos após cada rolo. Ao final do festival foi feita uma visita guiada à cabine de projeção: 5 projetores, sendo os outros dois para acetato/poliéster, e um 2K.
O festival de 2016 já tem data marcada: 29/4 a 2/5.

Entre as apresentações de livros, partilho algumas notas sobre:
This Film is Dangerous: A Celebration of Nitrate Film, ed. Roger Smither, Associate editor Catherine A Surowiec. FIAF (Fédération Internationale des Archives du Film), London: United Kingdom, 2002. Index.
A ideia do livro surgiu no Congresso da FIAF de 1992 em Montevideo. Smithers apresentou a pesquisa do livro, parcerias, e algumas curiosidades sobre o livro e o nitrato. Falou das tragédias, como indicadas pelo Le Petit Journal de 16 Maio de 1987 sobre um incêndio de cinema, com morte de mulheres e crianças; os grandes incêndios em arquivos, como 1913 em Tanhouse, 1957 na Cinemateca Brasileira, e 1982 no Mexico. Foi comentado como a indústria do cinema demonizou o nitrato por décadas, gerando a destruição de negativos/cópias após as cópias em acetato. Foram mencionados as iniciativas Nitrate Project 2000; Last Film Search na Austrália; Congresso da FIAF de 2000 em Londres: “The Last Nitrate Picture Show / The Futurology of Film Archiving” (o livro seria lançado neste ano, mas acabou atrasando e incorporou debates ocorridos no Congresso). Smither destacou a essencial colaboração de arquivos e pesquisadores/preservadores, como Ray Edmondson. Contou alguns causos em torno do nitrato, como operadores de camera e projecionistas fumantes, sala de despacho perigosamente caóticas, e colecionadores com posse de supostos filmes perdidos. Comentou sobre a cultura do nitrato em outros filmes, como Sabotagem, Cinema Paradiso, Bastardos Inglorios; comic: Captain Nitrate, por Borislav Stanojevic. O título do livro é retirado de um filme feito pela Marinha Inglesa sobre nitrato em 1948 (exibido no festival em acetato), demonstrando como o fogo do nitrato é perigoso e quais medidas de segurança devem ser tomadas (com um tom cômico involuntário). O título foi considerado alarmista por alguns colaboradores do livro, mas não pela FIAF.
Foi levantada a questão de que algumas pessoas não consideram o nitrato extraordinário, e que seria então nostalgia pelos tempos idos; ou que a imagem radiante viria da quantidade de prata na emulsão (e portanto não toda cópia em nitrato seria esplendorosa); ou a imagem seria os projetores a carbono; ou ainda a fumaça dos fumantes na plateia que conferia uma certa ‘atmosfera’ às projeções.
Participantes da platéia acabaram dividindo notícias recentes descobertas de nitrato em suas cidades, como um filme de 1905 (dado como perdido) pela George Eastman encontrado em bom estado no meio de vários materiais em nitrato deteriorados, que será preservado/restaurado pelos Selznick alunos e apresentado neste ano em Pordenone; assim como descobertas recentes na Library of Congress; Georgia Film Museum; National Film and Sound Archive.
Foi comentado a existência de película 16mm em nitrato, resultado da falta de película no mercado durante a II Guerra: 35mm cortado ao meio.

Film Conservation Revisited - Burning Passions: A Roundtable Discussion
Paolo Cherchi Usai, George Eastman House (mediador) / Kevin Bronlow, Photoplay Productions / Tone Føreland, Digital Library Development - National Library of Norway / Meg Labrum, National Film and Sound Archive of Australia / Katie Trainor, Department of Film - MoMA
Usai levantou a questão do destino das cópias de nitrato em tempos de projeção digital, e o grande desafio de manter acesso aos originais em filme (em qualquer suporte). Comentou sobre o desvanecimento do conhecimento sobre o projeção de filme, e reforçou da necessidade de treinamento de projecionistas em película e digital, e da necessidade de manutenção de projetores (como manter um piano afinado), e da preservação de equipamentos de projeção. Falou ainda do enorme desafio (subestimado) da preservação e restauração de sistemas e equipamentos sonoros. Comentou que cópias em 16mm tem sido mais danificadas em empréstimos, e da importância da película de teste em loop (já rara no mercado).
Labrum compartilhou a experiência da Last Film Search na Australia na decada de 80: uma caravana coletando nitrato por todo o país. O projeto foi planejado para alguns poucos anos, mas está ativo até hoje, e coleta filmes de família, cinejornais, filmes narrativos. Comentou que a NFSA tem recolhido projetores, e falou da importância de ter peças extras, e alguém da platéia falou de fazer peças com impressoras 3D.
Trainor falou do comprometimento de cinemas do circuito de arthouse com a manutenção da exibição em 35mm/16mm; de workshops feitos pela AMIA sobre manuseio de materiais de arquivo, que tem atraído muitos jovens, e que gerou otimismo para ela. Explicou o procedimento para aluguel de cópias do MoMA: registro e verificação por algum afiliado à FIAF mais próximo, e que cópias únicas não saem do museu. E ecoou as palavras de Usai sobre a importância da exibição, e lembrou que o circuito de cinema amador projeta material reversível com muito esmero. Ela mencionou que a cabine de projeção adaptada ao nitrato do MoMA não foi mantida na renovação no início dos anos 2000.
Bronlow compartilhou muitas estórias antes de campanhas para salvar nitrato.
 
Minhas breves impressões: 
Após a exibição de A Star is Born na noite anterior ao início do festival, senti que não havia nada de especial sobre a projeção: a cópia estava linda, mas não extraordinária. No dia seguinte, durante a Casablanca, tive a sensação de que eu estava assistindo a um filme radicalmente diferente. Foi bom começar com um filme que eu assisti muitas vezes antes (ambo em digital e 35mm), para que eu pudesse perceber melhor sobre a cópia de nitrato.
A experiência do nitrato foi mais impactante em alguns filmes/cópias, por vezes a imagem em p&b me parecia mais brilhante, com riqueza de detalhes nos pretos e nos brancos, e as vezes o Technicolor era de um colorido assustadoramente bonito. Eu oscilava entre a imersão no filme e observar a cópia, luminância, etc. Foi curioso ver diferentes tipos de marcas de troca de rolos, ruídos/interferência na imagem (fungo? não saberia dizer), e variações na banda sonora.
Eu tinha a forte expectativa de assistir a filmes de diversas partes do mundo e filmes não-sonoros tinted, toned, stencilled, que foram prometidos para o próximo ano. Com exceção de Les Maudits de René Clément, e de dois curtas publicitários de animação da Noruega, os demais filmes eram todos de Hollywood e Inglaterra (uma pena, esperava filmes asiáticos!). Para mim, o ponto alto do festival foi a exibição de Portrait of Jennie (1948), num lindo p&b, com uma textura de tela em algumas das cenas,e que no rolo final a imagem expandiu de 1:1.37 para "cycloramic screen", com uma cena em tinted verde, toned sepia e Technicolor.
Esperava mais discussões sobre a cultura cinematográfica em tempos de digital, o que reforçou a sensação de estar em um 'universo paralelo'. 
Ao chegar na George Eastman House me senti em um universo paralelo, de culto ao nitrato e a cultura do cinema, como um clube privado de velhos conhecidos onde eu era penetra. Como foi minha primeira vez nos EUA, tudo era novidade para mim, e de certa forma, tudo me pareceu grande ou extremo. Rochester é uma cidade linda, com a ajuda da primavera, que tinha acabado de chegar, mas com um centro esvaziado e triste (após fábricas fechadas, como Kodak). A cidade no inverno com dias curtos e frios não deve ser nada acolhedora...

George Eastman House tem um museu sobre a história de Eastman e da Kodak, da qual destaco uma sala interativa de pré-cinema e fotografia, com uma camara obscura, mutoscope (original, que podia ser manipulado), images estereoscópicas, zoetrope, etc.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Jurandyr Noronha

O cinegrafista, diretor, conservador e pesquisador Jurandyr Noronha (1916-2015) nos deixou pouco antes de completar um século de vida. Foi um pioneiro da preservação audiovisual, tanto na prática, quanto na teoria (ver seu artigo de 1948 sobre o assunto).
Jurandyr foi homenageado pela 8. Mostra de Cinema de Ouro Preto, quando a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) o elegeu presidente de honra. Para essa homenagem, eu e Hernani Heffner fizemos uma entrevista com ele que foi publicada no catálogo da CineOP.
Em sua partida, reproduzo e disponibilizo aqui essa entrevista:



Entrevista com Jurandyr Passos Noronha, realizada em sua residência, no Flamengo, Rio de Janeiro, no dia 30 de abril de 2013, por Hernani Heffner e Rafael de Luna Freire. Revisão, edição e notas explicativas por Rafael de Luna Freire.

P: Jurandyr, podemos começar essa entrevista pela lembrança mais antiga que você ainda tenha de um filme que você assistiu, da sala de cinema que você entrou pela primeira vez...
R: Bom, a sala de cinema que eu entrei pela primeira vez na minha vida foi em Três Rios, município do Estado do Rio. Era, me recordo bem, o Cinema Guarani. O outro cinema era o Primeiro de Maio. O Guarani ficava em frente à estação ferroviária. O Primeiro de Maio ficava do outro lado, perto dos jardins.
P: E nesses cinemas ainda tinha música ao vivo acompanhando os filmes? Como era?
R: As orquestras, né? Não era bem orquestra, era um piano, um violino, uma bateria... Não era muita coisa. Agora, tinha uma fluência muito grande, né? Depois nós nos mudamos pro Rio, mais precisamente pra Madureira. Grande parte da minha vida foi passada em Madureira. Eu agora estive lá visitando o tal Parque de Madureira e fiquei desolado. Madureira não tem mais nada. Agora vocês não veem, vocês não conseguem ver nem o famoso Morro de São José da Pedra. Quem pintou esse morro foi a Tarsila [do Amaral]. Madureira tinha os famosos coretos. Esses coretos eram concorrentes com os coretos de Nova Iguaçu, com o coreto da Glória. Mas a Tarsila pintou o coreto [no quadro “Carnaval em Madureira”] por que nesse ano, o cenógrafo do coreto [que era decorado no carnaval] fez a Torre Eiffel e, lá em cima, o dirigível em volta. Muito bonito!
Carnaval em Madureira
P: O coreto ficava onde?
R: Bem no Largo de Madureira.
P: Você morava em que rua?
R: Rua Maria Freitas. Número 34.
P: E tinha cinemas por perto?
R: Não. Cinema tinha na Rua Domingos Lopes, que é paralela, e a seguir, tinha o cinema Madureira. Olha, tinha um outro...
P: O Beija-Flor?
R: Não. O Beija- Flor é do lado de cá. O Beija- Flor é do outro lado da linha de trem. É do outro lado da linha que nós vivíamos que era de propriedade de um português, o Araújo, era uma vocação danada esse português. Você sabe por quê? Ele cortava as figurinhas dos filmes [os fotogramas], e distribuía para a meninada. Havia uns “binóculozinhos”. Você colocava o quadrinho ali e espiava com aqueles binóculos. Você conheceu esse binóculo?
P: Não...
R: Agora o outro cinema era pouco depois, era o Beija- Flor. Era de propriedade do Amin e do Nacib. Ele era conhecido como o cinema dos turcos. Era o Balbino no Beija-Flor, e era o Durval no Madureira... Naquele tempo todo dia tinha uma revolução! Durante uma sessão, ele arranjou um comunicado que dizia: “Comunicamos que eclodiu um movimento revolucionário na cidade. Qualquer novidades, nós voltaremos...” Quer dizer...
P: Ele projetou na tela?
R: Projetava na tela isso! E a fita continuou... (Risos) “Qualquer coisa nós voltaremos...”
P: Você tem lembrança do primeiro filme sonoro que você viu?
R: Esse foi no cinema Alfa, na rua Domingos Lopes.
P: Foi o Broadway Melody?[1]
R: Não foi o Broadway Melody, não. Foi muito tempo depois.
P: E o que você achou do filme sonoro quando você ouviu pela primeira vez?
R: Curioso o filme, mas nós éramos muito presos. Grande parte da minha geração, vamos dizer assim, gostava de cinema, mas, era muito presa ao que hoje se chama o “cinemão”. Por que o [Adhemar] Gonzaga, na [revista] Cinearte, mais o Pedro Lima, mais o Paulo Vanderley...
P: E o Álvaro Rocha?
R: Álvaro Rocha é Álvaro Rocha! Eles chamavam a atenção especialmente para o subentendimento, para os símbolos. Tem um filme alemão. Como é que ele chamava? Eu sei que com a Dita Parlo, em que ela abraçando um policial, tinha um capacete que caia no chão, e é o primeiro plano do capacete.
P: É o Asfalto [dir. Joe May, 1929]?
R: Asfalto, Asfalto... É isso mesmo! É um filme dirigido pelo Joe May com a Dita Parlo e o William Dieterle (?).[2] Então, essas coisas de símbolo, de sub entendimento... Isso pegava muito sabe!
P: Você frequentava mais que cinema em Madureira? Você ia no Madureira, no Beija-Flor...
R: Era mais no Madureira. Era mais fácil pra mim. O Beija-Flor eu não sei qual é a origem da sua construção. Mas, inicialmente, ele não foi construído pra cinema. Você sabe? Ele era todo de madeira. Que coisa louca!
P: E você costumava ir a Cinelândia?
R: Ah, muito pouco. Isso é muito pra cá, não é?
P: Você já comprava as revistas de cinema?
R: Comprava muito Cinearte.
P: Cena Muda, não?
R: Não. Muito menos. Cena muda praticamente eu não comprava. Agora a Cinearte, o cinema estava me tirando daquilo que eu estava me encaminhando.
P: O quê que era?
R: Eu era aluno do Colégio Militar. Um lindo Colégio Militar! Então, o meu pai.. Eu não podia comprar mais Cinearte, e as que eu tinha estavam encaixotadas. Encaixotadas! Sabe o que o meu pai fez? Botou no terreiro... e mandou o machado! Estraçalhou, jogou gasolina e tocou fogo! (Risos)
P: Seu pai era militar?
R: Não. Não era não. Foi influencia muito do meu avô paterno. Ele era positivista, muito ligado àquele pessoal lá da Escola Militar não é. E foi um pessoal que influenciou muito na República, não é?
P: Sim. Benjamin Constant, Deodoro da Fonseca...
R: Isso
P: Ele quis que você seguisse a carreira militar?
R: Meu avô queria.
P: Você entrou para o Colégio Militar quando?
R: 1928. E saí em 1934.
P: Antes do Colégio Militar, você estudou onde?
R: Ah, era escola pública!
P: Lá em Madureira?
R: Madureira! Essas professoras... A Dona Chiquinha... A Dona Chiquinha, era mãe de um grande amigo meu. Cícero Amarante Imbuzeiro. Ele era oficial de cavalaria. Mas pra ganhar uns “cobrezinhos”, fazia bico. Ele se brevetou aviador, aqueles “teco-tecozinhos”; O avião caiu e ele morreu [em 1952].
P: Quem te levava ao cinema? Você ia sozinho ou você ia com a sua mãe...
R: No tempo de Três Rios, quem levava era o meu pai e minha mãe. Por que minha mãe era cinéfila. Meu pai gostava, mas, não como minha mãe.
P: E aqui no Rio? Você já ia sozinho?
R: Ah, aqui no Rio eu saía assim...
P: Ia com a turma dos amigos? R: Não. Marcava de sair mesmo. Nós nos encontrávamos lá na... O ponto da reunião era o cinema Madureira.
P: No Colégio Militar tinha cinema?
R: Não!
P: Não? E vocês podiam sair do colégio pra ir ali nos cinemas da Tijuca?
R: Ah, saía só aos sábados não é?
P: Só aos sábados?
R: Saía aos sábados ou toda segunda-feira cedo.
P: Era internato?
R: Era internato.
P: Você continuou indo ao cinema no tempo do Colégio Militar?
R: Eu já te contei.  O cinema estava atrapalhando. O meu pai... Eu era proibido de comprar a Cinearte, e as que tinham, estavam encaixotadas. Aí ele pegou o machado quando ele ficou indignado... [Por que] eu fui reprovado no exame de francês.
P: Mas, você chegou a conhecer o Gonzaga, o Paulo Vanderley, o Sérgio Barreto Filho?
R: Ah, O Gonzaga...?
P: Naquela época?
R: Muito. Conheci o Gonzaga antes de entrar para o Colégio Militar!
P: Ah, é? Olha!
R: Não sei preciso o ano. Mas, foi o ano em que ele estava construindo o estúdio.
P: 1929, 1930?
R: Eu acho que por aí sim, 1929.
P: Por que você conheceu o Sérgio Barreto Filho, não é?
R: Oh, enorme, enorme, gordo... (Risos) O Sérgio aparece no Ganga Bruta, não é? [3]
P: Aparece.
R: O Sérgio, o Edson Chagas...
P: Eles se reuniam num café pra conversar sobre filmes. O Gonzaga, o Paulo Vanderlei... Você fazia parte desse grupo ou não?
R: Não. Não. Esse pessoal se reunia muito tarde, não é?
P: Como é que você entrou pra Cinearte? Eu me lembro que você passou a escrever em Cinearte a partir de 1937.
R: É. Eu escrevi sobre o Cinema educativo.
P: Isso. Depois da morte do Sérgio.
R: Cinemas Amadores... Acho que eu tinha vontade de trabalhar em imprensa, daí fui procurar o Gonzaga... O Gonzaga era muito acessível para essas coisas, não é? Ele era um “garotão”. (Risos)
P: Você saiu do Colégio Militar e você foi trabalhar logo em seguida?
R: Sei lá. Eu acho que eu fiquei... Acho que eu fiquei no deus dará, na vagabundagem...
P: Você não seguiu carreira militar?
R: Não... Eu fui reprovado no exame de francês.
P: E foi por isso que você saiu do colégio?
R: A causa foi.
P: E você fazia filme amador? Você tinha Pathé Baby? Você fazia filme amador em casa?
R: Ah, fiz sim.
P: Era o quê? [Bitola] 9 e ½ mm?
R: Ah, a Pathé Baby era uma maravilha não é!
P: Quando é que você ganhou a câmera?
R: A câmera... Ah, não sei não!
P: Mas, você fez filme em Madureira?
R: Fiz. Eu creio que entrava muito influenciado pelo Dziga Vertov.
P: Ah, é?
R: Sabe o que uma vez eu fiz? Dziga Vertov tinha um plano em que ele filmava de cima para baixo, e você via o engate de um carro para o outro e o trilho passando embaixo. E eu com uma Pathé Baby você sabe o que eu fiz? Pathé Baby dava [um chassi de] vinte e cinco [metros de filme] de corda. Grava muito tempo. E era pequena também... Sabe o quê que eu fiz? Eu fui para o último carro [do trem], enquadrei o engate e deixei o trilho correr. Fui assim até Dona Clara.[4]
P: E você projetava onde? Projetava em casa?
R: Ah, projetava muito... Eu tinha um amigo que tinha o projetor que tinha o projetor e ele levava lá em casa. Mas ele tinha uma enorme coleção de clássicos em 9 e ½ milímetros. Acácio? Acho que era Acácio.
P: E você sabe onde ele comprava esses filmes?
R: Ah, comprava na Rua Rodrigo Silva. Numa firma chamada Isnard & Cia[5]. Era uma casa que ficava na esquina da Rodrigo Silva com a Rua Sete de setembro [centro do Rio de Janeiro].
P: E você fez muitos filme em 9 e ½?
R: Não! Produção muito grande não!
P: Uns dez filmes?
Foto de Julio Heilborn
R: É... Foram filmes que não ganhavam nem título.
P: Eram filmagens?
R: É!
P: Mas, você chegou a fazer um filmezinho de ficção?
R: Uma tentativa de fazer, mas, não se realizou.
P: Mas, por que você não chegou a filmar?
R: Ah, problemas assim, financeiros. Tinha ali no sul um tal de Sátiro Borba, eu o conhecia pela Cinearte. Quando o Sátiro veio para Rio – eu soube pela revista que ele tinha vindo para o Rio e tinha montado um ateliê de fotografia ali no Largo Eduardo Chaves. Ele tinha um argumento: “Os Olhos do Morto”. [6]
P: O título é ótimo!
R: Nem chegamos a filmar.
P: Vocês chegaram a filmar?
R: Não. Tínhamos péssimas condições. Era muito difícil filmar essas coisas. Propor uma coisa dessas.
P: Você entrou para a Cinearte e por consequência para o jornalismo. Você trabalhou muitos anos como jornalista não?
R: Trabalhei nuns jornais muito “furreca”. Inclusive era na Vanguarda.
P: Ah, você trabalhou na Vanguarda?
R: Trabalhei! E trabalhei no Diário Trabalhista.
P: No Diário Trabalhista você fazia crítica de cinema, não era?
R: Fazia!
P: E na Vanguarda?
R: Não! Na Vanguarda era só polícia.
P: Policia?
R: Tinha que acompanhar... Acho que o diretor lá é um tal de Oseias Mota.
P: Foram os dois únicos jornais que você trabalhou?
R: Não, não espera lá! Eu trabalhei num jornal... Ah, meu deus! Era um jornal do Brício de Abreu. Era um quinzenário que só cuidava de programas culturais...[7]
P: Você trabalhou na Cena Muda?
R: Não.
P: Não?
R: Ah, eu escrevi um artigo!
P: Só um artigo?
R: Um artigo. O diretor era o Leon Eliachar
P: Você escreveu o artigo “Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira”. E a este artigo que você está se referindo na Cena Muda? [8]
R: Exatamente esse!
P: Foi o único que você escreveu para a Cena Muda?
R: Na Cena Muda foi!
P: Por quê que você escreveu esse artigo? Foi uma encomenda da revista?
R: Não! Deixa eu ver se eu me lembro do artigo.
P: Você falava no artigo, da importância de se criar um arquivo de filmes no Brasil.
R: É! Isso mesmo! Esse mesmo! Exatamente isso!
P: E nesse artigo você fala que era preciso entrevistar os pioneiros que ainda estavam vivo, procurar a família do Antônio Leal, do [Vittorio] Capellaro...
R: Já lembrou tudo!
P: Você naquela época já estava interessado em entrevistar os antigos cineastas que ainda estava vivos?
R: Estava!
P: Você já tinha entrevistado algum naquela época?
R: É. Era muito difícil falar, ouvi-los.
P: Você se aproximou dessa preocupação com a preservação por quê? Você já frequentava os arquivos que existiam ali naquele momento? Você ia no serviço de agricultura?
R: Há algo muito estranho na minha vida. É a fundação da Kino Filmes. [9]
P: Do [Alberto] Cavalcante?
R: Cavalcante, por influência de uma senhora que tinha sido diretora do Diário Trabalhista. Elza Soares Ribeiro. Por influência dela é que o Cavalcante entrou na tal Kino Filmes. Ele se deu muito mal... A Kino Filmes fez O Canto do Mar, não é?
P: Fez! E a Mulher de Verdade.
R: Esses filmes não davam nenhum resultado! Era como se eles desaparecessem depois. Os filmes não tinham retorno de bilheteria.
P: No momento que você escreveu o artigo pra Cena Muda, você já trabalhava no INCE [Instituto Nacional do Cinema Educativo]?
R: Acho que já!
P: Lá no INCE tinha um filmoteca?
R: Tinha. Muito ruim. O próprio funcionalismo não levava aquilo a sério. Não conheciam nada sobre os filmes. Eram funcionário público, foram nomeados para aquilo como poderiam ter sido nomeados pra qualquer outra coisa. Não tinham o espirito do cinema.
P: E você conhecia lá a filmoteca que o Pedro Lima organizou no SIA (Serviço de Informação Agrícola)?
P: Não. Não conheci. Ouvi falar, mas, não conheci não.
P: E essa preocupação com organizar uma filmoteca brasileira, com o cuidar dos filmes. Por que você pensou isso naquele momento?
R: Acho que tem muita coisa, muitos pensamentos que foram inoculados pela Cinearte.
P: Você menciona que o Pery Ribas já tinha um arquivo próprio. Você já tinha começado a juntar alguma coisa, na sua? Colecionar filmes?
R: Eram essas revistas que eu falei. Mais nada. Como a Cinearte mesmo que já tinha ido embora.
P: Você já tinha feito filmes? Você já tinha feito filmes profissionalmente ali naquela altura? Que eu lembro de você trabalhar no Berlim na Batucada (1944).
R: É isso mesmo! Era um filme da Cinédia, do Lulu [Luiz de Barros].
P: Você queria ser cineasta?
R: Queria! (risos) É uma grande frustração.
P: Mas você foi cineasta! Mas você queria fazer cinema de ficção? É isso?
R: É! Mas, eu gostava, tinha vontade de fazer documentário.
P: Você dirigiu filmes no DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda], não foi?
R: Você não pode dizer que “dirigiu”. Lá não era bem assim, não.
P: Por quê?
R: Não. Lá você saía com uma câmera e o Henrique Pongetti falava: “O governo está interessado que se fale isso, isso e isso”.  A coisa no DIP era essa.
P: Com quem você trabalhou no DIP?
R: Ah, com o Pongetti. Mas trabalhei com quem? Meus contemporâneos: Rui Santos, Fernando Stamato, João Stamato.
P: O [Alexandre] Wulfes era da sua época?
R: Ah, o Wulfes...
P: Nelson Schultz era?
R: Nelson Schultz.
P: Também? O Alinor Azevedo chegou a trabalhar no DIP?
R: Não, o Alinor Azevedo era da Atlântida. Mas o Wulfes era uma figura extraordinária, não é? Ele salvou o que existe do Lampião.
P: As filmagens do Benjamim Abrahão?
R: Aquele filme do Benjamim Abrahão.
P: Por quê que ele salvou? Como assim?
R: Salvou pelo seguinte. O DIP, numa mentalidade ultra tacanha, já havia destruído o ataque do 3º R.I. [Regimento de Infantaria], aquele regimento do levante comunista. O DIP destruiu aquilo por que não podia parecer na história.  Falei pro Wulfes: “Você sabe de uma coisa? Isso aí é muito corrupto”. Foi um funcionário.. O Wulfes tinha um carro à gasogênio. Então, ele me contou o quê que era. Por que ele [o Wulfes] revelava os filmes do DIP. Revelava e copiava. Quem fazia o som, era o velho Capellaro. Era o melhor som. [O Wulfes disse:] “Nós vamos hoje numa missão secreta”. O que é que é? Fomos lá no DIP. Como ele trabalhava com a empresa particular dele, ele conhecia os meandros. Ele me levou lá numa sala. “O senhor fique aqui. Não diga nada a ninguém sobre o que nós estamos fazendo. Nós estamos aqui levando o filme sobre o Lampião.” E saímos com aquilo. O Wulfes me pôs como... conivente com ele. Mas foi importantíssimo!
P: Sim, claro. Fundamental. Você tinha trabalhado com o Wulfes antes do DIP, na FAN?[10]
R: Antes do DIP?
R: Não. DIP antes.
P: Tá. Você trabalhou depois então com o Wulfes.
R: Depois eu fui com o Wulfes.
P: Você acompanhou de algum modo os filmes que o Rui Santos fez para o Partido Comunista?
R: Não. Não acompanhei não. Ele fazia aqueles filmes também... Era um pouco secreto...
P: Lá no DIP você era cinegrafista então?
R: Era.
P: Você trabalhou lá todo o tempo? De 1938 a 1945?
R: Ah, eu não posso precisar não.
P: E ficou muitos anos lá?
R: Não sei... A impressão que eu tenho... Acho que eu não esquentava muito no lugar não! (Risos)
P: Você só fez filmagens no DIP? Você não fez som, roteiro, locução?
R: Não. Não fiz não.
P: Onde você considera que você aprendeu cinema?
R: Ah, foi um aprendizado longo, não é? Eu lembro que mexendo na Pathé Baby, me insinuando para cima do Gonzaga – fui ser assistente dele, coisa assim... Assim fui aprendendo. O aprendizado que eu tive foi esse.
P: Você saiu do DIP pra ir para o INCE?
R: Isso embaralha tanto na minha cabeça. Tantos anos...
P: Mas, é por que você já está trabalhando no INCE ali por volta de 1948.
R: Eu acho que eu sai do DIP para ir para o Wulfes [FAN].
P: Lá no Wulfes você foi trabalhar como cinegrafista?
R: Sim.
P: O quê que ele fazia?
R: O Wulfes tinha um laboratório. Era um bom laboratório. Na época era um bom laboratório.
P: Ficava onde?
R: Ficava na Rua Paulinho Fernandes [em Botafogo].
P: Por que o senhor achava que era um bom laboratório?
R: Por que realmente ele tinha cuidados que não se via com outros laboratoristas. Tinha muito cuidado com a limpeza dos filmes, não tinha arranhões, não tinha manchas... Muito cuidadoso.
P: Você participou dos filmes dois filmes de ficção que o Wulfes produziu com a Cléa Barros?
R: Com aquela cantora?
P: Isso. Cléa Barros.
R: Não. Mas um deles é muito importante na história do cinema brasileiro. Você lembra do nome?
P: No trampolim da vida?[11]
R: Não, não foi esse não! Era um filme em que foram usadas... Elas já estavam aqui – Cavalcante as chamava de transfocato. Eram umas lentes alemãs, as antecessoras das zoom atuais. Seria uma cena da Bahia de Guanabara tomada da varanda de um apartamento do Catete. Enquanto ela [Cléa Barros] cantava... Aparecia ela cantando e a cena vai abrindo, vai abrindo, e você vê a Bahia de Guanabara e o Pão de Açúcar. Qual é o filme?
P: Acho que é No trampolim da Vida e Jardim do Pecado.[12]
R: O Jardim do Pecado.
P: Você trabalhou no Wulfes e depois foi para o INCE, não é? No INC você trabalhou exatamente em que, por que você só vai dirigir filmes lá nos anos 1960, não é?
R: Fiz essas coisas mesmo.
P: Mas antes de dirigir filmes no INCE você trabalhou em outros setores?
R: Não. Só fiz isso mesmo.
P: Só dirigiu filmes?
R: Só. Só fiz isso. Essas coisas as quais eu me referi.
P: E como é que surgiu a preocupação de fazer filmes voltados para a história do cinema brasileiro? Como é que surgiu, por exemplo, o Panorama?[13] O filme foi uma ideia sua ou foi uma ideia do Pedro Gouveia?[14]
R: Não. Não foi do Pedro Gouveia! O Pedro Gouveia era uma pessoa muito humana, muito interessante. Mas era muito desligado dessas coisas, ele queria administrar aquilo ali burocraticamente como funcionário público. Mas eu não queria.
P: Você já tinha contato com os velhos homens do cinema? Você já conversava com eles, você já tentava salvar os filmes?
R: Ah, conversei com alguns, mas, eles a compreensão deles não era muito grande não. Mas, conversei com alguns. Agora a ideia do Panorama, eu confesso a você que não me lembro
P: Você me contou uma vez que você andava muito ali pela Cinelândia, pelo Beco da Fome, e que você via aquelas distribuidoras jogarem os filmes fora. E que você, uma vez, viu um tonel cheio de filmes e ficou chocado com aquilo e começou a apanhar os filmes.
R: Filmes do Max Linder.[15] Mas eram 16 milímetros.
P: E você também me contou uma vez da sua ida ao antigo Museu Nacional.[16]
R: Ah, a ida no Museu Nacional, foi com o Julio [Heilborn]. Nós fomos lá e quis ver a sala onde estavam guardados filmes antigos e fiquei apavorado. Eram filmes de nitrato, pegam fogo com qualquer espirro. Aí eu expliquei lá: “Agora vocês tirem isso daqui, não deixem, por que a qualquer momento isso pode explodir, vocês perdem tudo!” E assim, foi feito. Eles tiraram no mesmo dia. E salvou-se mesmo. E depois se encontrou muita coisa que estava se deteriorando. Ia pegar fogo.
P: Foi lá que você achou o Circuito de São Gonçalo?[17]
R: Não! Foi com eles [Paulino e Alberto Botelho].
P: Você teve muito trabalho pra fazer o Panorama?
R: Ô! Muito! Uma coisa insana!
P: Por quê?
R: Por que havia muita gente contra. Eles não queriam. Sem motivo nenhum. Lamentavelmente, entre esse grupo, estavam os nossos amigos do Cinema Novo. Mas, no final, todos eles acabaram compreendendo e cooperaram com o maior interesse, com o maior afinco, e foi acontecendo isso. Se não é o pessoal do Cinema Novo, não teria uma porção de sequências que estão no filme. No final, terminou com um grande movimento de congraçamento.
P: De quem foi a ideia de convidar o Moniz Viana para escrever a narração?[18]
R: Ah, essa ideia surgiu lá do INC. É foi de lá sim!
P: Ele escreveu todo o texto?
R: Não! Todo o texto não! Absolutamente! Ele escreveu um “comentariozinho”. Não, não escreveu todo o texto não! Que isso!
P: Quem escreveu o texto foi você?
R: Foi. Eu me lembro que eu tinha a preocupação de fazer com que a fala [a narração] fosse em cima da cena sem fala. Cortava naquele momento pra entrar uma cena que tivesse fala. Isso ficou muito interessante, mas, deu uma trabalheira!
P: O Panorama é uma história do Cinema Brasileiro...
R: É. Ele está por aí em tudo quanto é cinemateca importante do mundo. Na cinemateca francesa, cinemateca inglesa, australiana... Cinematecas do mundo inteiro têm o panorama.
P: E essa sua relação com a história do cinema brasileiro? Você nunca escreveu até aquele momento textos que se voltassem para isso. Naquela época, até o Panorama, você não tinha escrito sobre a história do cinema brasileiro. Você escreveu depois. Até aquele momento só tinha, que eu saiba, o livro do Alex, não é?[19]
R: Que é um grande livro. Quando eu pego hoje o livro do Alex e examino, eu fico abismado. Muito bem feito! Muito bem documentado! O Alex deve ser lembrado, deve ser homenageado!
P: Você tinha acesso aos arquivos que existiam ali naquele momento? Que eram o arquivo do Alex, do Gonzaga, as cinematecas brasileira, do MAM... Você chegou a trabalhar com eles todos pra fazer o Panorama?
R: Ah, sim. Convocar todo mundo. Todo apoio.
P: O filme me parece que tem algumas preferencias. Elas são suas? Por exemplo, os filmes do Walter Hugo Khouri, pelo Pagador de Promessas, por O Cangaceiro...
R: Em geral, eu conhecia muito aquele material. Agora, uma pessoa, a qual nós não nos referimos, mas, que era ele próprio um manancial. O Dejean Magno Pellegrin. Conhecia tudo sobre cinema! Você falava um filme de não sei quando e ele lembra. E diz quem foi o diretor, quando foi feito, quanto custou... Olha, era um manancial de informações, todas corretíssimas, sabe?
P: Depois do Panorama, você fez o 70 anos de Brasil[20], que me perece ser a primeira abordagem histórica do documentário brasileiro. Eu não conheço nada antes, e não tinha textos, não tinha nada. Isso veio da sua pesquisa, do seu conhecimento?
R: É verdade. É um filme que eu gosto!
P: Por quê que você gosta?
R: Por que eu me sinto tão ligado ao espectador. O espectador adora, adora! Coisas produzidas como o Circuito da Gávea. Fica admirado, fica pasmo.
P: Você gostava mais de documentário?
R: Mesmo os filmes de ficção, eles próprios são documentários, não é? Não sei se o meu pensamento foi bem expresso.
P: Você então, já tinha a ideia de fazer o Panorama para a ficção, e o 70 Anos para o documentário? Por que tem essa separação.
R: Não!
P: Não?
R: Naturalmente se desenvolveram dessa maneira.
P: E no documentário deu mais trabalho reunir aqueles materiais? No 70 Anos de Brasil, deu mais trabalho reunir aqueles materiais, aqueles filmes? Por que figuras como Major Reis, como Silvino Santos, como Costa Soares eram desconhecidos.
R: Eu gosto muito do 70 Anos! Gosto muito! Dizem que as projeções feitas no 70 Anos parece que no cinema a plateia vibra. Gostam muito!
P: Olha, eu passo o filme para os meus alunos, e eles ficam fascinados pelo filme!
R: Mais do que o Panorama, não é?
P: Mais! Mais! Bem mais!
R: E é um filme mais modesto.
P: Algumas cenas do 70 Anos de Brasil foi você quem filmou, não é? A do Ismael Silva. Não é imagem de arquivo.
R: Aquilo fui eu quem filmou.
P: Mais alguma cena do filme foi você quem filmou?
R: Tem, tem! Uma cena que eu fiz do alto de uma marquise, o que seria um desfile da FEB [Força Expedicionária Brasileira], não é? É do alto de uma marquise.
P: Esse filme essa seu? É você que tinha feito?
R: Essas cenas são minhas. Eu filmei de cima de uma marquise.
P: E os curtas sobre os pioneiros? Sobre a Carmen Santos, sobre o Major Reis?  Você desenvolveu essa preocupação de resgatar essas pessoas?[21]
R: É. Eu sempre tive muita admiração, muito respeito por essa gente. Por que eles foram... eles precederam a a tudo no Brasil. Eles estão à frente da literatura, de tudo.
P: E você escolhia essas pessoas por que você os tinha conhecido, por que você os valorizava?
R: É. Qualquer motivo assim.
P: Tem alguém que você quis retratar em cinema e não conseguiu?
R: Olha, eu não me recordo, não.
P: Você conhecia muito o Luiz de Barros, mas, quem fez o filme sobre o Lulu foi o Mellinger não é?[22]
R: Lulu era uma figura admirável sabe! “O incrível Luiz de Barros”, não é? Você viu?
P: Vi! É um registro hoje extraordinário. Como é que se deu essa sua passagem para essa figura de pesquisador e historiador? Como é que se deu essa sua passagem, de cineasta que se transformou em um pesquisador e num historiador?
R: Já era um problema único.
P: Isso se desdobrou naturalmente pra você?
R: É, é.
P: Você gostava de escrever?
R: Ah, um pouco!
P: Mas, escreveu muito!
R: Ah, nem tanto assim!
P: Você planejou esses livros todos que você fez, ou você foi escrevendo conforme o desejo que você tinha?
R: Não. Minha vida não podia ter muito planejamento, não! As coisas surgiam assim, ao deus dará!
P: “No Tempo da Manivela” (1987) é um livro mais de imagens...
R: Eu gosto muito dele.
P: É? É o livro que você mais gosta?
R: Talvez seja. Talvez! Por que gosto muito!
P: Você gosta mais da imagem? Você gosta mais de contar visualmente?
R: Acho, que ele conta mais a história. Conta bem mais detalhadamente. Não tem nada ali a se desmentir.
P: Aquelas fotos do “No Tempo da Manivela”, você reuniu?
R: As fotos?
P: É!
R: Ah, aquilo foi tirado do filme!
P: Ah, você tirou do Panorama?
R: Ah, do Panorama e de todos eles. Tinha foto eu tirava do filme.
P: Então, são fotogramas?
R: Fotogramas. Era o jeito não é?
P: E esse seu lado de biógrafo? Você escreveu uma série sobre os pioneiros para a revista Cinemin, e depois transformou isso num dicionário...[23] Você quis abarcar todo o período?
R: É. Eu fiz todas as nacionalidades, não é?
P: Você quis deixar o registro dessas pessoas?
R: É.
P: Mas, você é uma pessoa que procura seguir os desenvolvimentos não é? Você, por exemplo, fez um CD-Rom, que é um produto já da era da internet. Por que você se interessou pelo computador, pela informática?[24]
R: Acho que quem me interessou mesmo foi o Júlio. Ele é muito ligado a essas técnicas. Muito, muito.
P: Mas, você me disse uma vez que você pretendia escrever a sua autobiografia.
R: Uma autobiografia é muito difícil. É muito difícil não se esconder nada...
P: Você publicou já algumas coisas.
R: Talvez eu faça um dia, mas eu acho que um biógrafo nunca conta tudo.
P: E você viajou para fora do Brasil?
R: Viajei.
P: Pra onde você foi?
R: Viajei como consequência justamente da minha presença nos quadros do INCE e do INC. Eu ia representando em festivais... Ah, eu viajei muito! Estive na França, na Alemanha, na Itália, na Espanha, Portugal...
P: Você conheceu cineastas, você frequentou cinematecas nesses países? Você conheceu, por exemplo, o Henri Langlois?
R: Ah, não. O Langlois eu não conheci não!
P: Você visitou cinematecas?
R: Visitei.
P: Quais?
R: Visitei a de Paris.
P: Cinemateca Francesa? Você chegava a visitar as reservas técnicas, os depósitos de filmes?
R: Sim.
P: No INCE, você chegou a trabalhar na filmoteca?
R: Não.
P: Você chegou a dar indicações para a guarda de filmes lá?
R: É dava... Uma conversa, não é?
P: Quem era o responsável lá?
R: Quem tomava conta da chamada filmoteca, que não era, eram pessoas que tinham sido nomeadas para o serviço público não é. Não eram motivados.
P: E nem tinham conhecimento técnico.
R: Não.
P: Você conheceu o Joris Ivens?
R: Não.
P: Conheceu o Erich Von Stroheim?
R: Não!
P: Nestes festivais que você frequentou tem algum cineasta que você conheceu que você admirava?
R: Não. Desses grandes, a única pessoa com quem eu tive contato assim foi o Arnie Sucksdorf.
P: Ah, é!
R: É.
P: Aqui no Brasil ou lá fora?
R: Não, aqui.
P Você gostava dos filmes dele?
R: Gostava! Muito bons.
P: E você chegou a trabalhar com ele aqui?
R: Não.
P: Mas, vocês se encontravam regularmente?
R: Não. Regularmente não. Esporadicamente.
P: Quais eram os cineastas que você mais gostava?
R: Era o John Ford, e o Griffith.
P: O que te atraia no John Ford?
R: No Cineasta? O Ford, eu acho que ele tinha momentos que valiam por todo o filme. No O Homem que Matou a Facínora, aquele long shot que você vê aquela locomotiva, soltando aquela fumaceira, e depois chega. Até aquele momento. Chega! Não precisa ver o resto do filme! (Risos) Também O Homem que Matou a Facínora, Depois do vendaval... São grandes filmes mesmo!
P: E os brasileiros?
R: Inegavelmente tem de se respeitar muito o velho [Humberto] Mauro. Fez tudo o que queria, fez tudo o que pôde fazer.
P: Você gostava de algum filme dele em particular?
R: Ah, sem dúvida o Ganga Bruta. Será que o que eu estou falando vai interessar a alguém.
P: Para os mais jovens é importante saber da sua carreira, com quem você trabalhou...
R: Dentre os mais jovens, o Luiz Carlos Lacerda de Freitas. Um trabalhador infatigável.
P: Com quem que você acha que você aprendeu mais em sua carreira?
R: Ah, eu acho que eu tive influência de vários.
P: Mas, teve um técnico que você admirasse? Um fotógrafo, um cenógrafo, técnico de som...?
R: O Adalberto Kemeny. O Kemeny fez coisas extraordinárias para... Como é que é o nome do filme?
P: São Paulo a Sinfonia da Metrópole?[25]
P: São Paulo a Sinfonia da Metrópole! Estou maravilhado! Kemeny era muito bom!
P: Foi talvez o melhor fotógrafo que você conheceu?
R: O Kemeny? Talvez tenha sido.
P: Você ia muito lá ao laboratório dele? Na Rex?
R: Eu? Não.
P: Mas, você conheceu a Rex?
R: Conheci. Era um profissional consciencioso, procurava fazer tudo muito certo. Os filmes dele eram muito bem feitos!
P: E coisa mais familiar. Por que a sua filha acabou trabalhando com cinema não é? O pai a influenciou?
R: Não. Ela fez o curso do IDHEC [L'Institut des hautes études cinématographiques]. Fez produção e direção. Fez ao mesmo tempo e na mesma turma que o Júlio. Ambos, produção e direção.
P: Ela já tinha trabalhado com cinema antes?
R: Antes? Acho que não.
P: Você levava ela para os sets?
R: Não. Ela ganhou uma bolsa de estudos da Maison de France. Com essa bolsa de estudos – foi muito boa aluna – que ela fez essa viagem à Europa. Nessa viagem à Europa, é que ela fez o concurso e entrou para o IDHEC. Lá tinha um diretor que não admitia... Lá é tudo rígido... Ele disse: “Gilberta, a senhora não vai fazer produção e direção. Isso não é coisa de mulher. Você vai fazer montagem.” Ela falou: “Você quer saber de uma coisa; ou eu faço produção e direção, ou eu me desligo do IDHEC”. E fez produção e direção. Isso foi contado lá nos Instituto de Cinema Educativo, pelo próprio diretor quando veio nos fazer uma visita aí.
P: E vocês trabalharam juntos? Você e a Gilberta?
R: É. Nas filmagens dos 70 Anos do Brasil”. Aquelas filmagens com o Ismael...
P: Mais alguém da sua família trabalhou com cinema?
R: Não. Não.
P: Ninguém?
R: Chega! (risos)
P: Você tem algum projeto nesse momento?
R: Terminar esse livro que eu estou fazendo não é.
P: Que livro que é?
R: Ah, é o livro que é uma continuação daqueles sobre os estrangeiros do Cinema Brasileiro”. É uma continuação. Contando toda a história. Acho que vai ser um livrão. Vai ser enorme! (Risos) Acho que o que nós temos anotados... São centenas, sei lá. Talvez milhares de nomes de Italianos, eslovacos, argentinos, russos...
P: E você usa internet muito?
R: Não.
P: Mas, você usa computador?
R: Não.
P: Não? Você ainda prefere a máquina?
R: Não. Eu escrevo na mão.
P: O senhor escreve à mão, ainda?
R: Não muito. (risos)
P: Jurandyr, o que você achou de ser convidado para ser presidente de honra da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual?
 R: É claro que só posso ficar agradecidíssimo. Emocionado, mesmo! Por que a associação, o evento, tudo é muito importante. Então, eu agradeço imensamente.
P: Você fica satisfeito de ver que as pessoas estão te seguindo nesse trabalho?
R: Ah! Mas, muito satisfeito. Muito satisfeito!
P: Bom, é isso! A gente agradece muito pela entravista!
R: Eu é que agradeço a vocês me aturarem!
P: É ótimo aturar você!



[1] Primeiro filme sonoro exibido no Rio de Janeiro, em 1929
[2] Na verdade, Jurandyr está se referindo a uma cena de outro filme que não Asfalto, uma vez que Dita Parlo não estrelou este filme.
[3] Ganga Bruta (dir. Humberto Mauro, 1933).
[4] Antiga estação de Madureira do ramo ferroviário da E. F. Central do Brasil.
[5] A empresa se chamava “Pathé Baby” e também funcionou em endereço na Rua Evaristo da Veiga, 20.
[6] Sátiro Borba esteve à frente do Cine-Club de Porto Alegre, realizando alguns filmes amadores entre 1930 e 1931.
[7] Jurandyr se refere à revista Comoedia – Revista Mensal de Teatro, Música, Cinema e Rádio, publicada na segunda metade dos anos 1940.
[8] Publicado em Cena Muda, n. 28, 13 jul. 1948. Disponível em: http://preservacaoaudiovisual.blogspot.com.br/2008/11/indicaes-para-organizao-de-uma.html
[9] A Kino Filmes funcionou em São Paulo entre fins de 1952 e 1954, tendo utilizado estrutura e equipamentos da Companhia Cinematográfica Maristela.
[10] Filmes Artísticos Nacionais (FAN), empresa de Alexandre Wulfes.
[11] No trampolim da vida (dir. Franz Eichhorn, 1945)
[12] Jardim do pecado (dir. Leo Marten, 1946).
[13] O documentário Panorama do cinema brasileiro (dir. Jurandyr Noronha, 1968), o primeiro longa-metragem dirigido por ele.
[14] Pedro Gouvêia Filho, diretor do INCE até 1961
[15] Célebre cômico do cinema silencioso francês.
[16] Museu Nacional da Quinta da Boa Vista.
[17] Circuito de São Gonçalo (dir. Paulino Botelho, 1909) é um dos mais antigos filmes brasileiros preservados e foi incluído no documentário Panorama do cinema brasileiro.
[18] Antonio Moniz Viana, célebre crítico cinematográfico creditado como supervisor do filme.
[19] “Introdução ao cinema brasileiro”, livro de Alex Viany publicado em 1959.
[20] 70 anos de Brasil (da Belle Époque aos nossos dias) (dir. Jurandyr Noronha, 1972).
[21] Filmes dirigidos por Jurandyr Noronha como Carmen Santos (1969), Inconfidência Mineira: sua produção (1970), Humberto Mauro (1970), O cinegrafista de Rondon (1971).
[22] O incrível Luiz de Barros (dir. Lucien Mellinger, 1971).
[23] Dicionário Jurandyr Noronha de Cinema Brasileiro - De 1896 a 1936 - Do Nascimento ao Sonoro (2008)
[24] Pioneiros do cinema brasileiro: 1896-1936, CD-Rom lançado em 1998.
[25] São Paulo, a sinfonia da metrópole (dir. Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny, 1929).