terça-feira, 17 de novembro de 2015

Site da ABPA

A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) já está com seu site online e funcionando. Não deixem de visitar: http://www.abpreservacaoaudiovisual.org

Reportagem e entrevista sobre preservação

O site Cultura e Mercado publicou recentemente uma reportagem intitulada "Pelo patrimônio cinematográfico", sobre a preservação audiovisual no Brasil. O mesmo site também fez uma entrevista comigo a respeito do tema, no âmbito do projeto Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares, intitulada "Preservar para não ter que restaurar".

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos e Sonoros

Faço parte, desde sua criação, da Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos e Sonoros (CTDAIS) do Conselho Nacional de Arquivo (Conarq). A Câmara Técnica possui um site e já desenvolvemos alguns trabalhos. Um deles foi um glossário, ainda em sua primeira versão, mas que pode ser bastante útil para estudantes e profissionais, principalmente da área de arquivologia que se interessem pelo universo audiovisual. O glossário está nesse endereço: http://www.documentosaudiovisuais.arquivonacional.gov.br/media/glossario/glossario_ctdais.pdf

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

projeto Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares





Estive envolvido pela primeira vez numa restauração de filme ao coordenar o projeto "Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares", realizado através de edital da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. Mais do que restaurar um longa-metragem e digitalizar vários outros, o projeto tinha a intenção de resgatar a obra do cineasta Gerson Tavares. Grande parte do projeto - incluindo a restauração de "Antes, o verão" (1968) - foi apresentada pela primeira vez na 10a CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto. Depois disso, o filme já foi exibido no Cine São Luiz, de Fortaleza, e no Festival CineMúsica, de Conservatória. Em breve apresentaremos o projeto completo no Rio de Janeiro.
Enquanto isso, reproduzo aqui dois textos publicados no catálogo da CineOP, por conta da estreia do projeto.
Mais informações podem ser acessadas no site criado especialmente para o projeto: http://www.telabrasilis.com.br/gersontavares 
Rodrigo Tavares (filho de Gerson), Hernani Heffner, Rafael de Luna e Chico Moreira

Relato sobre o projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares


Por Rafael de Luna Freire, professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense e idealizador e coordenador do projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”.

Uma especificidade deste projeto em relação à maioria das iniciativas de restauração de filmes realizadas nos últimos anos no Brasil é o fato dele ter sido proposto por alguém que era simplesmente um espectador da obra de Gerson Tavares. Enquanto os mais conhecidos projetos de restauração da obra de cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman foram “ação das famílias”, conduzidas pelos herdeiros desses cineastas[1], eu não tenho parentesco algum com Gerson Tavares e nem sequer o conhecia pessoalmente quando comecei a elaborar este projeto.
Minha relação com a obra de Gerson Tavares se iniciou quando assisti à exibição de uma cópia 35mm de Antes, o verão dentro da mostra intitulada “Raros e esquecidos”, realizada na Cinemateca do MAM em 2004. Além de ter ficado impressionado com o filme, notei na sessão um grupo de senhores que cochicharam ao longo de toda a projeção. Somente descobri que se tratava do próprio diretor que tinha ido à Cinemateca rever seu filme com amigos quando, algum tempo depois, Gerson procurou o conservador-chefe da Cinemateca, Hernani Heffner, surpreso pelo arquivo ter uma cópia de seu segundo longa-metragem. Ele revelou que os negativos de Antes, o verão não mais existiam: ele mesmo os havia destruído. Gerson deixou com Hernani seus telefones – ele morava em Cabo Frio, na Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro – e trouxe posteriormente algumas latas de curtas-metragens que ele ainda guardava em sua casa.
Assim, ao mesmo tempo em que foi desenvolvido por um espectador, o projeto de restauração de Antes, o verão foi concebido de dentro de um arquivo de filmes, e não de uma produtora. Foi por trabalhar na Cinemateca do MAM que eu descobri que a sobrevivência de Antes, o verão dependia das duas únicas cópias do acervo da instituição (que imediatamente saíram de circulação, sendo elevadas a matrizes de preservação). E foi na Cinemateca do MAM que, mais tarde, descobri que aquelas duas cópias únicas haviam começado a “avinagrar” – isto é, a emitir o odor de ácido acético que caracteriza a entrada definitiva de materiais em suporte plástico de triacetato de celulose no estágio mais avançado de degradação.[2]
A oportunidade de efetivamente fazer algo para salvar da destruição silenciosa um filme praticamente esquecido que tinha me cativado tanto surgiu somente em 2012, com o edital “Preservação e Conservação da Memória Artística Fluminense”, da Secretaria de Estado de Cultura do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Quando tive a ideia de propor um projeto para restaurar Antes, o verão, entrei em contato com Gerson Tavares por telefone. Foi a primeira vez que nos falamos, e a restauração só deixou o campo das intenções porque o “cineasta aposentado” recebeu com entusiasmo a ideia, apoiando-a generosamente desde o início. Inscrito através da Associação Cultural Tela Brasilis, o projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares” destinava-se à restauração do longa-metragem Antes, o verão, mas acabou por abarcar praticamente toda a filmografia do cineasta. O projeto foi selecionado no edital com o orçamento de R$ 247.068,48.
O objetivo primordial do projeto era garantir a salvaguarda do segundo longa-metragem de Gerson Tavares e permitir o acesso a ele de forma segura e qualificada. Para isso, seria feito um internegativo 35mm de Antes, o verão que passasse a servir como matriz de preservação da obra, produzindo, a partir dele, cópias de exibição no suporte original (35mm) e em formato digital (DCP e DVD). O primeiro passo já tinha sido dado ainda na elaboração do projeto: consultar diferentes arquivos para verificar a existência de outros materiais além das duas cópias da Cinemateca do MAM. Infelizmente nenhum outro material foi encontrado.
O segundo passo, dado após a divulgação do resultado do edital, foi comparar aquelas duas cópias definitivamente únicas de Antes, o verão, nomeadas como cópias A e B. Na Cinemateca do MAM, ambas foram projetadas rolo a rolo, com o devido cuidado. Além de mim, coordenador do projeto, convidei Hernani Heffner e a conservadora Natália de Castro Soares para acompanharem a projeção. Ambas as cópias tinham diversos riscos no suporte e na emulsão, emendas não originais, fungos e manchas de óleo. Entretanto, a cópia A estava em melhor estado físico, embora sua qualidade fotográfica fosse inferior. Já a cópia B estava mais deteriorada e seu encolhimento era tão acentuado que um dos rolos sequer pôde ser projetado, mas apresentava uma qualidade fotográfica superior. Essa cópia B também possuía fotogramas a mais que a cópia A, sobretudo no início e final de cada rolo.
Enviadas para a Labocine, onde a restauração seria realizada e conduzida por Francisco Sérgio Moreira (Chico), as duas cópias foram lavadas em ultrassom e comparadas mais detalhadamente no sincronizador. A estratégia então escolhida foi a de privilegiar a cópia A, compensando suas lacunas com trechos da cópia B. Segundo Chico, o contraste mais elevado da cópia A em comparação com a B poderia ser compensado no processo de copiagem e revelação, enquanto o encolhimento da cópia B era um problema mais grave de ser contornado.
Entretanto, uma surpresa foi verificada nessa comparação das duas cópias. Apesar de apresentarem durações próximas, o rolo 7 de cada uma delas era bastante diferente um do outro, revelando alterações na montagem e banda sonora.  A primeira suspeita era a ação da censura, uma vez que se tratava da sequência em que Luís (Jardel Filho) corta o maiô de Maria Clara (Norma Bengell), havendo planos de nudez da personagem. Entretanto, a numeração de borda era diferente, revelando não apenas o corte ou duplicação de planos, mas o uso de outros trechos do negativo com nova mixagem.
A descoberta de documentação sobre o processo de censura do filme na sede do Arquivo Nacional de Brasília confirmou a suspeita. Uma carta direcionada ao Chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, assinada pelo próprio Gerson Tavares, desvendou a questão:

Conforme nossos entendimentos, estou enviando a V.S. [...] a “cena do maiô” do meu filme “ANTES, O VERÃO” inteiramente remontada. Depois de 10hs de trabalho na moviola, cheguei a uma conclusão, podendo agora apresentar a V.S. a cena censurada, com nova montagem, na qual V.S. constatará o cumprimento total de minhas promessas. Nela não há nenhuma imagem imprópria para menores de 18 anos, tendo eu eliminado todas as imagens apontadas por V.S. (partes íntimas nuas e contato de Jardel em partes nuas da mulher) e conservado, à risca, as imagens que V.S. me permitiu. Usei outras imagens, que não faziam parte da cena, para poder completá-la e dar um mínimo de “clima”.[3]

Portanto, a cópia A apresentava a versão censurada – trazendo, inclusive, a cartela de censura obrigatória em seu início –, enquanto a versão anterior à censura seria a da cópia B, mais encolhida e provavelmente exibida em sessões para convidados. Uma crítica ao filme em seu lançamento esclarecia ainda mais a situação:

A inaceitável intervenção da censura também pesou no prato adverso da balança. Ainda assim, a remontagem efetuada pelo cineasta com grande habilidade não nos permite vislumbrar onde sua obra foi violentada. A cena carnal da reaproximação entre os personagens de Norma e Jardel, no terraço batido pelo vento, foi considerada magnífica por observadores que tiveram acesso à versão integral, mas, após a remontagem realizada com mãos de expert, mostra-se (ainda) um atestado da sensibilidade de Gerson Tavares.[4]

Qual deveria ser a versão utilizada na restauração? Em conjunto, eu e Chico decidimos pelo rolo 7 da “versão integral” (cópia B). Isso caracterizaria nosso projeto como uma “reconstituição”[5] ao invés de uma “restauração”, no sentido de resgate da forma como o filme foi visto publicamente em seu contexto original?[6] Afinal, privilegiamos a versão concebida pelo diretor e não a que foi lançada comercialmente em 1968. Entretanto, tomamos a devida precaução de também garantir a preservação da versão censurada, contratipando inteiramente o rolo 7 da cópia A. Além disso, é preciso insistir na inegável existência de diferentes versões da mesma obra – o que leva a considerações sobre a possibilidade de eleição de uma única versão estritamente “original” –, destacando que tive acesso a uma versão em vídeo de Antes, o verão exibida na TV Cultura na qual a “cena do maiô” tinha sido quase inteiramente cortada.[7] Além do mais, tendo contratipado ambas as versões, o quesito de reversibilidade necessário a qualquer projeto de restauração foi contemplado.
Desse modo, feita a montagem das cópias A e B, privilegiando reunir o máximo possível de metragem de ambos os matérias, foi feita a copiagem por contato, em janela molhada, para dar origem ao contratipo. Ambas as cópias tiveram seu som ótico monofônico de área variável digitalizado e enviado para restauração pela Rob Filme.
Na processo de feitura do internegativo de imagem, a janela molhada tinha a função de tentar eliminar, na própria copiagem, alguns dos riscos do material. A copiagem por contato buscava garantir a máxima qualidade fotográfica, uma vez que nossa futura cópia de exibição seria resultado de duas gerações a mais (cópia MAM → internegativo → cópia nova), com a inevitável perda inerente a qualquer reprodução analógica. Ainda assim, o resultado de grande parte do material foi bastante satisfatório quando pudemos examinar o contratipo na máquina telecine. Foram identificadas, porém, duas questões problemáticas.
Os trechos mais encolhidos – oriundos principalmente da cópia B – não passaram na copiadora e precisariam ser copiados por processo ótico (que resulta em menor qualidade do que por contato) e “quadro a quadro” (o que torna o processo mais lento).
Além disso, inúmeras imperfeições na imagem não foram eliminadas pela janela molhada. Algumas delas podem ser definidas como “defeitos” – isto é, “imperfeições oriundas da produção original do filme, como aquelas resultantes de limitações técnicas na época de produção”.[8] Um exemplo de “defeito” eram pontos brancos que pipocavam na sequencia noturna inicial de Antes, o verão. Chico relatou que esses pontos estavam fotografados nas cópias do MAM, o que o levou a crer que faziam parte dos negativos originais do longa-metragem, sendo possivelmente resultado de grãos de poeiras que se colaram a esses negativos durante o seu processo de revelação. A hipótese de Chico se baseava em seu conhecimento das (más) condições de processamento do laboratório Líder, onde Antes, o verão foi revelado em 1968.
Outras imperfeições persistentes, porém, podem ser definidas como “danos”, traços resultantes da deterioração ou (mau) uso dos materiais. No caso de Antes, o verão, esses danos mais evidentes consistiam, sobretudo, em riscos contínuos no suporte e alguns riscos profundos na emulsão com perda de imagem, além de efeitos da ação de fungos. Nesse momento da restauração fotoquímica foi aventada a possibilidade de uso de ferramentas digitais. Embora não houvesse a intenção de eliminar todas as marcas do tempo em uma obra realizada há quase meio século – afinal, sabemos que algumas restaurações digitais são criticadas por “sua falsa mensagem de que as imagens em movimento não tem história, [por] sua ilusão de eternidade”[9] –, chegamos à conclusão de que os danos mais intensos afetavam a apreciação do próprio valor estético da obra, objeto primeiro da restauração. Riscos intensos que cruzavam o quadro e atingiam o rosto dos atores em planos fechados potencialmente desviavam a atenção do filme para o estado físico do suporte, o que não era a nossa intenção. Chico também levantou a questão da aceitação social de uma restauração – feita com recursos públicos – que poderia ser condenada pelo público mais amplo por conta da manutenção de uma perturbação visual evidente a qualquer espectador.
A decisão de apelar para ferramentas digitais para corrigir danos que não puderam ser eliminados no processo fotoquímico – incluindo alguns desenquadres resultantes do encolhimento – trouxe inúmeras consequências para o projeto. A primeira delas foi o tempo de execução. O processo de escaneamento (passagem da película para o digital), tratamento (com o auxílio de filtros automáticos, mas essencialmente através da correção manual quadro a quadro) e transfer (o retorno do digital à película) atrasou significativamente o cronograma da restauração. Isso levou ao pedido de prorrogação do projeto por mais doze meses, estendendo seu prazo de conclusão que originalmente se encerrava em dezembro de 2014.[10]
Essa decisão também influiu no orçamento. Apesar da extrema cooperação da Labocine em atender às necessidades do projeto, com seu súbito fechamento no final de 2014 a conclusão do tratamento digital teve que ser feita por outra empresa. Oferecendo um preço mais baixo do que todas as empresas nacionais consultadas, realizamos o serviço de restauração digital de um trecho de dois minutos de duração na ColorLab (Maryland, EUA).[11] Entretanto, questionamos o resultado preliminar enviado, devido a uma divergência entre nós (clientes) e a empresa (prestadora de serviço) do que consistiria efetivamente a restauração contratada e do que se esperava dela. Ao final, o resultado foi aceitável, mas deixou um aprendizado: no universo do digital, onde as possibilidades são imensas, os custos podem ser estratosféricos e as avaliações potencialmente subjetivas, uma lição é que os contratos precisam especificar detalhadamente que serviços estão sendo pagos – sua natureza, extensão e intensidade.
Por último, o uso de ferramentas digitais também impactou o resultado estético da restauração. Na visão dos primeiros resultados preliminares ainda na Labocine, apesar da fantástica correção de danos muito intensos e/ou pontuais, parecia-me clara – apesar da subjetividade inerente a essa avaliação – a diferença em termos de “qualidade” visual dos trechos que passaram por intermediação digital daqueles que passaram por copiagem fotoquímica por contato. Evidentemente, isso tem relação com o fato de que a Labocine só poderia oferecer – e o projeto só poderia arcar – com escaneamento, tratamento e transfer em 2K. Entretanto, entre a manutenção dos diversos danos e sua correção com a perda resultante da intermediação digital, acreditamos que a intervenção foi positiva e necessária para a restauração, sendo sutil, apesar de perceptível, a diferença entre os planos restaurados digitalmente e o restante do filme.
Com o fechamento da Labocine, no Rio de Janeiro, o projeto teve continuidade na CineColor, em São Paulo. No momento em que escrevo este texto, o contratipo está sendo finalizado para dar origem à cópia 35mm restaurada de Antes, o verão que estreará na 10ª CineOP.

Amor e desamor e curtas-metragens
Ainda na elaboração do projeto, tomei conhecimento dos curtas-metragens dirigidos por Gerson Tavares que também encontravam-se completamente esquecidos, sendo incluída a proposta de digitalização do maior número possível de curtas para entrarem como “extras” do DVD da versão restaurada de Antes, o verão.
O orçamento do projeto não possibilitava, no caso dos curtas-metragens em que isso era necessário, a confecção de materiais intermediários (internegativo ou interpositivo), medida ideal para a preservação da obra no suporte original da película cinematográfica. Preferimos, portanto, optar por uma ação viável que permitiria amplo acesso aos curtas-metragens de Gerson Tavares e poderia resultar, futuramente, em iniciativas de duplicação ou restauração desses filmes.
Além disso, no caso dos curtas-metragens, havia uma quantidade maior de materiais, pertencentes a diferentes arquivos e que se encontravam em estados muito diversos de preservação. Alguns títulos só tinham um material preservado, enquanto outros possuíam vários. O levantamento feito em 2013 revelou a presença de materiais dos curtas de Gerson Tavares nos acervos da Cinemateca do MAM, Cinemateca Brasileira e CTAv. Todos os materiais foram examinados por mim em mesa enroladeira, permitindo a comparação deles para eleição daqueles a serem utilizados.
Do filme A Petrobrás prepara seu pessoal técnico (1958) foi localizado um único material: uma cópia sonora de preservação em 16mm da Cinemateca Brasileira. O material em P&B estava em bom estado e foi telecinado.
Dos três curtas-metragens dirigidos por Gerson Tavares em 1959 a situação era mais complicada, especialmente por serem coloridos. De O grande rio havia uma cópia 16mm bastante avermelhada na Cinemateca do MAM, depositada pelo próprio Gerson Tavares, e dois materiais da Cinemateca Brasileira em 35mm, um internegativo e uma cópia de preservação. O internegativo teria sido confeccionado a partir de cópia do CTAv – possivelmente descartada posteriormente, já que o arquivo localizado na Avenida Brasil não mais possuía nenhum material desse título –, e estava em bom estado físico. Entretanto, seu esmaecimento – originário da cópia que lhe deu origem – era mais acentuado do que o desbotamento da cópia 16mm. Já a cópia 35mm estava ótima, mas era preto e branca! Como ela trazia uma cartela inicial destacando a premiação de O grande rio no Festival de Bilbao, julguei ser uma cópia feita em laboratório brasileiro (provavelmente a Rex Filme) posteriormente à estreia do filme.[12]
De Brasília, capital do século só havia um material: um internegativo 35mm da Cinemateca Brasileira, novamente feito a partir de cópia outrora existente no CTAv. O estado físico era ruim e o desbotamento acentuado – o filme já estava inclusive avinagrado –, mas não tínhamos outra opção.
Por último, de Arte no Brasil de hoje foram encontradas duas cópias 16mm, uma na Cinemateca do MAM e outra na Cinemateca Brasileira. A questão é que uma era a versão em francês do filme, e a outra a versão em inglês. Optamos pela segunda, que estava em melhores condições.[13]
O curta-metragem mais conhecido de Gerson Tavares, Gafieira (1972), tinha diversos materiais no CTAv e Cinemateca Brasileira, e optamos por telecinar uma cópia de preservação 35mm do acervo do arquivo de São Paulo em bom estado.
Ensino artístico (1973) possuía sete cópias 16mm e um internegativo combinado 35mm no CTAv, mas optamos por simplesmente copiar a matriz digital (Beta digital) produzida então recentemente pelo próprio CTAv a partir do telecine de seu internegativo. O material estava em excelente estado.
O filme Saveiros (1977) possuía oito cópias 35mm e uma 16mm no CTAv, mas sua situação era a mais difícil. As três cópias em melhor estado foram examinadas e todas estavam muito degradadas e gastas, sendo que as em 35mm estavam particularmente encolhidas. Por falta de alternativas, foi utilizada a cópia 16mm esmaecida, riscada e avinagrada.
Mais trágico, porém, era o caso dos curtas Tiradentes-Portinari (1975) e Nova arca (1977). Do primeiro havia sete cópias 35mm no CTAv, mas todas – absolutamente todas – encontravam-se meladas. A situação dos materiais de Nova arca também era ruim, mas chegamos a enviar para o telecine uma cópia 16mm do filme. Entretanto, não foi possível passar o filme na máquina dado o seu encolhimento e fragilidade e tivemos que excluir o título do projeto. Tratam-se de dois filmes de Gerson Tavares que correm o risco de se perder definitivamente. Ironicamente, são dois dos curtas-metragens mais recentes dentre os localizados na pesquisa.
Além da triste ironia dos filmes mais novos serem os mais ameaçados de desaparecimento, outra questão a se destacar é que, infelizmente, nenhuma telecinagem foi feita dos negativos originais, já que nenhum dos títulos possuía esses materiais preservados em arquivos. É um dado que revela como a história do curta-metragem brasileiro está se perdendo ou sobrevivendo precariamente.
Por questões orçamentárias, todos os curtas foram telecinados em Full HD (resolução máxima de 1920 x 1080 pixels). Acreditávamos que o ideal seria o escaneamento em 2K (resolução máxima de 2048 x 1080 pixels), mas a diferença de custos entre o telecine Full HD e o escaneamento 2K não compensava o investimento. Além disso, não havia condições de custear ações de restauração digital nos curtas, com exceção de pequenas correções possíveis durante o telecine online.[14] 
Sem contar a questão orçamentária, nossa decisão também foi pautada pelo fato de que muitos dos materiais selecionados dos curtas-metragens tinham limitações (desbotamento e esmaecimento, cópias danificadas por projeções, bitola 16mm etc.) que já comprometeriam a qualidade do resultado final em formato digital. Além disso, grande parte do público terá acesso aos filmes através do DVD do projeto, cuja resolução máxima é inferior à Full HD. A primeira intenção era lançar os filmes em Blu-Ray (disco que comporta Full HD), mas novamente a enorme diferença no preço de autoração entre o formato Blu-ray e o formato DVD nos obrigou a decidir pela segunda opção. A qualidade máxima do formato digital seria oferecida através das cópias para exibição digital no formato DCP (Digital Cinema Package).
Como sempre ocorre nesses projetos, também tivemos uma outra grande – mas, nesse caso, feliz – surpresa. Durante a execução do projeto, consegui com o amigo José Quental o contato de Ruy Pereira da Silva, produtor de três curtas-metragens de Gerson Tavares em 1959. Combinei uma entrevista com ele para recolher seu depoimento e informações que auxiliassem na pesquisa sobre a carreira do cineasta. Durante um bate-papo com Ruy em seu apartamento em Copacabana, ele mencionou ter algumas latas guardadas em seu escritório. Ao final, pedi para vê-las e, entre elas, encontravam-se cópias de O grande rio, Arte no Brasil de hoje e Brasília, capital do século. Com alguma hesitação, Ruy generosamente permitiu que eu levasse algumas das latas para examinar o estado dos materiais e foi com muita felicidade que encontramos cópias de Brasília, capital do século e O grande rio muito melhores do que aquelas que já tínhamos telecinado. Apesar de estarem bastante fungadas, as cópias apresentavam as cores do ferraniacolor surpreendentemente conservadas. Não tivemos dúvida em telecinarmos novamente esses dois títulos, substituindo as versões anteriores. De Arte no Brasil de hoje encontramos a versão original com narração em português, embora a cópia estivesse extremamente avermelhada. Assim, optamos por manter a imagem da versão em inglês, mas com a opção de áudio em português dessa nova cópia do acervo de Ruy Pereira da Silva no DVD.[15]
Algo que não fora pensado inicialmente no projeto, mas que foi incorporado ao longo do processo foi a inclusão do longa-metragem Amor e desamor (1966). Verificou-se que seus negativos originais de imagem e som estavam conservados na Cinemateca Brasileira, mas que o longa-metragem mantinha-se fora de circulação há muitos anos, jamais tendo sido exibido em TV ou lançado em vídeo. Optou-se, portanto, por também telecinar o único material combinado de Amor e desamor, uma cópia de preservação 35mm legendada em inglês do acervo da Cinemateca Brasileira.  Do filme fizemos uma cópia de exibição em DCP, o incluindo também no DVD do projeto.
Por fim, um cuidado extra que tivemos – e aqui o plural refere-se à toda a equipe do projeto, incluindo as produtoras Gisella Cardoso e Daniela Santos – foi o de transcrever e traduzir a narração e o diálogo de todos os filmes (dois longas-metragens e sete curtas) para que o DVD tivesse a opção de legendas em português e em inglês, ampliando as possibilidades de acesso à obra de Gerson Tavares, inclusive por plateias estrangeiras.

Conclusão
Além de permitir novamente o acesso à obra cinematográfica de Gerson Tavares, o projeto também teve a intenção de resgatar a trajetória do cineasta, contextualizando seus filmes. Na etapa de feitura do projeto havia a ideia de simplesmente gravarmos uma entrevista com o diretor, mas isso acabou evoluindo para a produção do curta-metragem Reencontro com o cinema (dir. Rafael de Luna Freire, 2014). Trata-se de um documentário sobre a origem e os bastidores da restauração, que traz entrevistas com Gerson Tavares, Carlos Heitor Cony, Hernani Heffner e Chico Moreira, sendo destinado a anteceder a exibição de Antes, o verão.
Para ampliar a difusão do projeto, foi desenvolvido também um site – www.telabrasilis.com.br/gersontavares – onde são disponibilizados textos, imagens e vídeos sobre a vida e a carreira de Gerson Tavares. Indispensável a qualquer ação de restauração, a pesquisa para este projeto foi ampla e extensa, incluindo visitas a arquivos, levantamento de imagens e a realização de várias entrevistas (com muitas idas e telefonemas para Cabo Frio). Obviamente que tudo isso só foi possível com o envolvimento sincero e desinteressado de Gerson Tavares e sua família.
Apesar de ser uma iniciativa que buscou dar nova vida a filmes antigos – permitir que essas obras reencontrassem novos públicos –, o projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares” também simbolizou, talvez inadvertidamente, o fim de várias coisas. Para o curta-metragem Reencontro com o cinema, realizamos uma longa entrevista com Chico Moreira em seu laboratório de restauração na Labocine, no bairro carioca de Vila Isabel. Poucos meses depois, aquele que era o único laboratório cinematográfico do Rio de Janeiro e um dos mais tradicionais do Brasil fechou suas portas. Provavelmente a nossa foi a última gravação naquele espaço repleto de máquinas antigas e supostamente obsoletas onde diversas películas brasileiras foram restauradas nas últimas duas décadas.
Além disso, Reencontro com o cinema teve uma sequência filmada na sala de projeção da Cinemateca do MAM. O curador da Cinemateca, Gilberto Santeiro, apareceu num determinado momento e o convidamos para fazer figuração numa das cenas. Ele deveria fazer apenas algo que para ele era ao mesmo tempo banal e apaixonante: sentar na poltrona do cinema e olhar para a tela a sua frente. Falecido prematura e subitamente em abril de 2015, aquelas provavelmente são as últimas imagens em movimento de Gilberto, mostrando que reencontros também podem ser, sem que imaginemos, inesperadas despedidas.
Apesar desses tristes fins e partidas, é com muita satisfação que apresentamos na 10ª CineOP a versão restaurada de Antes, o verão. Foi um trabalho realizado com muita paixão e esforço e com o qual esperamos ter colaborado para a memória do cinema brasileiro, desejando ainda que essa experiência contribua para o aprimoramento da reflexão e prática da preservação audiovisual no Brasil.

***

Quem é Gerson Tavares?

Por Rafael de Luna Freire, professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense e idealizador e coordenador do projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”.

Nascido em 1926, no bairro de Alcântara, em São Gonçalo – município da região metropolitana do Rio de Janeiro –, Gerson Tavares pertencia a uma família de classe baixa. Primogênito com duas irmãs, seu pai era comerciante, mas faleceu quando ainda era adolescente. Após terminar o ensino médio, teve diferentes trabalhos até se estabelecer no escritório carioca de uma empresa dinamarquesa. Estava prestes a ser promovido, mas abriu mão do emprego para realizar o desejo de ingressar na Escola Nacional de Belas Artes (Enba). Admitido em 1947, finalizou o curso superior de pintura. Fez muitos amigos e ampliou seus horizontes com os estudos.[16]
Já formado, realizou duas exposições individuais em 1951 e 1952. Nessa época, tendo feito parte do Diretório Estudantil da Enba, ganhava um pequeno salário como secretário da União Nacional dos Estudantes, usufruindo ainda das refeições a preços populares servidas em sua sede, no Flamengo.
A grande mudança em sua vida ocorreu quando realizou o sonho de receber uma bolsa de estudos para estudar pintura na Europa em 1953, conseguindo passagem de navio (terceira classe) Rio-Lisboa através da CAPES. Tendo aprendido os macetes para viver com economia na Europa, ficou bem mais tempo do que os seis meses de bolsa permitiriam. Posteriormente conseguiu nova bolsa do Governo da Espanha, residindo por alguns meses em Madri. Viajou por diversos países e frequentou vários museus, refinando sua cultura.
O cinema entrou em sua vida quando mudou-se para Paris. Lá conheceu Sergio Montagna, um brasileiro bon vivant, funcionário do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil, que o “contagiou”. Passando a frequentar a Cinemateca Francesa e diversos cineclubes da cidade, Gerson descobriu a sétima arte, que ele ignorava anteriormente no Brasil. O sucesso do filme brasileiro O cangaceiro (Lima Barreto, 1954) em cinemas parisienses nessa época o impressionou, uma vez que durante toda a sua estadia em Madri não tinha visto nem sequer uma pintura de um brasileiro no Museu do Prado, por exemplo. Percebendo o futuro promissor da arte cinematográfica no Brasil, decidiu seguir conselhos para se matricular naquela que era considerada a melhor escola de cinema do mundo, o Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. Fez os exames de seleção (em francês) e foi admitido como ouvinte no Curso de Direção. Durante os dois anos do curso, entre 1956 e 1957, fez bicos como fotógrafo e guia de turismo para sobreviver na Itália, além de participar de dois curtas, um deles, Pistoia (dir. César Mêmolo Jr, 1956), documentário sobre o cemitério italiano onde vários pracinhas brasileiros estavam enterrados. Trabalhou também como correspondente da revista O cruzeiro em duas edições do Festival de Veneza nesse período.
Ainda na Itália, seguindo a dica de colegas, comprou uma câmera Arriflex 16mm e passou a ganhar dinheiro alugando o equipamento. Entretanto, sem maiores perspectivas de trabalho, decidiu retornar ao Brasil em 1958. Vendeu sua antiga câmera e, em sociedade com Sérgio Montagna, comprou uma câmera nova Caméflex francesa para levar para o Brasil e utilizá-la na produtora que iriam abrir juntos no Rio de Janeiro. O terceiro sócio da empresa – nomeada como Saga Filmes – seria um jovem vizinho de Montagna, em Ipanema, que ofereceu a garagem da casa dos pais como sede da produtora: Joaquim Pedro de Andrade.[17]
Além de um filmete de propaganda para a loja de produtos importados Lidador, o primeiro trabalho da Saga Filmes foi o curta-metragem A Petrobrás prepara o seu pessoal técnico (1958). Produzido através de seleção pública da estatal – o aviso da abertura da concorrência foi dada por Claudio Mello e Souza, amigo que trabalhava na empresa –, o documentário foi dirigido por Gerson e contou com a assistência de Joaquim Pedro.
Nessa época, o fotógrafo italiano Giampaolo Santini, amigo dos tempos da Europa, veio ao Rio de Janeiro propor a Gerson um projeto de realização de três curtas-metragens sobre o Brasil para atender à curiosidade internacional sobre o país. Santini tinha filme virgem colorido – alguns rolos feitos da emenda de sobras de outras produções – e precisava de um parceiro brasileiro. Como Gerson desejava dirigir os três filmes sem dividir a função com os sócios da Saga, o cineasta saiu da empresa e encontrou um produtor em Ruy Pereira da Silva.
Formado em medicina, Ruy também tinha vivido na Europa, mas com o intuito de se preparar para a carreira diplomática. Estudando na Sorbonne, em Paris, foi outro que descobriu a paixão por cinema na Cinemateca Francesa, tendo conhecido seu célebre diretor, Henri Langlois. De volta ao Rio de Janeiro, se aproximou do movimento cineclubista carioca e procurou Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, com o objetivo de criar uma cinemateca no Rio. De fato, em 1955 Ruy criou o Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – futura Cinemateca do MAM –, passando a realizar sessões no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Em 1957, apoiado pelo Itamaraty e pela ABI, viajou para a Europa e Estados Unidos, travando muitos contatos que permitiram a realização, no ano seguinte, do extraordinário Festival “A História do Cinema Americano”. No final de 1958, porém, afastou-se da Cinemateca do MAM e decidiu “fazer cinema”, em suas palavras.[18] Muito bem relacionado, Ruy conseguiu levantar os recursos para realizar, através de sua recém-criada produtora, a Procine, os filmes planejados por Gerson e Santini.
Os três curtas-metragens foram realizados conjuntamente, entre 1959 e 1960, e chamaram-se Brasília, capital do século, O grande rio e Arte no Brasil de hoje. Era uma espécie de trilogia que fazia um retrato do Brasil do passado, do presente e do futuro.
Arte no Brasil de hoje abordava a obra de artistas brasileiros modernos em plena atuação – Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Cândido Portinari, Burle Marx e Bruno Giorgi –, dedicando-se a mostrar a originalidade e o talento de nomes que ajudavam a dar visibilidade internacional à arte brasileira no final da década de 1950. Era o Brasil do presente que ingressava na vanguarda da arte mundial.
Brasília, capital do século documentava a impressionante construção da nova capital brasileira no planalto central. Criada do nada, num esforço de engenharia e numa ousadia de arquitetura, assemelhava-se a um cenário de ficção científica e projetava o Brasil como uma nação do futuro.
Se Brasília, capital do século e Arte no Brasil hoje tornaram-se extraordinários documentos históricos, O grande rio teve um maior reconhecimento na época em que foi realizado ao ganhar a Medalha de Ouro do I Certamen Internacional de Cine Documental Ibero-Americano y Filipino de Bilbao, na Espanha. O filme acompanhava uma viagem de barco pelo Rio São Francisco, reproduzindo uma travessia que o próprio Gerson havia feito em 1949, nos tempos da faculdade.
Em O grande rio, mostrando a pobreza, as festas populares, os modos de vida tradicionais das populações ribeirinhas, estava o Brasil do passado. Focando na expressão mais arcaica de um país tido como subdesenvolvido, e flagrando tanto a desigualdade social como a riqueza da cultura popular, o filme se aproxima de outros curtas-metragens contemporâneos – hoje bem mais conhecidos – como Arraial do Cabo (Mário Carneiro e Paulo Cezar Saraceni, 1960) e Aruanda (Linduarte Noronha, 1960). A representação da estagnação, traduzida pela metáfora do eterno correr do rio e do girar da roda do barco à vapor, alia o lirismo poético à denúncia realista da miséria.
Apesar da repercussão e dos prêmios, Gerson não voltaria a filmar tão cedo. Sem respaldo familiar e calejado pelos anos de dificuldade financeira, ele tinha uma visão pragmática sobre a sua sobrevivência profissional. Os curtas haviam lhe dado projeção, mas não renderam dinheiro ou novos trabalhos. Para pagar as contas, Gerson decidiu viver da locação de equipamentos cinematográficos, como fizera ainda na Europa. Durante cinco anos trabalhou apenas como locador de equipamento e eventualmente como diretor de produção, como em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962) ou no episódio brasileiro da produção ítalo-americana Il mondo di notte numero 2 (Gianni Proia, 1962).
Somente em meados da década, já com um situação financeira mais confortável e estável, partiu para seu primeiro longa-metragem, Amor e desamor (1966). Coproduzido pelas distribuidoras França Filmes e Condor Filmes através da recém criada Lei de Remessa de Lucros, Amor e desamor era uma história original filmada inteiramente em Brasília, embora passada em grande parte entre quatro paredes. Estrelado por Leonardo Villar – surpreendendo com um personagem contemporâneo, sofisticado e urbano após vários papéis como retirante ou bandido nordestino[19] –, o filme tratava das frágeis relações afetivas num mundo convulsionado. O cenário duro e intimidador de Brasília após a invasão da UnB ajudava a conferir o tom intimista do filme com a valiosa colaboração da música de Rogério Duprat. O erotismo sutil e elegante do filme que contava também com Leina Krespi e a novata Betty Faria no elenco foi destacado, embora Amor e desamor tenha tido uma recepção fria da crítica, que fez restrições à teatralidade da encenação.
Para o seu segundo longa-metragem, Gerson buscou uma nova história de amor e amargor, dessa vez tirada do então recente e bem-sucedido livro “Antes, o verão”, de Carlos Heitor Cony. Parcialmente filmado na mesma Cabo Frio de Os cafajestes, o longa-metragem aproxima-se do universo de filmes como São Paulo, Sociedade Anônima (Luis Sérgio Person, 1965) ao restringir-se a personagens burgueses e seus dilemas e inquietações. No caso de Antes, o verão, o protagonista é o empresário de meia-idade Luís, que compra uma casa de praia como símbolo de sua independência e sucesso profissional e pessoal. Mas apesar de tentar erguer barreiras contra o resto do mundo, tanto sua vida quanto sua casa são invadidas por forças externas, simbolizadas pela incessante ação do vento, da areia e do sal. Com o magnetismo de Jardel Filho e Norma Bengell, Antes, o verão seria elogiado pela sensível sensualidade distante do pudicismo ainda moralista de boa parte dos filmes políticos, assim como do crescente erotismo vulgar de certo cinema comercial.  Entretanto, como Amor e desamor, Antes, o verão também não passou impune pelas tesouras dos censores, que obrigaram a remontagem total de um longa sequência por conta de planos de nudez de Norma.
Lançado em 1968 e parcialmente financiado pela Carteira de Auxílio à Indústria Cinematográfica (CAIC), Antes, o verão foi produzido pela empresa Verona Filmes, criada por Gerson no ano anterior. O filme que apresentava ainda os atores Hugo Carvana, Gilda Grillo e Paulo Gracindo foi unanimemente recebido pela crítica cinematográfica como um bom filme, que confirmava o talento e amadurecimento do cineasta.[20] Era o segundo longa-metragem de Gerson, mas acabou sendo o último.
Com o aumento à repressão a um cinema crítico e questionador após o AI-5, Gerson se espelhou na produção de filmes como Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) ou Os inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1971) para buscar financiamento internacional para o seu novo projeto. Planejando levar às telas, num misto de ficção e documentário, o livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de Maria Carolina de Jesus, Gerson adquiriu os direitos de filmagem da obra e trocou cartas com a autora, mas não conseguiu concretizar a pretendida coprodução internacional. [21]
Na década de 1970 ele se dedicaria, além da locação de equipamentos, à direção de curtas-metragens documentários, parte deles produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema (INC). Do documentário observacional, Gafieira (1972), filmado na tradicional boate Elite, da Praça Tiradentes, ao filme de encomenda para o Ministério da Educação e Cultura Ensino artístico (1973), sua produção é diversificada. Se em Gafieira, seu mais célebre curta, não há nenhuma narração além do som direto, em Saveiros (1977), produção da Embrafilme, Gerson já utiliza o método das entrevistas para examinar uma atividade tradicional em risco de extinção. Realizou ainda filmes como Tiradentes/Portinari (1973) e Nova Arca (1977), cujos materiais infelizmente encontram-se seriamente deteriorados e em vias de desaparecimento.
Ao longo dos anos a Verona Filmes tornou-se uma empresa respeitável e conhecida, reunindo um notável conjunto de equipamentos cinematográficos para locação: lentes, tripés e câmeras 16 e 35mm, carrinho, refletores e maquinário, gravador de som Nagra – tudo o necessário para atender às necessidades de qualquer equipe. Gerson era frequentemente procurado para se associar a projetos (fornecendo os equipamentos) e, nesse formato, a Verona coproduziu o filme infantil A dança das bruxas (Francisco Dreux, 1970).[22]
Desgostoso com o meio profissional e com o Rio de Janeiro, Gerson largou a profissão quando a crise econômica agravava a situação do cinema brasileiro. Com bom timing para negócios, soube abandonar o barco antes dele afundar. Aos poucos foi se desfazendo de seus equipamentos, até vender a própria Verona Filmes e todo sua aparelhagem para a atriz e produtora Rossana Ghessa, amiga desde 1972, quando ambos participaram da Semana do Cinema Brasileiro em Nápoles.[23]
Desde os anos 1980, Gerson passou a residir definitivamente em Cabo Frio, afastando-se completamente do cinema e dedicando-se a duas outras grandes paixões: a pintura e o mar. Ao conhecê-lo pessoalmente no começo de 2013, encontrei a pessoa serena, generosa e ponderada que os amigos descreviam, assim como pude identificar também o empresário honesto, intuitivo e batalhador e o artista disciplinado, inteligente e sensível. Gerson passou por um AVC semiagudo em novembro daquele ano, mas vêm se recuperando com esforço e dedicação.
A homenagem a Gerson Tavares pela Mostra de Cinema de Ouro Preto é decorrência do projeto “Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares”, cujo objetivo é trazer novamente à tona a obra desse cineasta brasileiro injustamente esquecido, possibilitando seu conhecimento e avaliação pelas novas gerações. Gerson Tavares merece todas essas homenagens, mas quem mais ganha é a memória do cinema brasileiro e os espectadores que voltarão a poder assistir e apreciar seus filmes.




[1] BUARQUE, Marco Dreer. A experiência com restauração de filmes no Brasil. Mosaico, Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV, v. 3, n. 5, 2011.
[2] Discuti em outro artigo a importância de projetos de restauração também serem conduzidas por cinematecas e arquivos de filmes – e não somente através de projetos que precisam ser previamente elaborados e inscritos em editais ou oferecidos a patrocinadores –, uma vez que os critérios utilizados por uns e outros para guiar a escolha de filmes a serem restaurados são diferentes. Ver: FREIRE, Rafael de Luna. A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas. In: MOSTRA DE CINEMA DE OURO PRETO, 7, 2012, Ouro Preto. Catálogo da 7ª CineOP. Universo Produções: Belo Horizonte, 2012. Disponível em: <http://preservacaoaudiovisual.blogspot.com.br/2012/08/a-preservacao-do-cinema-brasilerio-da.html>     
[3] Carta de Gerson Tavares ao Cel. Aloysio Muhlethaler de Souza, Rio de Janeiro, 8 out. 1968 (acervo do Arquivo Nacional).
[4] Jornal do Brasil, 16 nov. 1968, p. 31.
[5] WALLMÜLLER, Julia. Criteria for the Use of Digital Technology in Moving Image Restoration. The Moving Image, AMIA, n. 7, 2007.
[6] Entretanto, sendo restauração entendida como “o processo de compensar a degradação pelo retorno da imagem ou artefato o mais próximo possível ao seu conteúdo original”, não há dúvida que nossa decisão seguiu os princípios de uma restauração (recuperação da qualidade visual) e reconstrução (reordenação do texto) (READ, Paul; MEYER, Mark-Paul. Restoration of Motion Picture Film. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000).
[7] Agradeço a Teder Morás por franquear o acesso a esse material.
[8] WALLMÜLLER, op. cit.
[9] USAI, Paolo Cherchi. The Lindgren Manifesto: The Film Curator of the Future. Journal of Film Preservation, n. 84, abr. 2011, p. 4.
[10] Devido a compromissos já assumidos, uma versão preliminar da restauração foi exibida, em formato digital, na repescagem da 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 3 de novembro 2014.
[11] A questão econômica foi determinante para a escolha da prestadora do serviço, uma vez que o orçamento original do projeto não contemplava essa despesa extra.
[12] O grande rio teve suas primeiras cópias exibidas em setembro de 1959 e a premiação no festival ocorreu somente no mês seguinte. Os três curtas coloridos foram revelados no laboratório italiano La Microstampa, em Roma, conforme informação no rótulo de algumas latas.
[13] O filme Arte no Brasil de hoje teve cópias comprados pelo Itamaraty para distribuição cultural internacional. Foram feitas versões em inglês, francês e espanhol. Ver: UNESCO. Dix ans de films sur l’art (1952-1962). 1. Peinture et sculpture. Paris: Unesco, 1966, p. 161.
[14] Agradeço ao funcionário da Labocine, Agson Alessandre, pelo tempo e paciência na telecinagem dos materiais.
[15] No início de 2015, Ruy depositou todas as latas que ainda possuía em casa na Cinemateca do MAM.
[16] As informações sobre Gerson Tavares provém de várias entrevistas realizadas com ele pelo autor entre 2013 e 2015.
[17] Ver também: ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013, p. 56-7.
[18]  Entrevista do autor com Ruy Pereira da Silva, 2014. Sobre a criação da Cinemateca do MAM e o papel de Ruy Pereira da Silva, ver: QUENTAL, José Luiz de Araújo. A preservação cinematográfica no Brasil e a construção de uma cinemateca na Belacap: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dissertação – Mestrado em Comunicação, Imagem e Informação. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 86-125.
[19]  Leonardo Villar vinha de papéis em O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Lampião, o rei do cangaço (Carlos Coimbra, 1965) e A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965).
[20]  Numa rara convergência de opiniões, especialmente incomum em se tratando de filme brasileiro naquele contexto, todos os críticos do Jornal do Brasil – Alberto Shatovsky, Ely Azeredo, José Carlos Avellar, Miriam Alencar e Valério Andrade – concederam a cotação de duas estrelas (bom) a Antes, o verão, analisado na sessão “Filme em questão” (Jornal do Brasil, 16 nov. 1968, p. 31).
[21]  Ver correspondência nesse sentido trocada entre Gerson e o produtor francês Michel Gast, da SND (Société Nouvelle de Doublage) ao longo do segundo semestre de 1970 (Acervo pessoal de Gerson Tavares).
[22]   Não à toa, imagens desse filme aparecem no curta Ensino artístico (1973).
[23]   Ver: “Alteração de contrato social da firma Verona Filmes”, 28 abr. 1983 (Acervo pessoal de Gerson Tavares). A atriz deixou de usar a empresa Rossana Ghessa Produções Cinematográficas, passando a utilizar o nome da Verona Filmes em suas produções seguintes, assim como a trabalhar com locação de equipamentos cinematográficos.