sábado, 8 de agosto de 2009

A Questão da Preservação na Mixagem do Filme - trabalhos de alunos

A experiência do Jesse como editor de som é responsável pela interessante tema de seu trabalho de final da disciplina de "Preservação, Memória e Políticas de Acervos audiovisuais" do curso de cinema da UFF, no primeiro semestre de 2009, atentando para a preservação do som - geralmente relegada, dada à prioridade da imagem nos cuidados - e, mais importante ainda, para a necessidade de se pensar a preservação durante o processo de realização dos filmes (mais especificamente, em sua finalização), não apenas para uma remota restauração do filme num futuro distante, mas inclusive para possíveis intervenção no próprio processo, muitas vezes longo, de concepção e lançamento da obra.

A Questão da Preservação na Mixagem do Filme
por Jesse Marmo de Moraes

Introdução

O objetivo deste trabalho é relatar minha experiência como assistente de mixagem de som para cinema, durante 3 anos nos Estúdios Mega, cuja sala de mixagem fica localizada no Pólo Cine e Vídeo da Barra da Tijuca, citando todas as etapas envolvidas no processo de mixagem, desde a chegada do material (vindo do editor de som), até a entrega do som finalizado para o laboratório. Também abordarei alguns aspectos históricos sobre a evolução da tecnologia sonora no cinema e sobre os formatos de mídia mais comuns, e questões que acabamos por lidar no dia a dia, relacionadas a armazenamento de mídias, backups, e qualidade do som nas salas de exibição.

A mixagem:

A sala de mixagem dos Estúdios Mega foi construída com dimensões que atendem os requisitos exigidos pela Dolby, de forma que ela esteja autorizada a codificar a mixagem, seja em estéreo ou surround 5.1, para o padrão Dolby SR e Dolby Digital. A mesa de som por onde chegam as pistas de áudio é um console digital Euphonix System 5, com capacidade para tocar até 70 canais simultaneamente, mais 32 linhas de áudio de saída. Para reproduzir as pistas de som, se trabalha com dois computadores executando o software de manipulação de áudio digital Digidesign ProTools, que nesse caso funciona apenas como "player", ou seja, o software não grava o resultado da mixagem nem executa as automações da mixagem (equalização, compressão, fades, delays, reverbs, etc.).

Durante o período que trabalhei como assistente de mixagem, era incumbência minha receber o material, na forma de sessões do ProTools ou de outro software utilizado pelo editor. Estas sessões, contendo as pistas de diálogo, efeitos, ambientes e ruídos de sala, trabalhadas pelo editor de som, são reorganizadas, de forma a se obter as sessões de ProTools preparadas para a primeira etapa da mixagem, a pré-mixagem. É comum a maioria dos editores de som trabalharem com ProTools, o que facilita o trabalho de organização das pistas de som, já que o material vem no padrão do mesmo software utilizado no estúdio de mixagem. No universo sonoro do filme, o digital se estabeleceu mais cedo do que no universo da imagem. Hoje em dia, os próprios gravadores de som direto já trabalham com som digital (padrão .wav ou .aiff, 16 ou 24 bits, 48KHz, e agora, 96 KHz). Dentre os mais conhecidos e utilizados podemos citar os seguintes modelos e fabricantes: Cantar (da Aaton), Sound Devices e Marantz. Com a aposentadoria dos Nagra, e os DAT's prestes a seguirem o mesmo caminho, falar em som de cinema hoje (seja o som direto bruto, editado ou mixado) é falar de arquivo digital, formato .wav ou .aiff. Em função deste áudio ter formato de um arquivo de computador, o material relativo ao som do filme que nos chega, normalmente vem gravado em DVD's ou em HD's externos (para ilustrar o tamanho de um arquivo de som mono, formato .wav, 48 KHz, 16 bits, com duração de 1 minuto, podemos calcular: 1 minuto = 60 segundos; em 1 segundo de som, eu tenho 48 mil amostragens do som "empacotados" em blocos de 16 bits (ou 2 bytes, já que 1 byte = 8 bits). Então, 1 segundo = 48.000 *2 bytes = 96000 bytes. Em 1 minuto, teríamos então 60*96000 = 5.760.000 bytes, aproximadamente 5.5 MB. Se o arquivo for estéreo, o valor dobra (1 minuto = 11 MB)

Esse material recebido, gravado em DVD no HD externo do editor, é transferido para o HD externo da sala. É importante frisar que o ProTools não trabalha com HDs externos no formato USB, somente Firewire ou SCSI. Transferido o material para o disco da casa, são criadas sessões, discriminadas por rolo e por característica do arquivo (se é diálogo, efeito, ambiente, ruído de sala ou música). Criadas e organizadas as sessões, inicia-se o processo de pré-mixagem, necessário porque o console digital trabalha com até 70 canais de som simultâneos, e em grande parte dos longa-metragens, se somarmos todas as pistas de som referentes ao filme, a conta final passará em muito de 70. Para se ter uma idéia, em média uma sessão de diálogo/som direto, por rolo, costuma vir com 10 pistas de som direto, 2 de dublagem, 4 de efeitos gravados no set (ou pfx, do inglês "production effects"), 2 de ambientes gravados no set (para servir de cobertura de diálogos de diferentes takes) mais 3 de ADR (do inglês "Additional Dialog Recording"), totalizando 21 pistas. A sessão de efeitos, por conter muito mais tipos de sons heterogêneos e pontuais, pode contar com até 50 pistas (é bom lembrar que arquivos estéreos contam como 2 pistas). Por isso mesmo, de acordo com a demanda exigida pelo desenho sonoro de cada filme (uns trabalham com mais diálogos, outros com mais efeitos, outros com mais ambientes, e assim vai), antes da mixagem do filme propriamente dita, são feitas as pré mixes, agrupadas pela característica de cada som, de forma que a conta total das pistas pré-mixadas não ultrapasse os 70 canais que a mesa suporta.

Pré-mixes prontas, parte-se para a mixagem final, onde se mistura e se define os níveis todos os elementos sonoros do filme. Definida a concepção e desenho sonoros do filme, gravam-se, em um gravador digital de 24 pistas, blocos separados por tipos de sons, chamados (do inglês) de Stems (Dialog Stem, Music Stem, Effects Stem). Para o diálogo, gravam-se 5 pistas (referentes aos lados esquerdo, central, direito, esquerdo surround e direito surround; não há pista de sub woofer), para a música e efeitos, são utilizadas 6 pistas (nesses há 1 pista para o sub woofer), perfazendo um total de 17 pistas. Essas mix stems serão a base para a gravação do Print Master (que é o arquivo Dolby Digital 5.1 codificado e gravado em um disco magneto-ótico, normalmente abreviado para a sigla M.O.). No Print Master, que sempre é realizado sob a supervisão do engenheiro responsável da Dolby, além da geração do arquivo codificado Dolby Digital gravado no disco M.O. (é esse disco que vai para o laboratório para que seja gerado o negativo de som), também e possível obter as 6 pistas do som 5.1, utilizadas mais tarde para autoração de DVD's e para a masterização e transmissão em televisão.

Na ocasião do Print Master, o engenheiro da Dolby confere a equalização e a resposta acústica da sala, mede a resposta individual de cada caixa, e realiza, quando necessário, calibragens pra equilibrar e garantir a fidelidade do som escutado. Ao se passar pelo equipamento responsável pela codificação da mixagem, realiza-se uma simulação da operação do leitor de som ótico presente no projetor, para saber se poderá haver distorção ótica na projeção, em função de algum excesso de nível.

Após esse processo, algumas produtoras requisitam o que se convencionou chamar de banda internacional, ou seja, uma outra mixagem, mas que não contenha os diálogos na língua original, para que esta receba a dublagem na língua do país que comprou os direitos de exibição daquele filme. É na confecção da banda internacional (conhecida também pelo jargão M&E, de "música e efeito") que se utiliza as 12 pistas dos stems referentes à música e efeito do filme. Eventualmente, um ou outro efeito (uma batida de porta, um beijo, ou um tapa, por exemplo) podem estar contidos no stem de diálogo, e fazerem falta na preparação da banda internacional. Para esses casos, utiliza-se efeitos e/ou ruídos de sala, fornecidos pelo editor de som.

A produção da banda internacional está incluída naquilo que as produtoras chamam de delivery do filme, ou seja o material sonoro relativo ao filme que será entregue e armazenado nas produtoras, funcionando de uma certa forma como um back up do som do filme, já que acontecendo qualquer imprevisto, como uma perda do M.O. do som do filme, por exemplo (fato que já presenciei), pode se gerar outro M.O. através dos stems do filme. Assim que comecei a trabalhar na área de mixagem do Mega, ainda se gravava os stems do filme, a mixagem 5.1 e a banda internacional (em 5.1 também), em fitas magnéticas Hi8, de oito pistas, que eram usadas nos famosos gravadores Tascam DA-88. Com o passar do tempo, algumas produtoras foram pedindo para o seu delivery, além das fitas Hi8, DVD's contendo esses mesmos arquivos. Hoje em dia, a grande maioria dos "deliveries" é feita somente em DVD's, devido a praticidade e a economia no espaço de armazenagem.

Alguns problemas gerados por essa digitalização das mídias de áudio (e a consequente quase extinção das fitas), são os constantes casos de perdas de DVD's (tendo como causa, ironicamente, o tamanho reduzido que acaba por facilitar essas perdas), o que acarreta uma demanda de responsabilidade de reposição desse material sobre o estúdio gerador do conteúdo. Para evitar tais problemas, estipulamos uma política própria de backups dentro da empresa, através da gravação de DVDs por nossa conta (um backup do backup, já que este normalmente já é incluído no delivery para a produtora). Com o passar tempo, mesmo com o espaço reduzido de um disco de DVD, o espaço e o tempo demandados para adminstração desses backups começaram a se tornar críticos, pedindo uma reavaliação dessa política. Acredito que uma solução razoável seja manter esses DVD's por um tempo estipulado (3 anos, por exemplo), e a partir daí se cobrar pelo serviço de manutenção e cuidado daquele material ali armazenado.

Outra questão que aflige mixadores, diretores e produtores de cinema diz respeito ao nível sonoro com que se ouve a mixagem do filme nas salas de exibição. O aparelho da Dolby, que decodifica a leitura do ótico de som e transfere o sinal para os amplificadores, possui um controle de volume, que em tese deveria estar na posição 7 (é em função dessa posição que são feitos os ajustes de calibragem e alinhamento da sala de mixagem). Na teoria, em uma sala de exibição (estando o decodificador da Dolby na posição 7, os amplificadores calibrados e alinhados, e as caixas de som em perfeito estado), o som ouvido no cinema deverá ser o mais fiel possível (já que igual nunca será), em relação ao som ouvido na sala de mixagem. O que ocorre na prática, é que muitos filmes norte-americanos acabam sendo mixados mais alto do que o "volume 7" da sala, obrigando (em função da proximadade das salas, do tamanho reduzido destas, e da inexistência de isolamento acústico entre as salas de cinema dos sistemas multiplex) os projecionistas a deliberadamente abaixar esse volume (já fiquei sabendo de casos onde volume chegou a ficar na posição 5). É por isso que muitas vezes, quando, antes do filme começar, ao assistirmos aos trailers nacionais e norte-americanos em sequência, saímos com a impressão de que o som do trailer estrangeiro está muito melhor do que nacional, quando na verdade o estrangeiro é mixado pra tocar bem mais alto no volume 7, enquanto o trailer nacional "respeita" mais essa norma. O resultado disso é que muitos produtores e diretores brasileiros já perceberam essa diferença e acabaram propositadamente definindo níveis sonoros mais altos para as suas mixagens, criando um círculo vicioso, onde quanto mais o exibidor abaixa o volume, mais o diretor compensa na mixagem.

Conclusão:

É interessante notar que questões de preservação acabam não ficando restritas apenas ao círculos das cinematecas, salas de armazenamento e arquivos de som e imagem. No meu caso prático, eu lidava frequentemente com essas questões, se pensarmos que muitas decisões sobre o que apagar ou não eram tomadas na sala de mixagem. Muitas vezes, acabávamos por apagar arquivos de som (proveniente da edição de som), que não eram utilizados nas mixagens, muito pela questão de espaço em disco, mas também em função da organização e praticidade do trabalho. No princípio nossa política se limitava a "backupear" todo material que fosse gerado na sala de mixagem, o que mais tarde se revelou impossível também de se administrar. Na verdade, se as produtoras respeitarem a integridade desse material gerado na mixagem, e que lhes é entregue, poderemos aumentar a possibilidade de restaurar filmes no futuro, não dependendo somente da informação gravada na película, porque como sabemos, este é um suporte que demanda cuidados específicos e locais devidamente climatizados e projetados para armazenagem e preservação. Não se fala aqui de digitalizar o som registrado na película, mas sim da preservação do som (que foi captado, editado e mixado digitalmente) que originou a master gravada na película.

Interessante também é notar um conceito diferente de preservação, com o qual acabei esbarrando por ocasião do desenvolvimento desse trabalho, e que diz respeito à preservação do conceito original do desenho sonoro do filme, e que não está sendo respeitado por alguns exibidores, na medida em que, alterando o nível sonoro do filme exibido, ele acaba alterando a relação entre as frequências que compõe o som do filme que chega até o espectador, já que não é linear a relação entre volume sonoro e percepção das frequências (há perdas em baixas e altas frequências, e as frequências que compõe a faixa média de frequência acabam se fazendo mais presentes). Nessa disputa, entre o "mixar mais alto" e o "projetar mais baixo", travada pelo diretor e exibidor, o espectador sai perdendo no final das contas.

Referências bibliográficas:

-KLACHQUIN, Carlos. Cinema Digital e Cinema Eletrônico.

-KLACHQUIN, Carlos. Não se esqueça do som!

-KLACHQUIN, Carlos. O som no cinema.