quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento.


Este é um texto que escrevi em 2009 para a revista virtual "Projeções", que aparece aqui numa versão revista.


A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento.
 
por Rafael de Luna Freire (rafaeldeluna@hotmail.com)

Em seu livro sobre a história dos arquivos de filmes e da preservação audiovisual, Penelope Houston – por décadas a editora-chefe da revista inglesa Sight and Sound – relatou o episódio em que um experiente crítico, sentado numa sala de cinema ao seu lado, certa vez divagou sobre de onde vinha aquela luz que atingia a tela no momento de projeção dos filmes. [1]
Esse “causo” servia apenas para ilustrar o argumento da autora de que mesmo pessoas que estudam, pesquisam, conhecem, amam e estão bastante familiarizadas com a experiência cinematográfica podem revelar uma completa ignorância sobre tudo que está “por trás” dos filmes na tela. De modo mais simples, sob a forma de uma pergunta que pode se assemelhar ao inevitável questionamento das crianças sobre a origem dos bebês, trata-se de perguntar de onde vem os filmes, afinal?
Quantos de nós já fizemos essa pergunta? E quais seriam as respostas que nós ouviríamos a essa questão? Uma delas seria que por trás e na própria tela o que temos é simplesmente o filme. Essa resposta assume como certo o fato de que qualquer espectador em uma sala de cinema – como também em frente à TV ou ao monitor em sua casa – tem acesso direto à obra, e ponto final. Este artigo tem como objetivo relativizar essa questão e demonstrar como muitas vezes uma determinada cópia que assistimos não corresponde exatamente à obra (o filme) tal como ela foi concebida, podendo nossa visão ser infuenciada por diversas questões relativas à origem e qualidade desse material, assim como problemas em sua forma de acesso. Indo ainda mais longe, pretendemos inicialmente problematizar o que seria a própria obra audiovisual.

O original no cinema – conceito de obra e materiais

De início, devemos assinalar que o cinema não é uma arte tradicional como “as outras seis” e que, tomando as artes plásticas como exemplo, possuem a aura da “obra de arte”, do objeto único e original. [2]
Podemos dizer que todos nós já vimos muitas vezes a imagem da famosa pintura Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, mas até hoje milhares de turistas vão diariamente ao Museu do Louvre, em Paris, para ver esse quadro, para ter uma visão direta do original da obra, ainda que (ou justamente porque) já a conheçam muito bem através de reproduções em livros, jornais e revistas, assim como de sua visão no cinema, televisão e internet. O motivo para tal é o fato de que ali está a verdadeira e única Mona Lisa, ao alcance dos nossos olhos sem nenhum tipo de intermediação ou interferência entre nós e as pinceladas dadas pelo mestre renascentista há mais de cinco séculos atrás. Muitos visitantes tiram fotos ao lado do quadro para levarem como lembrança o momento em que estiveram diante daquela obra singular e inimitável. 
O cinema, por outro lado, com seu estatuto inevitavelmente ambíguo de arte e indústria, sustenta-se num princípio de reproduções, tendo talvez um parentesco mais próximo com a técnica da gravura, responsável por popularizar a circulação de imagens ao final da Idade Média ao permitir reproduções mecânicas, rápidas e baratas. 
Desse modo, podemos começar perguntando o que é o original de um filme. No caso de uma realização em película cinematográfica – que, mesmo com o advento do vídeo e da tecnologia digital, ainda é o suporte mais frequente do que entendemos genericamente como cinema – seria o negativo utilizado na câmera? Para começar, ninguém assiste a um negativo (com as cores ou o preto-e-branco invertido) e o acesso à obra tal como ela foi concebida já deve ser dar necessariamente a partir de uma primeira reprodução, do filme negativo para o positivo, com a criação de um novo material que, este sim, poderá ser visto e apreciado. Além disso, na quase total maioria dos casos, o chamado “negativo de câmera”, mesmo já montado e editado – momento no qual grande parte dos planos será descartada e apenas uma parte aproveitada –, ainda não é a obra final. Este negativo ainda receberá marcações de luz, trucagens óticas, além de, hoje em dia, uma infinidade de efeitos digitais (incluindo até a total inserção de personagens e cenários) que diferenciarão ainda mais o novo produto final (intermediado digitalmente ou não) do que foi sensibilizado originalmente através da câmera. Entretanto, ao término do processo moderno de “finalização”, chega-se a um material chamado justamente de intermediário (no caso da película, um interpositivo) que será utilizado para dar origem às cópias que serão vistas no cinema.
Assim, o melhor elemento para preservar uma obra são aqueles que deram origem à cópia, os materiais intermediários, e que, mesmo não podendo ser acessados diretamente, poderão dar origem a novas cópias com a mesma qualidade, ainda que as “cópias de exibição” sejam fundamentais, no mínimo, como referência. [3]
Dito desta forma, parece tudo muito simples: o material intermediário (digital ou não)  feito a partir do negativo de câmera dá origem às cópias e, preservando todos esses elementos, temos a obra cinematográfica salva e acessível. Obviamente, o mundo real é bem mais complicado. Afinal, nem todas as cópias de um filme são iguais e nem todos os elementos da obra estão sempre e igualmente presentes em todos os seus materiais. E o pior: nem sempre são preservados ou sobrevivem todos os materiais envolvidos na criação de uma obra. A película cinematográfica – o vídeo e o digital então, sem se fala – revelaram ser suportes bem mais frágeis do que a tela e as tintas usadas por Da Vinci.
Desse modo, é importante citarmos uma das “regras” assinaladas por Paolo Cherchi Usai, de que o “original” de um filme é um objeto múltiplo, fragmentado em diferentes entidades iguais ao números de materiais sobreviventes. [4] Ao contrário da pintura, em que a obra equivale a um único objeto (a Mona Lisa é o quadro que está no Louvre), no cinema a obra existe em um conjunto de diferentes materiais.
A citação de Usai é justificadamente tirada de seu livro sobre o cinema silencioso, período em que as diferenças entre os materiais eram mais agudas. A história do cinema também tem sido a trajetória do crescente controle dos realizadores sobre a padronização das cópias que são exibidas de suas obras. A conversão da indústria para o cinema sonoro, no final da década de 1920, é um exemplo claro disso. Se antes as músicas, narrações e sonoplastia ficavam a cargo de cada sala de cinema [5] - que podia optar, inclusive, pelo silêncio –, com a sonorização mecânica e sincronizada por discos e depois pelo processo ótico (com o som impresso fotograficamente na própria película, junto com as imagens) todas as salas passaram a supostamente reproduzir exatamente o mesmo som que fora gravado para o filme. Num futuro bem próximo, com a transmissão via satélite dos filmes em arquivos digitais diretamente para a sala de cinema, esse processo chegará ao seu apogeu.
Ainda assim, não se pode supor a unicidade de algo tão complexo como o cinema. Ao ousadamente propor pensar o “cinema como evento”, Rick Altman ressaltou, entre outras características, sua “multiplicidade”, “heterogeneidade” e seu caráter mais distante das artes plásticas do que das artes performáticas. Se a “a apresentação padronizada nunca foi alcançada” (um mesmo filme sempre tem diferenças entre as cópias, os suportes e as formas em que ele é visto por diferentes plateias), cada exibição é única e irreprodutível.
Assim, podemos pensar talvez que o original de uma obra cinematográfica não é o objeto físico (o rolo de filme), mas o que é visto na tela. Ou seja, o espetáculo de imagens e sons produzidos através de luzes, sombras, impulsos elétricos e vibrações no ar? Giovana Fossati fala da diferenciação do cinema como “artefato material” e “artefato conceitual”, no que precisa ser preservado não apenas um objeto concreto, mas um “dispositivo”. Assim, a restauração seria sempre e unicamente uma simulação.[6]
Nos primeiros trinta anos da história do cinema, a situação era talvez ainda mais radical. Os primeiros processos de colorização, como a pintura manual ou a viragem e tintagem [7], se davam somente nas cópias e geravam cópias diferentes umas das outras. Por serem processos custosos, alguns filmes eram lançados em cópias coloridas e outras em preto-e-branco. Outras vezes cópias do mesmo filme podiam trazer ainda mais diferenças, inclusive de enquadramento. Os primeiros negativos não suportavam que fossem feitos números tão elevados de cópias antes de se danificarem (não existindo ainda os materiais intermerdiários) e, desse modo, nos anos 1920, diversas produções eram filmadas simultaneamente com duas câmeras, dando origem a dois negativos ligeiramente diferentes, sendo um deles geralmente destinado à exploração comercial no exterior [8]
Cópias de primeira geração (como as tiradas diretamente do negativo) tem uma qualidade maior e, até hoje, são feitas em ocasiões especiais, como na sessão de estréia de um filme ou em exibições em Festivais de Cinema.
Para citar outro exemplo, mais próximo de nosso contexto, durante a ditadura militar no Brasil a censura frequentemente exigia cortes de determinadas cenas nas cópias que seriam exibidas nas salas de cinema e, somente em casos extremos, eram feitos cortes no próprio negativo. Assim, podem existir cópias de um longa-metragem sem cortes (respeitando a integridade da obra conforme criada pelos seus realizadores) e outras com tais cortes (com uma informação essencial sobre a forma no qual o filme foi visto pelas platéias na época de sua exibição), diferenças fundamentais na ausência, nem um pouco rara, dos negativos dos filmes. [9]
Hoje existe um consenso de que quando se realiza a restauração de um filme, o objetivo geralmente é criar um novo material o mais próximo possível à forma no qual o filme foi visto originalmente em seu lançamento. O primeiro e mais importante passo nesse processo é justamente a localização e verificação do estado de todos os materiais existentes dessa obra que possam auxiliar na criação de uma versão de como essa obra existiu e foi apreciada em determinada época.
Ou seja, a visão que temos da obra vai sempre depender da cópia que assistimos ou do material que lhe deu origem, sendo este um universo que comporta inúmeras diferenças (clássicos como Metropolis, de Fritz Lang, ou Encouraçado Potenkim, de Serguei Eisenstein, foram exibidos em versões diferentes em vários países ao longo dos anos). Mesmo falando apenas de longas-metragens de ficção – a parcela reduzida e mais óbvia do que entendemos como cinema – muitas vezes o que assistimos é uma dentre várias versões possíveis da mesma obras. Não é nem um pouco raro que as cópias as quais temos acesso representem apenas uma pálida e incompleta versão do do que teria sido a obra em dado momento. Assim,  o historiador – ou o crítico mais comprometido – deveria sempre, ao escrever e analisar as caracterísicas textuais de uma obra cinematográfica, apontar qual foi a cópia que teve a oportunidade de assistir. Além disso, as origens de uma cópia são as mais diversas e atribuladas.

Que cópia é essa?
Nem sempre, ou raramente, todos ou os melhores materiais da maioria dos filmes realizados até os anos 1940 e 1950 foram preservados, o que inevitavelmente afeta as cópias hoje disponíveis deles. O cinema era encarado mais ou menos como o comércio de gelo [10]  – a exploração do lucro imediato de um produto efêmero – e um filme antigo era quase tão desprezado como o jornal do dia anterior. Sob uma visão industrial, a ampla consciência de que uma obra cinematográfica poderia continuar gerando dividendos após esgotada sua carreira comercial inicial nas salas de cinema se consolidaria apenas com o surgimento da televisão, sendo reforçada posteriormente com os lucros advindos da venda dos direitos para o mercado de vídeo doméstico e TV à cabo nos anos 1970. O caso da televisão – que, em termos de preservação de seus produtos repetiu os mesmos erros do cinema – também não é muito distinto, pois a Rede Globo, por exemplo, só atentou para a necessidade de preservar todos os capítulos de uma novela (antes guardava apenas os primeiros, alguns do meio e os finais, apagando o resto) quando passou a comercializá-las para redes estrangeiras, nos anos 1980. Hoje, com as inúmeras janelas de exibição – DVD, blu-ray, internet, celular – a noção de que um acervo representa um ativo comercial já está mais do que disseminada, ao lado de uma consciência de viés cultural igualmente mais difundida que defende a necessidade de preservação do que passou a ser encarado como o patrimônio audiovisual. [11]
Os materiais que sobreviveram dos filmes de ontem são responsáveis pela visão e audição que temos – ou não – das obras hoje. Praticamente nada sobreviveu dos primeiros dez anos de filmagens realizadas no Brasil e muito do que ainda vêmos do cinema silencioso brasileiro são fragmentos, copiões, cópias incompletas ou muito danificadas. A associação entre filmes antigos e filmes riscados, sujos e tremeluzentes é baseada no geralmente precário estado físico dos materiais que chegaram aos dias de hoje, criando uma concepção equivocada sobre a qualidade, por exemplo, fotográfica dessas obras. [12] A noção de um cinema antigo exclusivamente preto-e-branco também se consolidou devido à perda das muitas cópias coloridas que circulavam amplamente e a rara exibição das que ainda existem. Num outro caso mais próximo, várias chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950 só sobreviveram em cópias muito danificadas. Desse modo, devido à perda de seus negativos, os novos materiais que podem ser feitos hoje dessas obras apresentam sempre graves defeitos no som e imagem que não existiam originalmente, ampliando um antigo preconceito a respeito da qualidade técnica destes filmes.
Esses equívocos também estão ligados não somente aos materiais que sobreviveram, mas também à forma como eles são disponibilizados e vistos. Muitas pessoas tem a impressão de que nos filmes silenciosos tudo era acelerado. As pessoas não andavam, mas pareciam correr! Obviamente que os filmes não eram assim, mas isso se deve à uma exibição incorreta deles hoje, sobretudo quando popularizados através da televisão ou vídeo. A velocidade padrão das câmeras e projetores durante o cinema silencioso variava muito, de 16 a 24 quadros por segundo, mas com o advento do som, a velocidade se estabeleceu definitivamente em 24 quadros por segundo. Ao exibirem esses materiais numa velocidade diferente da qual eles foram concebidos, o público associa à obra uma característica decorrente da incorreta exibição daquele material.
O mesmo ocorre com filmes exibidos na televisão em formatos diferentes daqueles para os quais foram criados. Filmes feitos em formatos panorâmicos (ou seja, “retangulares”, como 1,85:1, ou o scope tradicional, 2,35:1) são mutilados para serem exibidos na TV, seja a convencional (1,33:1 ou 4x3), ou as digitais e ditas wide-screen (16x19 ou 1,78:1) e até mesmo para serem lançados em DVD. Na televisão, através do simples corte lateral da imagem ou do panning (criando um movimento panorâmico no que antes era um plano estático), subjuga-se a imagem ao meio, mas sempre buscando tornar invisível ou imperceptível essa alteração. Para voltar à analogia com a pintura, corta-se o quadro para adaptá-lo à moldura. Alterações no formato continuam sendo frequentes nas salas de cinema (em muitos casos, a visão do boom  - o microfone – nos filmes está mais associado a erros no formato de projeção do que dos filmes), e tem alimentado um recente debate dos críticos brasileiros a respeito das imperfeições e da baixa qualidade do padrão de projeção digital que está se impondo no Brasil. [13]
Ainda é importante tocar num outro aspecto, que é o suporte do material. Os arquivistas audiovisuais (além dos cinéfilos frequentemente acusados de purismo) defendem sempre a conservação e também, quando possível, o acesso a uma obra no suporte original no qual ela foi concebida. Ou seja, um filme realizado em película 35 mm deve ser preservado nessa suporte e bitola e sua visão deveria se dar num material nessas mesmas especificações. Por diversas questões, inclusive de custos, muitos filmes sobreviveram apenas em bitolas 16 mm, resultando na qualidade inferior dos materiais que podem ser criados – e consequentemente vistos – a partir deles
Essa questão tem vários complicadores, pois muitas vezes os suportes tem sua produção descontinuada. Até 1950, o cinema utilizava como suporte películas de nitrato de celulose – que tinham um brilho e transparência excepcionais, mas que eram quimicamente instáveis e, se mantidas em condições inadequadas, eram perigosamente inflamáveis. Com o desenvolvimento do triacetato de celulose (ou simplesmente acetato), o nitrato deixou de ser fabricado. Desse modo, não só pelos risco de incêndio, mas por quase sempre tratar-se de materiais de primeiras gerações e, por isso, destinados à preservação, hoje praticamente não se exibe mais cópias em nitrato, não sendo possível também fabricar novas cópias nesse suporte.
Entretanto, a diferença entre o nitrato e o acetato é muito menos acentuada do que entre a película cinematográfica e formatos eletrônicos ou digitais. Há sempre uma perda envolvida ou, pelo menos, uma diferença significativa, mesmo quando falamos de arquivos digitais de alta qualidade (como os que obedecem o padrão DCI).[14]
Porém, a indústria segue em sua “renovação” tecnológica e hoje já se prevê um futuro em que a produção da própria película cinematográfica será descontinuada – seguindo o que aconteceu com a fotografia still, substituida quase totalmente pela fotografia digital. Diante desse panorama, há quem avente a possibilidade de num cenário futuro em que, com o fim da fabricação de filme virgem e dos laboratórios e não sendo mais possível fazer novas cópias em película cinematográfica, todos esses materiais nesse suporte venham a se tornar objetos raros. Nesse sentido, uma boa cópia 35mm de um clássico do cinema – um objeto não mais possível de ser reproduzido ou recriado – passaria a ser cercada dos mesmos cuidados com que se trata um quadro de um mestre da pintura, como a Mona Lisa.

A dependência tecnológica
Diferentemente de um quadro ou escultura, por exemplo, qualquer material audiovisual necessita de uma mediação tecnologica para que a obra possa ser desfrutada por qualquer pessoa. Mesmo que seja possível observar as imagens fotográficas de cada fotograma de uma película cinematográfica a olho nu, a ilusão de movimento, a representação visual ampliada para a qual as imagens foram pensadas, além da própria audição do som, só podem ser alcançadas quando a obra passa por uma máquina como o projetor cinematográfico. De forma mais acentuada ainda, isso também se dá com as fitas magnéticas ou os discos óticos, em que nem essa “pista” é possível. Não é o caso da Mona Lisa de Da Vinci, voltando ao nosso exemplo anterior, que qualquer pessoa pode vê-la no Louvre, ou, caso ela seja emprestada a outro museu, em qualquer outro lugar. O “acesso ao conteúdo” da pintura é imediato, automático.
 Já os materiais e, consequentemente, uma obra audiovisual só é desfrutada através de uma mediação mecânica. A inexistência desse equipamento – devido à sua obsolescência tecnológica e à descontinuidade de sua fabricação industrial – torna um material “inassistível” e, logo, compromete o próprio acesso e, assim, a existência, dessa obra. Um exemplo são filmes realizados em bitolas (termo que se refere à largura da película) diferentes da que viria a se tornar o padrão da indústria (como o 28 mm) ou se tornariam obsoletas (como o 9,5 mm), ou com tipos de perfurações distintas dos padrões (os filmes dos irmãos Lumière, por exemplo, possuíam duas perfurações redondas por fotograma). Nesses casos, a obra só pode ser recuperada através da contínua duplicação deste material para outro formato ou suporte coerentes com os padrões correntes da indústria. No caso do vídeo e dos inúmeros suportes utilizados nas primeiras décadas da televisão (fitas de 1 polegada, 2 polegadas, U-matic, entre muitas outras) a manutenção da operacionalidade dos aparelhos é ainda mais complicada. A inevitável migração das fitas VHS – cujos players deixaram de ser fabricados no país há poucos anos – é um exemplo ainda mais próximo desse processo.
Por isso, a questão da obsolescência tecnológica é essencial tanto  em relação à fabricação dos suportes, como também aos aparelhos específicos que permitem o acesso ou reprodução de determinados materiais. Enquanto no caso das artes plásticas é necessário apenas se preocupar com a preservação do objeto (que equivale à obra, como vimos), no cinema é necessário também manter o equipamento necessário à sua visão, ou, pelo menos, recriar (ou emular) aparelhos que permitam a sua duplicação para os padrões atuais.
Se não há nada que atrapalhe diferentes pessoas verem da mesma forma a Mona Lisa, no caso do cinema essa mediação pode fazer com que um mesmo material seja visto de formas distintas. Aqui nos referimos, por exemplo, a erros de projeção das cópias, que podem afetar o som, o foco, a luminosidade, o enquadramento, enfim, quase tudo relacionado ao que vemos na tela. Ou seja, mesmo quando você possui uma boa cópia de um filme (uma cópia nova, processada com qualidade e a partir de um material em igualmente bom estado e de uma geração inicial), seu acesso à obra pode ser comprometido por essa mediação, por interferências não relacionadas à integridade do material.
Infelizmente, no Brasil temos graves problemas nos dois campos. Por um lado, há uma despreocupação cada vez maior em que se projetar cópias de boa qualidade e em seus formatos originais, exibindo com assustadora frequencia filmes em cópias em DVD de baixa qualidade, por facilidade e economia, mesmo em Cinematecas, Centros Culturais e em mostras e festivais que deveriam ser mais rigorosos nesses quesitos. Por outro lado, mesmo quando se dispõe de boas cópias e nos suportes originais, a projeção da quase totalidade das salas de cinema está longe de um padrão mínimo que permita ao espectador usufruir de toda a potencialidade da obra expressa naquele material.
Entretanto, sabendo mais sobre o que está sendo projetado e como está sendo projetado, colocando em questão uma equivalência automática entre obra e material, indagando sobre a origem e o estado das cópias exibidas, estaremos fazendo justiça ao nosso interesse e paixão pelo cinema, tornando-nos mais exigentes sobre como essas obras nos estão sendo apresentadas para melhor desfrutarmos delas.





1 - HUSTON, Penelope. Keepers of the frame: the film archives. Londres: BFI, 1994.
2 - No manifesto de Ricciotto Canudo que consagrou a expressão “sétima arte” o cinema era visto como o apogeu e síntese de todas as artes anteriores. Cf. XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978.
3 - Aqui deve ser citado o conceito de “geração”, que se refere à cada passagem da criação de um novo material positivo a partir de um negativo (ou vice-versa), em que há inevitavelmente perda de qualidade em qualquer suporte cinematográfico ou eletrônico. Como para uma cópia dar origem a outra cópia são necessárias pelo menos duas gerações, os materiais mais próximos às primeiras gerações (ou seja, aos negativos originais ou aos materiais intermediários que deram origem à primeira geração de cópias) tem melhor qualidade e seriam os mais apropriados para serem preservados. Uma grande vantagem da tecnologia digital em relação aos processos analógicos é ausência de qualquer tipo de perda na feitura de cópias.
4 - USAI, Paolo Cherchi. Silent cinema: an introduction. Londres: BFI, 2000, p. 160.
5 - Um caso exemplar é o dos filmes cantantes brasileiros, filão explorado no Rio de Janeiro na primeira década do século XX em que cantores posicionados atrás das telas “dublavam”, ao vivo, os filmes exibidos, geralmente filmagens de operetas populares. Embora tenham sido realizados filmes cantantes brasileiros, esse processo também foi colocado em prática acompanhando a exibição de filmes estrangeiros. Sobre os cantantes, cf. Fernando Morais da Costa. O Som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Sette letras, 2008.
6- FOSSATI, Giovanna. From Grain to Pixel: The Archival Life of Film in Transition. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2009.
7 - Mara uma explicação sumária, ilustrada e em português sobre esses processos, cf. COELHO, Fernanda. Manual de manuseio de películas cinematográficas. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2001.
8 - Cf GARCIA, Alfonso del Amo. Clasificar para preservar. Cidade do México: Cineteca Nacional, 2006.
9 -  Filmes brasileiros os mais diferentes – incluindo os do Cinema Novo, do Cinema Marginal ou da Boca do Lixo – quase sempre eram feitos com poucos recursos e raramente custeavam a feitura de um material intermediário. Nesse caso, todas as cópias eram feitas diretamente do negativo original montado, resultando frequentemente no comprometimento desse material e no consequente paradoxo de que, quanto mais popular o filme fosse (e mais cópias fossem feitas), mais prováveis eram as chances de seus melhores materiais se degradarem pelo excesso de uso.
10 - Analogia citada por Tom Gunning em “Cinema e História”. In: XAVIER, Ismail. Cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
11 -  Um passo fundamental nesse sentido foi a Recomendação para a salvaguarda e preservação das imagens em movimento, adotada pela UNESCO, em 27 de outubro de 1980, data em que passou a se comemorar o dia mundial da herança do audiovisual.
12 - Cf. JEAVONS, Clyde. Imagens em movimento: tema ou objeto. Journal of Film Preservation, Bruxelas,  n. 73, 2007. Disponível no blog.

13 - A partir de discussões em listas da internet, um grupo de críticos escreveu e divulgou, em outubro de 2009, uma “Carta aberta aos responsáveis pela projeção digital no Brasil”, acompanhado de uma lista de assinaturas.
14 - Sobre o padrão DCI, cf. WALSH, David. Uma revisão do cinema digital. NFSA Journal, Camberra, v.2, n.1, 2007. Disponível no blog.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Oficina em São Paulo: 30 set. 2012

Nesta quinta-feira, dia 30/09, das 14 às 20h, darei uma oficina no SESC Vila Mariana intitulada "Conhecer Para Preservar: Indagações sobre a História e Memória das Imagens em Movimento".
Mais informações aqui.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas


[Texto publicado originalmente no catálogo da 7.CineOP - mostra de cinema de Ouro Preto, realizada em junho de 2012]

A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas [1]

por Rafael de Luna Freire
Os anos 1960 testemunharam o apogeu do mais celebrado movimento do cinema brasileiro, o Cinema Novo. A década foi o período de afirmação do “cinema brasileiro moderno”, que, em sua “atualização estética”, nas palavras de Ismail Xavier (2001, p.18), “acertou o passo do país com os movimentos de ponta de seu tempo”.
Como Glauber Rocha propunha como programa em sua Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), os filmes realizados naquela década por jovens críticos e intelectuais alteraram o estatuto do cineasta na cultura brasileira, colocando-o no mesmo nível de respeito e consideração das principais realizações literárias, teatrais e musicais contemporâneas. Naturalmente, a crítica – e uma historiografia produzida essencialmente por críticos e cineastas – consagrou esses filmes como os maiores representantes da nossa cinematografia, merecendo, a partir daí, quase um monopólio de atenção e celebração.
Os filmes do Cinema Novo, porém, não fugiram à regra histórica do cinema brasileiro e, apenas algumas décadas após serem realizados, também sofreram as conseqüências da degradação que apenas ações sistemáticas, contínuas e integradas de preservação poderiam evitar. Assim, obras de cineastas consagrados foram recentemente objetos de projetos de restauração de grande porte e extrema visibilidade.
Entretanto, é interessante pensar nesses projetos dentro do contexto mais amplo da atividade cinematográfica nos últimos anos. Com o modelo de financiamento da Embrafilme em crise ao longo de toda a década de 1980, o Governo Collor abraçou o modelo neoliberal, extinguindo da noite para o dia os principais órgãos federais de cultura. Os governos Itamar e FHC, diante da mobilização resultante da queda acentuada na produção cinematográfica decorrente do fim de um modelo sem a substituição por outro, consolidaram as leis de incentivo que permitiam que os filmes fossem financiados por empresas privadas e estatais através de recursos oriundos de renúncia fiscal. O “mercado” passava a determinar quais projetos seriam ou não financiados, resultando na eleição de novos critérios (tão questionáveis quanto os anteriores) que passaram a reger a escolha dos contemplados com verbas.
Foi nesse contexto que surgiram projetos como os de restauração da obra de Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, caracterizados, em suas devidas proporções, pela escolha de nomes de apelo e projetos de grande porte que dariam visibilidade à empresa patrocinadora – no jargão, filmes que “agregariam valor” à marca. Exposição na mídia garantida pelo lastro cultural das obras (clássicos do cinema nacional), o recurso à tecnologia de ponta (restauração digital), cuidadoso embasamento profissional (apelo a consultores nacionais e internacionais), possibilidade de acesso em novos suportes e meio (projeção digital e DVD) caracterizaram esses projetos.
A perspectiva “autorista” – ainda dominante em nossa crítica e academia – orientou também a seleção dos filmes da década de 1960 que foi objeto de ações de preservação no século XXI: aqueles incluídos na filmografia de determinado “autor”. Objetivos possivelmente mais técnicos – como a escolha das obras cujos materiais estivessem em pior estado de conservação, ou seja, os filmes que corressem maiores riscos de se perder – não cabiam neste cenário. O que pesava era haver agentes organizados para captar os recursos (as herdeiras de Glauber e Joaquim são, ambas, cineastas e produtoras) e a possibilidade de oferecer um bom “retorno” ao patrocinador. Como colocou Marco Dreer Buarque (2011), a restauração do Cinema Novo foi uma “ação das famílias”.
As Cinematecas que poderiam utilizar outros critérios na seleção de projetos de restauração não o fizeram por diversos motivos. A Cinemateca do MAM-RJ, em grave crise, teve dificuldades de dar continuidade a esse trabalho (seu principal funcionário, Chico Moreira, foi para a Labocine, em 2000). Em contraste, a Cinemateca Brasileira (SP) viveu o momento de maior pujança financeira de sua história, mas praticamente adotou os mesmos critérios do mercado, participando, sobretudo, de projetos que conseguissem captar seus recursos independentemente, incluídos a feitura de novas cópias de difusão por produtores de mostras e festivais, ou editais públicos patrocinados pela Petrobrás.
Não surpreende, portanto, que o cinema da década de 1960 seja, atualmente, uma painel de contrastes gritantes em termos da preservação. Por um lado, os filmes de Glauber, Joaquim Pedro e, também, os de Leon Hirszman (projeto iniciado em 2005) e Nelson Pereira dos Santos (projeto que se arrasta desde 2001, pelo menos) têm sido alvo de alentados projetos de restauração. Trata-se, grosso modo, da lei do mercado: dos filmes que há maior “demanda” por bons materiais em circulação, resulta maior “oferta” de cópias novas ou restauradas.
A filmografia dos anos 1960 de outros cineastas do Cinema Novo, porém, não receberam a mesma atenção, seja por seus materiais estarem devidamente preservados e/ou mais acessíveis, ou por eles mesmos (ou seus representantes) não terem conseguido viabilizar a feitura de projetos ou seu financiamento nos mesmos moldes dos já citados. Talvez eles tenham apenas chegado tarde, após o mercado ter “saturado”. Ironicamente, os projetos de restauração deixaram de ser novidade ao mesmo tempo em que não se transformaram em rotina, pois alguns estão interrompidos ou não tiveram continuidade, muitos nem chegaram a começar, e pouquíssimos estão em andamento.
Se Walter Lima Júnior teve seu primeiro longa-metragem, Menino de Engenho (1965) restaurado em ação do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB), cinema-novistas menos célebres receberam muito menos atenção ainda. O maior exemplo da insensatez dessa lei da selva de “cada um por si” é o fato do longa-metragem em episódios Cinco Vezes Favela (1962) não poder, atualmente, ser visto integralmente em uma boa cópia, com exceção dos curtas Couro de gato (Joaquim Pedro de Andrade) e Pedreira de São Diogo (Leon Hirszman). De Miguel Borges, diretor do episódio Zé da Cachorra, não se pode ver atualmente os importantes longas Canalha em crise (1965) ou Perpétuo contra o Esquadrão da Morte (1967).
A possível conseqüência da permanência de um cenário tal como o esboçado é a impossibilidade de termos uma visão mais nuançada e menos “oficial” da década de 1960, lembrando que o Cinema Novo conquistou no campo cinematográfico brasileiro hegemonia não só cultural, mas também política, especialmente a partir dos anos 1970. Se ao invés de nos pautarmos pelos diretores, tentássemos traçar um quadro dos principais produtores dos anos 1960, veríamos um quadro bastante incompleto com muitas obras que demandam maior atenção, bastando pensar na produção de Jarbas Barbosa (J. B. Produções), Roberto Farias (R.F. Farias) e Jece Valadão (Magnus Filmes), sócios da distribuidora Ipanema Filmes.
Nos anos 1960, Jarbas se dedicou em grande parte a chanchadas tardias e filmes musicais com astros da Jovem Guarda e, de títulos como Carnaval Barra Limpa (J. B. Tanko, 1967) com fotografia cinemanovista de Dib Lutfi, ou Juventude e ternura (Aurélio Teixeira, 1968), estrelado pela “ternurinha” Wanderléa, existem apenas os negativos originais. Roberto Farias, embora sua importância venha sendo resgatada recentemente, também tem grande parte dos filmes que dirigiu e produziu sem cópias de circulação à altura.
Jece Valadão é um caso mais trágico. Genro de Nelson Rodrigues, as adaptações do “anjo pornográfico” que o eterno cafajeste produziu passaram os últimos anos sem circular pelo fato dos materiais únicos e bastante deteriorados não terem merecido nenhuma ação efetiva. Consequentemente, do primeiro ciclo “rodriguiano” no cinema praticamente só se conhece Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e A falecida (Leon Hirszman, 1965).[2]
Valadão também produziu filmes que integram a vasta lista de títulos dos anos 1960 considerados perdidos, incluindo um melodrama-cômico-político História de um crápula (Jece Valadão, 1965), a cinebiografia da cantora Dolores Duran A noite do meu bem (Jece Valadão, 1968), e um extraordinário filme em episódios intitulado Os viciados (Braz Chediak, 1968). Neste, Jece Valadão interpretava um viciado em maconha que fazia com que sua mãe fumasse baseados sem perceber, aproveitando seu barato para ter relações incestuosas com ela... Infelizmente, desse exemplar de drama sensacionalista edipiano não temos mais nenhuma imagem ou som (cf. FREIRE, 2011, p. 113-6).[3]
Neste momento, deve ser feita uma observação: Apesar da enorme importância do Canal Brasil na difusão do cinema brasileiro, a inclusão de alguns filmes raros dos anos 1960 em sua programação tem gerado a falsa sensação de que esses títulos estão devidamente preservados, quando, na verdade, trata-se, em geral, somente da telecinagem dos negativos originais para a feitura de uma cópia em vídeo. As matrizes continuam no mesmo estado, sendo gerado apenas um material de difusão num suporte de qualidade inferior ao original. O caso da exibição na TV paga e do lançamento em DVD dos filmes produzidos por Herbert Richers, como a comédia Os cosmonautas (Victor Lima, 1962) ou o policial Os raptores (Aurélio Teixeira, 1969), é exemplar, pois partiram das matrizes em vídeo telecinadas pelo menos dez anos antes! Sob essa questão, vale citar ainda o projeto de “restauração” dos filmes de Arnaldo Jabor, que resultaram apenas em versões (alteradas em relação aos originais) no formato DVD. [4]
O chamado “cinema comercial” dos anos 1960 talvez represente a principal lacuna das ações de preservação, mantendo no esquecimento obras que possivelmente poderiam ser reinterpretadas e reavaliadas pelas novas gerações. Do início da década já há duas grandes lacunas, a do filme policial Mulheres e Milhões (Jorge Ileli, 1961) – retorno ao gênero do mesmo diretor de Amei um bicheiro – e da comédia Os mendigos (Flávio Migliaccio, 1963), que trazia em seus créditos vários integrantes dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). A compreensão do cinema brasileiro de gênero é sumamente prejudicada pela “morte silenciosa” de filmes que vão desaparecendo sem alarde, morrendo antes que mais pessoas se interessem por eles. [5]
Além destes, mais conhecidos, há uma série de títulos dos quais não há referência alguma, tais como Sabor de pecado (Mozael Silveira, 1966) – do popular gênero “drama com strip-tease” –, ou os policiais Elas atendem pelo telefone (Duílio Mastroianni, 1962) e Sangue na madrugada (Jacy Campos, 1964). Outros circulam marginalmente em precárias cópias em vídeo (hoje “pirateadas” para DVD), lançadas comercialmente nos anos 1980 ou gravadas da TV aberta nessa mesma época, tais como interessantes policiais Na mira do assassino (Mario Latini, 1967) e Massacre no supermercado (J. B. Tanko, 1968).
Uma questão importante a se salientar é que a vertente mais rica desse “cinema comercial” foi a principal responsável pela realização de filmes brasileiros coloridos nos anos 1960, período quando os negativos a cores eram muito menos propensos à preservação. Nas décadas seguintes, o grave desbotamento das cores dos filmes dessa época provocou acirradas discussões. Exemplos pioneiros do cinema brasileiro colorido como as comédias cariocas de Carlos Hugo Christensen ou filmes do tipo turismo-exótico-erótico-musical como Rio à Noite, Capital do samba (Aloísio T. de Carvalho, 1962), exceções no panorama da época, já que o colorido só se tornaria mais comum que o P&B a partir do final dos 1960, correm muito mais perigo de ser perderem total ou parcialmente. Foi o que aconteceu com o “nordestern” colorido Entre o amor e o cangaço (Aurélio Teixeira, 1965), que sobreviveu incompleto como obra, existindo dele atualmente apenas uma cópia 16 mm e preto-e-branco...
Os arquivos de filmes, em parceria com representantes da sociedade civil (cineastas, pesquisadores, técnicos) precisam ter condições para exercerem posturas ativas na preservação e restauração, permitindo salvar filmes em risco antes deles necessariamente gerarem maior interesse midiático. É caso, por exemplo, de Fábula (Arne Sucksdorff, 1965), extraordinária produção sueca filmada no país, cuja cópia 16 mm feita a partir do contratipo brasileiro nos anos 1990 foi exibida inúmeras vezes nos últimos anos, permitindo o deslumbramento das platéias com um filme praticamente ausente das histórias do cinema nacional e desconhecido da maioria dos cinéfilos. O interesse foi tal que, em 2011, a Cinemateca do MAM, em parceria com o Instituto Moreira Salles, confeccionou uma cópia nova, agora em 35 mm.
As lacunas do cinema dos anos 1960 comportam não somente “curiosidades” como são vistos alguns obscuros filmes de gênero, mas obras fundamentais para a história do audiovisual brasileiro. Um exemplo é A um pulo da morte (dir. Victor Lima, 1969), longa-metragem composto de quatro episódios de série policial 22-2000 Cidade Aberta (1965-1966) originalmente produzida, em 35 mm, por Herbert Richers para a TV Globo. Exemplo histórico de um projeto híbrido feito muitos anos antes das atuais parcerias entre TV e cinema como O auto da compadecida, Os normais, A grande família etc.
Além de filmes como esses, obras de grande sofisticação que mereceram elogios da crítica quando foram lançados nos anos 1960 permanecem órfãos. Podemos citar, por exemplo, os dois longas-metragens de Gerson Tavares, Amor e desamor (1966) e Antes o verão (1968). O primeiro era uma história de amor entre quatro paredes passada na então jovem Brasília. Já o segundo, adaptação do romance homônimo de Carlos Heitor Cony, é um belíssimo drama filmado em Cabo Frio, que, em película, sobreviveu numa única cópia 35 mm (já avinagrada), correndo, portanto, risco de se perder caso não sejam feitos novos materiais de preservação. Inspirado pelo cinema europeu de viés existencialista (Antonioni, Lelouch, Bergman), protagonizado por grandes atores (Leonardo Vilar, Jardel Filho, Norma Bengell), e distante tematicamente dos filmes mais engajados do Cinema Novo, a obra de Gerson Tavares, um cineasta de destaque dos anos 1960, é hoje totalmente desconhecida das platéias.
Se por questão de espaço, esse artigo concentrou-se apenas na produção ficcional de longas-metragens, muito poderia ser dito, por exemplo, da preservação dos curtas-metragens dos anos 1960. Do importante conjunto de filmes participantes das diversas edições do Festival JB-Mesbla de Cinema Amador, um acervo de cópias 16 mm em diferentes estados de conservação, apenas alguns poucos curtas de diretores mais reconhecidos (como Documentário, de Rogério Sganzerla), mereceram algum tipo de intervenção.
Como tentamos mostrar, as lacunas na preservação – e no conhecimento – do cinema brasileiro dos anos 1960 são muitas. Caso um conjunto mais amplo e consciente de ações não seja efetivado, a ignorância sobre o panorama dos filmes realizados nesse efervescente período – uma década de obras tão diversas e variadas quanto todas as demais – não só se manterá, como em algum tempo dificilmente poderá ser revertida.

Referências:
BUARQUE, Marco Dreer. A experiência com restauração de filmes no Brasil. Mosaico, Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV, v. 3, n. 5, 2011.
FREIRE, Rafael de Luna. Incomodando quem está sossegado: a obra de Plínio Marcos no teatro, literatura e cinema. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
SOUZA, Carlos Roberto de. A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil. Tese de Doutorado, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.




[1] Aradeço a todos os colegas que compartilharam algumas das informações utilizadas neste artigo.
[2] Asfalto selvagem (J. B. Tanko, 1964), que permanece absolutamente desconhecido, tem os negativos de imagem ainda em bom estado, mas os negativos de som irrecuperáveis. A Cinemateca do MAM possui uma cópia 16 mm. Bonitinha, mas ordinária (J. P. de Carvalho, 1963), já contratipado, teve cópia nova 35 mm feita para a mostra “Raros e clássicos do cinema brasileiro”, em 2010. Já Engraçadinha depois dos trinta (J. B. Tanko, 1966) tem seus negativos de som em avançado estado de degradação. Com uma fantástica atuação de Fernando Torres e do restante do elenco, este filme merece ser redescoberto.
[3] É válido notar o interesse despertado na nova geração de críticos por O matador profissional (Jece Valadão, 1969), exibido em cópia nova na já citada mostra “Raros e clássicos do cinema brasileiro”.
[4] O lançamento em DVD é sempre importante em termos de difusão, mas o vídeo analógico e o digital não são os melhores suportes de preservação para filmes originalmente realizados em película, como os dos anos 1960.
[5] Carlos Roberto de Souza (2009, p. 219-20) relatou que, em 2001, chegaram à Cinemateca Brasileira os negativos originais de Mulheres e Milhões em estado avançado de degradação, com a emulsão se desprendendo do suporte durante a inspeção do primeiro rolo. Um trecho do filme (o da cena do roubo ao cofre) pode ser visto no documentário de compilação Panorama do cinema brasileiro (Jurandyr Noronha, 1968).

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Artigo sobre antigas salas de cinema

Já está disponível na internet, no site do AGCRJ, o quinto número da Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, de 2011, no qual publiquei o artigo O 'conforto moderno': a refrigeração nas salas de cinema do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX.
Para quem se interesse pela memória das salas de cinemas, é uma dica.