sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O Dilema Digital

Esta reportagem foi publicada na revista In Camera, de abril de 2008 (p.34-35) e faz referência ao relatório intitulado The digital dilemma: Strategic Issues in Archiving and Accessing Digital Motion Picture Materials, que pode ser adquirido no site da Academy of Motion Picture arts and sciences. O texto faz referência também a um artigo publicado no New York Times, intitulado The Afterlife Is Expensive for Digital Movies (A vida após a morte é cara para os filmes digitais), que pode ser acessado no site do jornal. Apesar de mal-escrita, esta reportagem é interessante, por exemplo, por ter sido publicada no revista da Eastman Kodak Company, que recentemente abraçou a tecnologia digital. Nesse dilema que os conservadores apontam, a Kodak pode estar vendo a permanência de um restrito, mas longevo nicho de mercado para as películas, cuja indústria é dominada por essa empresa há décadas. Há uma outra tradução desse texto disponível no site da Kodak brasileira.

“O Dilema Digital” – Relatório da Academia aborda o futuro dos filmes atuais
(tradução de Rafael de Luna Freire)

Um flashback para 1913: um crítico de jornal perguntou à lendária atriz teatral Sarah Bernhardt porque ela estava atuando em filmes “populares” ao invés de se concentrar na interpretação nos palcos. A diva respondeu que ela atuava nos filmes para a posteridade. A triste realidade é que aproximadamente metade dos filmes produzidos nos Estados Unidos no primeiro século da indústria se perdeu para sempre.
No final dos anos 1970, Martin Scorsese fez o alerta de que o insubstituível patrimônio de uma importante forma de arte estava em risco. Sua persistência levou a significativos avanços nas práticas de restauração e conservação de filmes.
Nos anos 1990, Scorsese e outros diretores de ponta fundaram a The Film Foundation, que se tornou uma força significativa na criação de consciência e na arrecadação de fundos para a restauração e conservação de centenas de filmes clássicos [incluindo Limite, filme brasileiro de 1929, dirigido por Mário Peixoto]
Um artigo do New York Times de 23 de dezembro de 2007, escrito por Michael Cieply, colocou em perspectiva o valor da conservação adequada. Ele citava um relatório da Global Media Intelligence que afirmava que aproximadamente um terço dos 36 bilhões de dólares dos rendimentos ganhos pelos estúdios de Hollywood vinha de suas coleções.
Outro passo gigantesco foi dado novembro passado quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Academy of Motion Pictures Arts and Sciences) lançou um amplo relatório intitulado “O Dilema Digital” com o subtítulo “Questões estratégicas na conservação e acesso de materiais cinematográficos digitais”. O relatório de 75 páginas teve como co-autores duas autoridades respeitadas: Andy Maltz, diretor do Conselho de Ciência e Tecnologia da Academia, e o conservador Milt Shefter.
Uma frase no prefácio anuncia a missão: “Mesmo alguns dos artistas que são mais evangélicos a respeito do novo mundo do cinema digital algumas vezes parecem não ter explorado completamente a questão do que acontece com uma produção digital depois que ela deixa os cinemas e começa sua vida (se tudo correr bem) como um recurso para exploração em longo prazo do estúdio”.
O estudo de mais de um ano de duração foi lançado no inverno de 2005, após Phil Feiner, presidente do Comitê de Conservação Digital da Academia, propor uma conferência com conservadores de estúdios e especialistas em tecnologia, assim como seus equivalentes em outras organizações, incluindo agências governamentais, instituições de saúde, universidades e astrônomos.
“Esta é a primeira vez que executivos de tecnologia e conservadores dos estúdios e outras instituições públicas semelhantes, como a Biblioteca do Congresso, arquivos da UCLA [University of California] e a Association of Moving Image Archivists, se encontram para discutir a questão da preservação”,disse Shefter.
"A Academia não é uma organização de reivindicação”, acrescenta Maltz. “Nós temos pessoas que conhecem e se importam com a preservação reunidas para discutir os temas e determinar as questões que precisam ser levantas e respondidas. O relatório é um sumário de nossas descobertas. Mais de 70 especialistas foram entrevistados em seguida”.
Apenas para colocar em perspectiva esse comentário, em 1999 cientistas da NASA descobriram que eles eram incapazes de ler arquivos digitais descrevendo imagens que a expedição espacial Viking tinha enviado para a Terra em 1975, por que a informação estava num formato obsoleto.
Processo barato
Shefter observa que todos os estúdios de Hollywood tem arquivado seus longas-metragens, incluindo o negativo original e materiais intermediários, em película de poliéster estável preto-e-branco com separação YCM (amarelo, ciano e magenta), em ambientes com umidade e temperatura controladas, nos últimos 40 anos, ou ainda mais em alguns casos.
“Eu já calculei que um longa-metragem gera em média 300 estojos de negativos, interpositivos, filmes em YCM, negativos B e planos não utilizados, além de roteiros e notas”, diz Shefter. “Os YCMs podem ser usado para reproduzir o negativo original sem comprometer as imagens. É um processo barato em comparação com os custos da preservação digital”.
Um artigo recente publicado pelo DGA Quarterly [1] citava Feiner que observava que quando Superman returns [Superman, o retorno, dir. Bryan Singer] foi produzido em formato digital em 2006, ele gerou aproximadamente 200 Terabytes de informação. Um único terabyte equivale a 1.000 bilhões de bytes de informação. [2]
Feiner perguntou: “O que você faz com toda essa informação?”
Shefter nota que I Love Lucy e outros programas produzidos pelos estúdios Desilu há cinqüenta anos ainda estão sendo comercializados com a TV porque foram adequadamente conservados.
“Eu trabalhei nos laboratórios da CFI durante anos”, diz Shefter. “Nós tínhamos os filmes dos programas da Desilu guardados em nossos arquivos. Os programas originais foram produzidos em película preto-e-branco e depois em negativos coloridos. Desilu conservou os filmes de seus programas de televisão nos arquivos do laboratório sem perceber que eles se tornariam valiosos. Alguns desses programas ainda estão sendo negociados com as televisões, gerando lucros.”
O relatório “O Dilema Digital” foca nos filmes dos estúdios de Hollywood. Ele compara ambas as praticas e custos para conservação digital e fotoquímica. O relatório cita o entendimento geral que por causa da degradação dos sinais e da obsolescência dos formatos e padrões, a mídia digital é muito mais volátil do que a película. Há um consenso de que os arquivos digitais devem realizar migrações a cada quatro ou cinco anos para garantir sua acessibilidade.
O relatório da Academia relata que o custo anual para a conservação de uma matriz digital de um longa-metragem gira em torno de US$ 12.514, comparado com aproximadamente US$ 1.059 para a película. O relatório afirma que o custo para conservação de todos os elementos relevantes de um longa-metragem produzido em formato digital é de US$ 208.569 por ano. O relatório também diz que a mídia digital em disco rígido pode “congelar” em meros dois anos e que os arquivos em DVD vão eventualmente se deteriorar – espera-se que cerca de metade deles não sobrevivam mais que 15 anos.
O relatório também foca no uso de tecnologia de intermediação digital (DI – digitial intermediate) para a feitura de matrizes de longas-metragens produzidos tanto em película quanto em formato digital. Essas matrizes são utilizadas para produzir cópias de lançamento no cinema tanto digitais quanto em 35 mm.
Mais de 20 estúdios de pós-produção só nos EUA estão atualmente oferecendo serviços DI hoje. Não existem estatísticas oficiais documentando a percentagem de longas-metragens que tem matrizes por intermediação digital. As estimativas variam de70% a 80%. Após a edição offline, o negativo montado é digitalizado em resolução que varia de HD até 2K e 4K, dependendo do produtor e do orçamento. Os longas-metragens que são lançados nos cinemas são transferidos para película 35 mm, que pode se tornar o registro de arquivo do corte final.
Botando o dedo na ferida
“O que vai acontecer daqui a 20, 30 ou 50 anos, quando alguém quiser relançar uma versão do diretor de um filme, incluindo ainda cenas excluídas?”, pergunta Shefter.
É uma pergunta retórica. Ele observa que se os donos dos conteúdos não se comprometerem a realizar as migrações das matrizes DI e dos arquivos digitais não utilizados na montagem final para novos formatos e padrões a cada quatro ou cinco anos, há chances de que eles se percam para sempre.
“É importante para os produtores entenderem que as matrizes digitais que estão sendo geradas hoje não são um suporte de preservação que você possa tirar da lata daqui a dez anos”, diz Shefter. “Uma alternativa é passar para a película e fazer as separações em YCM. Entretanto, o único registro que está sendo preservado é o que quer esteja no DI.”
Mesmo que relatório “O Dilema Digital” foque nos filmes dos grandes estúdios lançados nos cinemas, ele gera questões sobre os shows de televisão produzidos em película que depois são pós-produzidos em formato HD. Maltz nota que os produtores podem conservar o negativo original e o negativo montado, mas a matriz em HD levanta as mesmas preocupações que as matrizes DI provocam na indústria de longas-metragens. Os arquivos digitais em HD irão se deteriorar? Os programas compatíveis necessários para ler e remasterizar os arquivos estarão disponíveis no futuro? O público de amanhã terá aparelhos de televisão com resolução 2K ou 4K em suas casas?
"O relatório parece ter colocado o dedo na ferida”, conclui Maltz. “Nosso objetivo foi fazer as pessoas de dentro e de fora da indústria tomarem consciência dessa importante questão”.
A alternativa para a busca de soluções está na assustadora conclusão no artigo de Cieply no New York Times. Ele prevê que o público do futuro poderá assistir aos filmes com Wallace Beery muito tempo depois que filmes contemporâneos produzidos ou conservados em formato digital já tenham se perdido. Nota: Berry estrelou filmes em Hollywood de 1913 até 1949.
Notas:
1 - DGA quarterly é a revista do Director's Guild of America. Eles publicaram a excelente reortagem sobre sobre preservação cinematográfica na edição volume 3, número 1, de 2007, que pode ser vista aqui.
2 - 1 MB é igual a 1.000.000 de bytes. 1 G é igual a 1.000.000.000 de bytes. 1 TB é igual a 1.000.000.000.000 bytes. Ou seja: um Tera equivale a mil Gigas ou a um milhão de Megabytes. São necessários mais de 200 mil DVDs ou 40 discos Blu-Ray juntos para armazenar um Terabyte de informação. E isso sem falar em Petabytes (que equivalem a mil Teras, ou um milhão de Gigas)...

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Cineclubes e clubes

O Blog ganhou sua primeira colaboração externa. Este texto foi enviado e traduzido pelo Fausto Douglas Correa, doutorando na UNESP com a tese Cinematecas e cineclubes na periferia do capitalismo: a Seção Latino-Americana da FIAF no debate histórico sobre o conceito de cinemateca (1955-1968). Este artigo é de autoria de Laurent Mannoni - autor, por exemplo, do indispensável A grande arte da luz e da sombra: Arqueologia do cinema (São Paulo: Senac, 2003) - e foi publicado como verbete no Dictionnarie du cinéma mondial: mouvements, écoles, courants, tendences et genres (Éditons du Rocher. Jean-Paul Bertrand Éditeur. 1994. P.170-175). Ainda sobre o tema Cineclubes, Clubes de Cinema e Cinematecas, vale a pena conferir o site português O movimento dos cineclubes, que também tem artigos interessantes (e em português) sobre a História do cineclubismo em Portugal e no mundo.


CINECLUBES E CLUBES
de Laurent Mannoni (tradução de Fausto Douglas Correa)
Desfaçamos uma lenda: o termo cine clube não foi criado por Louis Delluc, em 1920. Em 14 de Abril de 1907, Edmond Benoit-Lévy, diretor da revista Phono-Ciné-Gazette, anuncia a fundação do primeiro ciné-club, instalado nº 5, Boulevard Montmartre, em Paris, na sede de um cinema Pathé e da futura sociedade Omnia. Este cineclube oferecia aos seus membros, um lugar de reunião, uma sala de projeção, uma biblioteca, um Boletim Oficial do Cineclube. Tinha por finalidade “trabalhar no desenvolvimento e no progresso do cinematógrafo de todos os pontos de vista”, mas “interditando toda discussão religiosa ou política”.
Esta primeira tentativa desaparece rapidamente. É preciso esperar o ano de 1920 para ver reaparecer, na imprensa, a palavra cineclube, com Louis Delluc e Charles de Vesme, que lançam em 14 de janeiro de 1920 Le journal du ciné-club Onze dias transcorreriam até eles criarem o Cineclube da França, “com a finalidade de agrupar os profissionais e os amantes do cinematógrafo, na capital e no interior, de maneira a lhes permitir uma reunião”. O jornal do cineclube se dirige aos habitués de cinema, e agrupa “uma elite de escritores se endereçando a uma elite de leitores”.
A primeira grande reunião do Cineclube da França ocorreu em 12 de junho de 1920, na sala Pépiniére-Cinéma. Emile Cohl falou sobre desenhos animados, seguido de André Antoine que debateu o “cinema de ontem, de hoje e do amanhã”, com projeções de filmes antigos. Foi um sucesso.
Entretanto, Louis Delluc deixa rapidamente O jornal do cineclube (Le Journal du Ciné-Club) para a Fumaça Negra. A revista deixa de circular em 11 de fevereiro de 1921. Este ano é rico em eventos. O termo cineclube está definitivamente lançado, assim como a moda de associações, clubes e grupos cinematográficos de todo gênero e de revistas independentes, onde aparecem os primeiros artigos teóricos e críticos. Trata-se de um fenômeno francês, e nenhum outro país – à exceção da URSS – conhecerá tal eclosão de debates estéticos em torno do cinema. Os Clubes foram uma parte muito importante do aparecimento das vanguardas cinematográficas francesas.
Em 6 de maio de 1921, Louis Delluc publicou o primeiro número de Cinéa, hebdomadário de grande qualidade que ele dirigiu apenas até novembro de 1922. Cinéa organizo matinês, e a primeira, em 14 de novembro de 1921, revelou aos franceses O gabinete do Doutor Caligari (1919) de Robert Wiene, o que sucitou debates polêmicos. Em 22 de janeiro de 1922, Louis Delluc ministra uma conferência sobre o Cinema, arte popular, no Colisée, acompanhado de Marcel L’Herbier, que apresenta seu filme experimental Prométhée…banquier.
O poeta italiano Ricciotto Canudo retoma de Louis Delluc a idéia de cineclube e, em 26 de março de 1921, Ciné-Journal anuncia a criação do Clube dos Amigos da Sétima Arte (CASA). Canudo quer “afirmar por todos os meios o caráter artístico do cinema, o cinema sendo irrefutavelmente uma arte, a sétima”. Ele queria assim “elevar o nível intelectual da produção francesa” e “colocar tudo em obra de modo a lançar ao cinema os talentos criadores, os escritores e os poetas”. Ele organiza com grande sucesso conferências e jantares mundanos (diante de um público “elegante e refinado”, lemos na imprensa), notadamente no Restaurante Poccardi ou em sua própria casa, no nº 12 da rua Quatro de Setembro. Suas teorias estéticas, por vezes um pouco obscuras, foram seguidamente objetadas por Louis Delluc, que não hesitava em combatê-las com humor e justeza.
Canudo acostumou-se a dar a suas conferências um brilho mundano que as de Delluc não tinham. Ele teve o mérito de lançar ao CASA personalidades de toda ordem: grandes realizadores de filmes comerciais (Henri Fescourt, René Le Somptier, Henri Pouctal, Léone Perret), cineastas de vanguarda (Marcel L’Herbier, Alberto Cavalcanti, Jean Epstein, Abel Gance e Germaine Dulac, sendo que os dois últimos foram vice-presidentes do CASA em 1921), artistas (Robert Mallet-Stevens, Fernand Léger), escritores e críticos (Leon Moussinac, Blaise Cendrars, Jean Cocteau) e comediantes (Éve Francis. Jacque Catelain, Jean Toulout, Gaston Modot,Yvette Andreyor), etc. Em junho de 1922, o CASA se instala no número 16 da Faubourg Montmartre, e oferece aos seus membros uma sala de projeção, um salão de chá, uma sala de leitura, uma sala de leitura: o velho sonho de Edmond Benoît-Lévy foi realizado. O CASA participou enfim do prestigioso Salão de Outono, entre 1921 e 1923.
Graças à ação dinâmica de Canudo, as conferências se multiplicam, da mesma forma que os clubes. Entre eles, é preciso citar Os amigos do Cinema (fundado em dezembro de 1921 pela revista Cinémagazine), o Cine-clube Bruxelano (primeira sessão em 5 de julho de 1921), o Clube de Faubourg (criado em 1922 por Léo Poldès), o Clube da Tela (criado em 1928 por Pierre Ramelot) e o importante Clube Francês do Cinema (fundado por Léon Moussinac em 1922 e dirigido por Léon Poirier).
De fato, o verdadeiro Cineclube, tal qual nos entendemos hoje em dia (“seção hebdomadária, apresentação de um filme por um crítico, discussão aberta entre os espectadores e o apresentador, entrada sob inscrição com carta de aderência”, segundo Jean Mitry), só aparece desta forma em 1925, com a Tribuna Livre do Cinema, criada por Charles Leger nos quadros da Exposição de Artes Decorativas. A Tribuna, da qual Jean Mitry foi secretário geral, foi freqüentada assiduamente por jovens apaixonados pelo cinema: Marcel Carné, Edmond Gréville, Jean George Auriol; Colette por lá aparecia de tempos em tempos.
Em 1925 igualmente aparece o Cineclube da França, nascido do CASA (Canudo morreu em 10 de novembro de 1923) e do Clube Francês do Cinema de Léon Moussinac. Em torno deste último, nos encontramos Léon Poirier, René Blum, Jacques Feyder e Henri Clouzot, diretor do museu Galliera. É este Cineclube da França que revela aos parisienses O encouraçado Potenkim, em 12 de novembro de 1926, no Artistic-Cinéma.
Para lutar contra a censura (os filmes soviéticos foram proibidos pelo chefe de polícia Jean Chiappre), Léon Moussinac decide criar Os amigos de Spartacus, em julho de 1927, com Jean Lods, Francis Jourdain, Paul Vaillant-Coturier, George Marrane e o apoio da associação comunista Bellevilloise. Eles compram e abrem, em 15 de março de 1928, o cinema do cassino de Grenelle, e lá apresentam A mãe e O fim de São Petersburgo, de Vsevolod Pudovkin, entre outros. O chefe de polícia Chiappre intervém; mas a breve influência deste clube sobre a vanguarda francesa foi considerável, tanto do ponto de vista artístico como do político.
Paralelamente a todos estes clubes e associações, salas especializadas, no mesmo espírito, se abrem: O Vieux Colombier, em 1924, o Studio des Ursulines, em 1926, ou o Studio 28, em 1928. Elas também sustentam um cinema não comercial com eficácia. Novas e notáveis revistas teóricas e estéticas vêem o dia, como a famosa Revue du Cinéma, em dezembro de 1928.

O advento do cinema falado marca o fim de um certo gênero de cineclubes intelectuais, aqueles que sustentavam apaixonadamente os filmes estrangeiros difíceis, ou a excepcional vanguarda francesa, que não pôde resistir à vaga dos filmes falados comerciais. Rapidamente alguns retomam o tempo da arte muda. Henri Langlois e George Franju, no início dos anos 30, freqüentam os cineclubes parisienses, únicos lugares onde era possível ainda ver as grandes obras de Fritz Lang, F.W Murnau ou D.W Griffith. Havia o Club 32, criado por Jacques Aubin e Jean-Charles Reynaud (1932), o Phare Tournant de Raymond Blot (1933), o Club de la femme de Lucie Derain (1934) e o Club Cedrillon de Sonika Bo, para as crianças (1932). Langlois, associado a George Franju e Jean Mitry, funda seu próprio cineclube, em outubro de 1935: é o Cercle du Cinéma, que promove sua primeira seção em dezembro, no número 33 da Champs-Élyssées. Lá se pode ver O gabinete do Doutor Caligari, A vontade da morte e A queda da mansão Usher: tantos filmes hoje salvos. Para Langlois, “trata-se antes de tudo de mostrar os filmes e não de discuti-los depois. Os debates não servem para nada”.
O Cercle du Cinéma retoma a tradição dos clubes dos anos 20. Ele ensina a linguagem cinematográfica – sem discursos, apenas pela exibição do filmes – a futuros cineastas, tal como Jacques Becker, Marcel Carné e Jean-Paul Le Chanois. Qual maior lição que um filme de Griffith dos anos na Biograph? Em setembro de 1936, Henri Langlois, George Franju, Jean Mitry e Paul-August Harlé transformam o Cercle em Cinémathèque Française, cuja enorme influência sobre a nouvelle-vague dos anos 50 é igualmente bem conhecida.
Em 1936 também aparece o Ciné-Club de Paris, de Jacques Loew e Jacques Aubin, depois o Club des Cinq, de Jean Nery e Robert Chazal. Um evento de importância é a criação por Jean Renoir do movimento Ciné-Liberté, com Henri Jeanson, Léon Moussinac, Calude Aveline, Louis Cheronnet (Germaine Dulac cria por sua vez o movimento Mai 36). Os aderentes do Ciné-Liberté participaram do financiamento de documentários sociais e do filme La Marseillaise, de Jean Renoir. As palavras de ordem do movimento, na febre da Frente Popular, eram as seguintes: “União pelas atualidades populares; união por produções de cooperativas livres e independentes; união pela livre distribuição dos melhores filmes sociais e dos filmes proibidos (interditados); união contra a censura burocrática; união pela defesa e pela renovação do cinema francês”. Um jornal foi editado: Ciné-Liberté. Tal tentativa lembra bem aquela dos Amis de Spartacus, e também, de forma um pouco mais distante, a da Cooperativa do Cinema do Povo, sociedade criada por anarquistas em 1913.
O renascimento dos cineclubes foi naturalmente interrompido pela Guerra. Mas, após a liberação nós assistimos novamente a uma eclosão espantosa. Em março de 1946, os seis cineclubes existentes (Cercle Technique de L’ecran; Ciné-Clube universitaire; Cercle du Cinéma; Ciné-Club Cedrillom; Ciné-Jeunes; Club Français du Cinéma) se agruparam sob a Federação Francesa de Cineclubes (FFCC), presidida por Jean Painlevé; ela contava em abril de 1946 com mais de 80 clubes e mais de 50.000 membros.
Em 1948, foram recenseados na França 150 cineclubes, agrupando aproximadamente 100.000 membros. Em Paris, aparecem os novos cineclubes Griffith, Cineum, Du Vendredi, 46, Renault, Air France, Volontaire, Île-de-France, etc.! A Revue du Cinéma reaparece, em sua capa amarela, graças a Jean George Auriol; nós redescobrimos, graças as virtudes do 16 mm, as obras primas de Jean Vigo, Robert Flaherty, Howard Hawks, D.W Griffith ou Carl Dreyer. André Bazin, ele mesmo um animador de cineclubes, considera como um dos eventos mais importantes do pós-guerra este desenvolvimento um pouco monstruoso, que ele compara à voga dos anos 20, analisado mais acima.
Do pós-guerra data igualmente a floração de novas federações: A Federação Internacional de Cineclubes (FICC, 1947); A União Francesa das Obras Laicas de Educação pela Imagem e pelo Som (UFO-LEIS, 1953, na tradição da Liga de Ensino, que possuía no domínio do Audiovisual uma sólida experiência, com a lanterna mágica, desde 1895); A Federação Lazer e Cultura Cinematográfica (FLECC, 1946, este movimento católico evocava ele também esforços pretéritos da Maison de la Bonne Presse em matéria de educação pelo audiovisual, em 1986), A União Nacional Inter Cineclubes (UNICC, 1958), etc. Nós contamos também as novas revistas de qualidade; Ciné-Club (1947, da Federação Francesa de Cineclubes), Image et son (1951, pela UFOLEIS, transformada em Revue du Cinéma), Cinéma 55 (1955, pela FFCC), Jeune Cinéma (1964, pela Federação Jean Vigo), etc.
A instalação progressiva da televisão em todos os domicílios, o aparecimento do magnetoscópio e de fitas de vídeo-cassete para locação provocam uma brusca baixa no fenômeno cineclube, e do cinema em geral. Milhões de espectadores, de hoje, assistem o Ciné-Club da Antenna 2 ou do France 3: “Pelo destino de uma ironia cruel, é no momento onde a palavra composta: cineclube tem sua maior popularidade que o movimento ele mesmo atravessa as maiores dificuldades frente à indiferença dos poderes públicos”, nota François Truffaut em 1981. Ele relembra igualmente que o movimento dos cineclubes, que se desenvolveu magnificamente no pós-guerra “foi vítima de seu próprio sucesso, pois dele nasceu uma forma de exploração popular e seletiva, que é a extensão de sua vocação: trata-se das salas de arte e de ensaio”. Estas salas, agora suficientemente numerosas em Paris, notadamente no Quartier Latin, propõe, com efeito, os clássicos e filmes raros, por um preço reduzido, e em boas condições de projeção, em geral. Elas alcançam um público muito amplo, do colegial ao aposentado.
Além do mais, nas salas de arte e de ensaio nóss encontramos cada vez mais “retrospectivas” e “festivais” bastante completos, organizados por instituições poderosas: o Museu D’Orsay, que se dedica ao século XIX, propõe todo ano programas inteligentes de filmes mudos, que levam um numeroso público de curiosos e de conhecedores (o Festival de Pordenone, na Itália, foi o primeiro a se dedicar unicamente aos filmes mudos, com grandioso sucesso). O Centro George-Pompidou oferece seus ciclos variados, acompanhado por publicações de catálogos eruditos.
As cinematecas são de fato as principais rivais dos cineclubes. Desde suas aparições, elas ensinam o cinema junto aos jovens, da maneira mais simples, projetando os filmes sem debates nem comentários, a um preço muito baixo. Lembremo-nos, a Nouvelle-Vague nasceu da cinemateca de Henri Langlois, e esta continua em nossos dias a formar ou a influenciar cineastas (Wim Wenders ou Leos Carax, por exemplo, são dois filhos da Cinemateca). Em Paris, a Cinemateca Universitária exibe igualmente filmes bastante raros, os primitivos ou de cavação do cinema francês dos anos 30-50, pobres esteticamente, mas ricos em dados sociológicos. Enfim, a Cinemateca de Toulouse, com arquivos interessantíssimos, anima encontros e publica excelentes revistas.
Mas os museus e as cinematecas conduzem os cinéfilos, amadores e historiadores a um material bruto: o filme. Ele cai como um meteoro sobre a tela, sem nenhuma indicação histórica ou estética. Mais do que nunca, os cineclubes parecem aqui indispensáveis: eles podem propor debates, explicações sobre tal filme importante; eles nos parecem a anti-câmara obrigatória das cinematecas ou das salas especializadas.
Assim, do ponto de vista histórico, os cineclubes devem continuar a sustentar as obras contemporâneas de vanguarda. Um organismo como a Coordenação das Federações de Cineclubes exibe em 16 mm filmes de Peter Greenaway, de Jerzy Skolimowski, Krzystof Kieslowski, da mesma forma que as obras de Philippe Garrel, Jean-Luc Godard ou Jacques Rivette; obras importantes e ambiciosas, que talvez não conheceram jamais uma passagem na tela pequena [1] e que mereceriam certamente serem descobertas pelas novas gerações.
Os cineclubes de nossos dias têm deste modo um papel essencial a cumprir no ensino da história, da cultura e da linguagem cinematográfica, no domínio importante da educação do olho. Nos geralmente estamos de acordo sobre a utilidade dos cineclubes de liceus, colégios, estudantis. No entanto, o cineclubismo intelectual dos anos 20 e 30 desapareceu totalmente hoje em dia e ninguém parece sonhar em fazê-lo renascer. Não temos mais gente como Louis Delluc, Ricciotto Canudo, Jean Mitry, ou André Bazin. Existe aqui a evidencia de uma lacuna a ser combatida, uma ação a exercer, um lugar a ocupar. O surgimento atual, em diversas cidades do interior, de Clubs Cinéma que fazem – sem a etiqueta – tudo o que os cineclubes faziam outrora, prova que a exigência implantada por eles ainda vive.
[1] Circuito “fechado” de debates, estudo. Dentro da proposta de cineclubes debatida aqui. Não se trata de “tela pequena” como sendo TV ou vídeo. N do T.
Bibliografia:

ABEL, Richard. French Cinema, The First Wave. Princeton University, 1984.
DELLUC, Louis. Ècrits cinématographiques, éditon etablie par Pierre Lherminier, Cinémathèque Française, Éditions de L’Etoile, 1985-1990.
MITRY, Jean. De l’origine des ciné-clubs, dans 1895, bulletin de l’Association française de recherche sur l’Histoire du cinéma, nº3, 1987.
PINEL. Introduction au ciné-club: histoire, théorie, pratique. Éditions ouvrières, 1964
Institut Pédagogique National, Les ciné-clubs, 1964
MYRENT, Glenn. Henri Langlois, Denoël, 1986.

domingo, 23 de novembro de 2008

A imagem em movimento: tema ou objeto? - Parte 2

Continuação...

Bem, vamos dar uma olhada agora neste “surgimento a tempo dos arquivos”, como Pierce generosamente coloca, com uma breve e informal história da conservação fílmica, passando por suas características principais, algumas das quais servem para exemplificar as questões e ideologias dominantes que marcaram seu desenvolvimento.

Eu disse que algumas pessoas levaram o nascimento do cinema a sério, mas raramente foram seus primeiros inventores e empresários. Porém, a preservação cinematográfica teve suas isoladas vozes visionárias, pessoas que viram o potencial das imagens em movimento para alem de sua capacidade de excitar e entreter. Uma dessas pessoas foi Boleslaw Matuszevski, um cinegrafista polonês radicado em Paris que em 1898 – apenas três anos após os irmãos Lumière projetarem seus primeiros filmes para um público pagante no porão do Grand Café no Boulevard des Capucines em 28 de dezembro de 1895 – reconheceu a importância do filme como registro da vida contemporânea num livreto intitulado Uma nova fonte de História (Un nouvelle source de l’histoire). “O filme”, ele escreveu, “esse simples tira de celulóide impresso, constitui não apenas um documento histórico, mas uma parcela da história, e uma história que se apagou, mas não necessita de mágica para ganhar vida novamente... é necessário dar a essa fonte talvez privilegiada a mesma existência oficial e as mesmas possibilidades que são dadas a outros arquivos já reconhecidos”. Ele sugeria que esse arquivo de filmes proposto fosse ligado a uma organização como a Biblioteca Nacional francesa, e ele foi visionário o bastante para recomendar um sistema de depósito legal com padrões técnicos, como o depósito de negativos e o uso de cópias de referência para acesso. Como ele próprio previu, suas propostas não foram ouvidas: "Eu não tenho ilusões”, ele disse, “que meus projetos sejam rapidamente implementados”.


Houve sugestões similares no Reino Unido. No anuário Optical Magic Lantern Journal Annual de 1899, um escritor da revista Truth é citado como tendo dito que “uma espécie de Museu Nacional deveria ser criado para a coleção de todos os eventos públicos, como o Jubileu do ano passado”. Sete anos depois, o periódico Optical Lantern and Kinematograph Journal antecipou a possibilidade de depósito legal para filmes, como existia para livros e para a palavra impressa: “Chegará a época”, imaginou, “quando realizadores de registros bioscópicos terão que enviar duas cópias para o Museu Britânico, duas cópias para Biblioteca Bodleian e por aí em diante... até que um dia você será capaz de ver, anos e anos depois, esses incidentes acontecendo?”. De fato, o pioneiro cineasta britânico Robert W. Paul, em dezembro de 1896, ofereceu ao Museu Britânico várias de suas reproduções cinematográficas, que foram propriamente aceitas e depositadas no setor de Impressos e Desenhos. Em outubro de 1908, o Bioscope – num artigo chamado Não é uma moda – publicou algumas palavras que encorajavam o novo meio: “A voga do filme não é como dos cogumelos... Ele cresce vagarosamente como o carvalho... Ele não pode colapsar. Ele pode sofrer das tempestades de seus inimigos dos outros negócios de diversão e dos métodos inescrupulosos das pessoas mesquinhas, mas vai continuar crescendo e se ramificando em novos campos de utilidade. Seu futuro é garantido.” De volta à França, porém, o Ciné Journal de 27 de fevereiro de 1910 revelava que os primeiros quinze anos de produção de filmes franceses já tinham se perdido ou estavam ameaçados por mutilação, dispersão, perda, negligência ou destruição deliberada, e – ecoando Mautszewski – exigia o estabelecimento de uma “Cinematografoteca” para registro de direitos autorais e guarda de filmes, assim como existia para livros na Biblioteca Nacional Francesa. “O que”, reclamava o jornal, “se pode dizer da negligência de nossos contemporâneos? Eles não estão preocupados que o mais excitante espetáculo de suas vidas tenha desaparecido.”

Houve também nessa época um punhado do que você pode chamar de arquivos acidentais. A Biblioteca do Congresso nos EUA recebeu cópias em papel dos filmes [os chamados paper prints], com fins de registro de direitos autorais, de 1893 (os primeiros foram os “Kinetoscopic Records” de Edison) até 1912 – estes foram (satisfatoriamente) restaurados de volta para película. E o Abade Josef Joye, um padre jesuíta suíço, pediu, pegou emprestado e contrabandeou por baixo de sua batina mais de dois mil filmes curtos do início do cinema, de todos os tipos, para exibir em sua escola dominical na Basiléia nos primeiros anos do século XX. Cerca de 1.200 deles sobreviveram e estão preservados no NFTA no Reino Unido.

Houve também um arquivo constituído na Dinamarca nos anos 1920 para preservar registros de personalidades dinamarquesas célebres. Mas talvez o principal candidato ao título de primeiro arquivo de filmes autêntico e autorizado seja o Imperial War Museum, no Reino Unido, criado em 1917 como um memorial do Império Britânico para o sacrifício e esforço que a Grande Guerra representou. Em 1919, a coleta de registros cinematográficos oficiais da Primeira Guerra Mundial foi adicionado aos seus estatutos. O filme A Batalha de Somme (The Battle of the Somme) – agora designado como patrimônio mundial pela UNESCO – foi um de seus primeiros depósitos. A história do homem encarregado de construir esse arquivo – um discreto e talentoso servidor civil chamado Edward Foxen Cooper – é fascinante, e você pode encontrar um parte dela contada por Roger Smither e David Walsh do Departamento de Filme e Vídeo do Imperial War Museum em artigo em Film History, vol 12, n. 2000. O que está claro é que o arquivo de Foxen Cooper, apesar de especializado em conteúdo, foi, em conceito, a primeira organização de seu tipo a reconhecer e preencher a política completa de coleta, conservação, preservação, catalogação e disponibilização para acesso de filmes sobre a Primeira Guerra Mundial. Ele até advogou exibições públicas de filmes, utilizando a coleção do Museu, e lutou para um papel mais ativo do governo na filmagem de eventos importantes.

Mas nos fomos ensinados que os primeiros arquivos de filmes de verdade – aqueles que reconheceram o cinema como arte e como registro – foram criados em 1935. Dois anos antes, um protótipo de arquivo foi estabelecido na Suécia, mas era uma coleção privada, do falecido Einar Lauritzen [milionário suíço, oriundo de uma família de banqueiros]. Os primeiros arquivos oficiais dessa espécie, criados entre 1933 e 1935, foram o National Film Library do Reino Unido (depois National Film Archive), integrado à alçada educacional do então recém-fundado do BFI (o celebrado autor e membro do parlamento, John Buncan, foi a força atrás dessa iniciativa); o Departamento de Filme do MoMA de Nova York, que ambicionava coletar filmes como uma extensão de sua coleção de arte; e o Reichsfilmarchiv em Berlim, um produto da paixão de Josef Goebbels pelo cinema como instrumento de propaganda. Em 1936, a Cinemateca Francesa, a coleção privada do cinéfilo Henri Langlois, foi estabelecida em Paris (a expressão Cinemateca foi cunhada pela primeira vez pelo crítico francês Léon Moussinac, em um artigo da Cinémagazine em 1921; ele se referia a uma “biblioteca do cinematógrafo, ou cinemateca”. Ele também, em 1929, sublinhou o papel que uma cinemateca podia ter na vida cultural de uma nação - justamente a missão que a Cinemateca Francesa assumiria).

O que levou a esta súbita preocupação pelo cuidado e uso sério do cinema? Não foi apenas a perda de tanto do cinema silencioso – isso só ficou claramente aparente com o desenvolvimento dos arquivos –, mas uma crescente consciência do filme do algo mais do que apenas uma diversão popular: era agora oficialmente uma forma de arte. O crescimento dos círculos de filmes intelectualizados nos anos 1920, como The Film Society, em Londres, que importou os novos e iconoclastas filmes russos, franceses e alemães daquele período, e os movimentos artísticos europeus de vanguarda européia como o Expressionismo, o Surrealismo e o Futurismo, que abarcaram o cinema, contribuíram fortemente para os novos conceitos que viam os filmes como merecedores de serem guardados por seus méritos artísticos. Nos EUA, isso foi reforçado pela chegada de cineastas imigrantes da Europa, como F. W. Murnau, Ernst Lubitsch ou ambos os Vons, o Stroheim e o Sternberg, que injetaram uma estética do velho mundo no impetuoso cinema americano.

Um arquivo se destaca dentre esse disparatado bando de organizações novatas, e é aquele que se tornaria o National Film Archive (NFA) do Reino Unido. Ele merece uma visão mais próxima por ter se tornado universalmente conhecido como modelo de boas práticas e políticas de preservação. Ele nasceu como parte da competência do BFI, ele próprio criado em 1933 para promover filmes culturais e educativos na vida nacional e (como definido numa virtual sub cláusula) para “ser responsável pelos registros cinematográficos e manter um repositório nacional para filmes de reconhecido valor”.

Ernest Lindgren, fundador e primeiro curador do NFA, não foi um colecionador romântico como Lauritzen ou um flamboyant excêntrico como Henri Langlois. Formado em Literatura Inglesa e amante do cinema, ele entrou no instituto em seu Setor de Informação. Sua visão do arquivo se diferenciava da de Langlois e de outros contemporâneos de duas importantes formas. Primeiramente, ele tinha uma visão completamente eclética do filme e da preservação de filmes. Para ele, filmes de não-ficção, filmes de atualidade, documentários, filmes amadores – filmes como um registro vital da nossa vida e do nosso tempo – deveriam receber a mesma importância que os longas-metragens de ficção feitos para o cinema, especialmente num país como a Inglaterra, com uma forte tradição documentária. Eles eram um ingrediente autêntico dessa forma de arte. Numa brochura da NFA publicada em 1958, Lindgren especulava sobre a inquestionável importância e valor que haveria em registros filmados, por exemplo, da coroação da Rainha Elizabeth I e sua vida em Londres, se o cinema tivesse sido inventado 350 anos antes. Ele poderia ter tornado esse argumento igualmente potente, porém mais realista, se tivesse aproximado essa noção ao ser referir nesses termos à Guerra Civil Americana ou à Guerra da Criméia, já que esses eventos foram vívida e extensivamente registrados pelos precursores imediatos do cinema, como a fotografia. Mas o arquivo de Ernest foi o primeiro e único arquivo nacional durante muitos anos a adotar essa postura de ampla aquisição. Mais tarde, ele foi o primeiro a abraçar a televisão como uma parte importante da missão de coleta do NFA.

Em segundo lugar, ele nunca permitiria que cópias únicas fossem projetadas. Ele se preocupava mais com a sobrevivência em longo prazo da coleção do que com o acesso imediato. Cópias de visionamento viriam quando houvesse dinheiro para fazê-las. O armazenamento e a conservação adequados eram sua principal prioridade. Nesse campo, Lindgren se estranhou muito com Langlois, que exibia todo tipo de cópia que tivessem, não importando o dano infligido em cópias únicas. Langlois, então, virou um herói para seus espectadores, entre eles os críticos e futuros cineastas da Cahiers du Cinéma – Godard, Truffaut, Chabrol e os demais – enquanto Lindgren (sem admiradores glamourosos como esses) ganhou a fama de um rígido burocrata que odiava filmes e não deixava ninguém vê-los. Segundo recorrente piada de seus inimigos, NFA significava “Nenhum Filme Acessível” (No Film Available).

Mas qualquer um que já leu o livro de Lindgren, A arte do filme (The Art of the Film), sabe como isso é injusto. Na realidade, ele regularmente programava filmes da coleção do arquivo – cimentando o caminho para a criação da sala de cinema do BFI (o National Film Theatre) – e seu comprometimento genuíno com acesso o levou eventualmente a criar o primeiro serviço de visionamento de arquivos para estudantes, pesquisadores e cineastas (Eu sei disso por que eu fui o encarregado de escrever o rascunho dessa proposta). E, no final, suas medidas protetoras venceram: assim que as cópias do arquivo foram progressivamente preservadas e copiadas (um curador seguinte, David Francis, instituiu a prática de fazer uma cópia de checagem – na verdade, uma cópia de visionamento – de todo filme duplicado para preservação), a coleção de cópias de acesso do NFA se tornou não apenas a maior de todos os arquivos, como uma das que possuem cópias de melhor qualidade. Nos anos 1990, o serviço de visionamento do Arquivo com dois funcionários para agendamento, liderado pela ex-catalogadora Elain Burrows, chegou a emprestar mais de seis mil filmes anualmente para pesquisadores, cinemas do BFI e para arquivos estrangeiros – mais até do que o próprio departamento de distribuição do BFI. “Exibir para se preservar”, disse Langlois. “Não”, disse Lindgren, “Preservar para se exibir”.

O resultado dessa disputa ideológica eventualmente levou ao racha da comunidade dos arquivos de filmes, e por muitos anos Langlois e a Cinemateca Francesa, junto com alguns arquivistas com a mesma mentalidade, como James Card da George Eastman House e Freddy Buache na Suiça, se afastaram do movimento internacional de arquivos de filmes. Como Luke McKernan diz em seu verbete sobre Ernest Lindgren na Enciclopédia de Filmes Britânicos (Encyclopedia of British Film) de Brian McFarlane: “Lindgren não era tão divertido quando Langlois, mas era ele quem estava certo”.

Lindgren trabalhou em seu escritório até sua morte em 1973. Àquela altura ele tinha estabelecido regras de arquivos específicas, como catalogação padronizada, divulgação de procedimentos de seleção, e rigorosa revisão de filmes, que se tornaram práticas básicas da arquivística audiovisual em todo o mundo. Ele também negociou os primeiros acordos de aquisição vantajosos com uma indústria de cinema notoriamente desconfiada, pouco cooperativa e obcecada em proteger seus diretos, e que, ao mesmo tempo, atacava constantemente o governo por causa do depósito legal de filmes. Ele fez outra coisa que foi muito inteligente. Ele colocou no Setor de Preservação de Filmes do Arquivo um jovem chamado Harold Brown, que era office boy no Instituto. Tornando-se praticamente um autodidata após um sacrificante curso para projecionistas sobre como fazer emendas e revisar filme, e que, desde o início, inventava suas próprias técnicas de manuseio e preservação de filmes de arquivo, Harold Brown veio a se tornar um dos maiores especialistas do mundo em preservação de filmes. Desse modo, ele podia rapidamente treinar funcionários sem experiência em trabalhos especializados como reparo de filmes, e dar ajuda prática e esperança a arquivos em países pobres com pouco ou nenhum recurso. Sua visão básica é que profissionais de fora da indústria do cinema adotavam atitudes de visão mais longa do que a de profissionais da indústria cinematográfica, que viam o filme como o produto para exploração em curto prazo e com uma breve vida comercial, e conseqüentemente o manuseavam com menos preocupação para com sua sobrevivência mais longa.

Vou me reter à apenas duas histórias sobre Harold, mas ambas ilustram momentos importantes – talvez cruciais – da técnica arquivística de filmes. O primeiro o próprio Harold é quem conta numa lembrança sobre o início de sua carreira que eles escreveu em Este filme é perigoso: “Eu me deparei com um filme com um rasgo ao longo de dois fotogramas. O jeito ‘certo’ de lidar com isso era cortar os dois fotogramas danificados e fazer uma emenda normal. O que eu fiz foi juntar as partes rompidas e colar um pedaço de filme transparente sobre o corte. Eu fui severamente criticado pelo supervisor técnico do Instituto, mas quando Lindgren viu, ele disse: ‘você estava tentando salvar os fotogramas, não estava?’. Ele claramente estava aprovando aquela medida... e esse incidente revela a postura que passou a nortear nosso trabalho dali em diante”.

A segunda anedota de Harold Brown é narrada em outra citação de Tesouro secreto do século XX, no qual Harold demonstra sua revolucionária copiadora quadro a quadro Mark IV, projetada para copiar os primeiros filmes Lumière e construída por ele próprio com “peças de brinquedo metálico de montar, engrenagens de câmeras antigas, madeira balsa, clipes de papel, elástico de borracha e elástico de estilingue”.

É impossível exagerar a importância desse equipamento do “Dr. Pardal”, que copiou e salvou inúmeros e preciosos rolos de filmes nitratos encolhidos que, por muito tempo, nenhuma outra copiadora conseguia passar – assim como é impossível exagerar a contribuição do próprio Harold Brown para o desenvolvimento da arquivística audiovisual. Nas palavras de David Francis, segundo curador do NFA e depois chefe da divisão de filmes da Biblioteca do Congresso, em Washington, “foi a combinação única da mente ordenada e curiosa de Ernest Lindgren e a habilidade de Harold Brown em pensar em soluções simples e baratas para problemas técnicos complexos, que fez do National Film Archive a autoridade mundial em preservação cinematográfica”.

Eu devo agora fazer uma atualização da história da arquivística cinematográfica e considerar seu futuro. Em 1938, os primeiros arquivos de filmes se reuniram em Paris para criar a Federação internacional de Arquivos de Filmes (FIAF). A Segunda Guerra Mundial interveio e a FIAF teve um recomeço em 1946, agora sem o Reichsfilmarchiv, mas com novos membros em Bruxelas, Basiléia, Praga, Amsterdã e Varsóvia. Desde então o movimento internacional de preservação cinematográfica cresceu rapidamente por todo o mundo, com uma inevitável tendência na direção de arquivos na Europa e América do Norte, mas com uma significativa adição de membros da América Latina, Ásia e África. Sobre aquele primeiro encontro em 1938, Robert Daudelin, ex-presidente da FIAF, escreveu, por ocasião do 50° Aniversário da FIAF: “1938 marcou o fim do período heróico: aquele dos piratas românticos, trabalhando secretamente e isolados, entusiastas do cinema do nitrato subterrâneo. A criação da FIAF marcou o início oficial da era da colaboração, do intercâmbio e de projetos internacionais. Não significou o fim dos mistérios e segredos, mas paixões puderam ser reveladas sem vergonha e o papel dos conservadores de filmes se tornou respeitável. Os arquivos de filmes emergiram de suas atividades clandestinas...” (Bem, pelo menos a maior parte deles, em alguma medida).

Hoje a FIAF tem mais de 125 membros em 80 diferentes países, abrangendo todo tipo possível de arquivo de filme – grandes arquivos nacionais, instituições governamentais, arquivos de filmes especializados e regionais (O Reino Unido sozinho tem arquivos de filmes servindo cada grande região, incluindo arquivos nacionais sui generis na Escócia e no País de Gales), arquivos religiosos e militares, museus de cinema, museus de arte, departamentos universitários, fundações privadas; alguns pobres e outros não tão pobres (não que exista algo como um arquivo rico) – mas todos dedicados, através de um código de ética, à coleta e à preservação de filmes, tanto como elementos do patrimônio cultural como documentos históricos. Um livro excelente e acessível foi escrito sobre o movimento de arquivos de filmes (embora a orelha do livro infelizmente use a frase “imagens tremeluzentes do passado”) que é o livro de Penelope Houston Guardiões do fotograma (Keepers of the frame), publicado pelo BFI em 1994. Entretanto, eu vou ressaltar um aspecto particularmente importante da cooperação entre arquivos, especificamente a repatriação de filmes perdidos ou danificados. O filme é, acima de tudo, um meio internacional, vastamente disseminado por todo o mundo (e era assim particularmente na era silenciosa, quando a língua não era sequer um problema). Ernest Lindgren gostava de apontar o absurdo, por exemplo, do NFA do Reino Unido se concentrar somente em filmes britânicos – como se a National Gallery se restringisse apenas às pinturas britânicas. Felizmente, as maiorias dos conservadores de filmes concordavam com essa visão e freqüentemente os filmes perdidos de um país reaparecerão em outros arquivos, talvez hibernando até finalmente serem catalogados. Parte dos objetivos da FIAF é encorajar e possibilitar o retorno desses filmes aos seus países de origem através de doação ou troca. Alguns arquivos surpreendentes se revelaram uma rica fonte de cópias perdidas na diáspora do cinema, entre os ele os do Uruguai, da Tchecoslováquia, da Holanda e da Austrália. Não é incomum até hoje um clássico britânico ou americano aparecer numa cinemateca exibindo legendas em tcheco.

Eu posso contar uma divertida anedota sobre esse assunto. Num recente festival de cinema em Londres, eu programei uma restauração do mais popular filme silencioso australiano, "O cara sentimental" (The sentimental bloke), um filme de 1919 que por muitos anos sobreviveu somente na forma de um fragmento. Em 1970, um jovem (agora venerável) conservador de filmes, Ray Edmondson, da Divisão de Filmes do Australian National Library, sediado em Canberra (hoje The National Film and Sound Archive of Australia), numa visita à George Eastman House nos EUA, parou em frente a uma dúzia de latas de filmes etiquetadas como "A loira sentimental" (The Sentimental Blonde). Bem, poderia ser um filme esquecido da Jean Harlow ou algo parecido, mas ele era desconfiado – e seu faro estava correto: o arquivista americano, sem familiaridade com a gíria “cara” (bloke), a transformou em “loira” (blonde). Estes eram os negativos de câmera originais em nitrato de “O cara sentimental”, remontado para o mercado americano em 1921. Negociações para o retorno desse material para Canberra logo ocorreram, e o resto faz parte da história da preservação cinematográfica australiana. “A loira sentimental” foi então adicionada à lista dos títulos mais idiotas de todos os tempos, junto com Win Slow Boy ou Charabanc for Dead Lovers [1].

Eu também exibi no mesmo Festival de filmes de Londres a restauração de um filme silencioso americano de 1922 perdido, "Além das rochas" (Beyond the Rocks) – o único filme estrelando Gloria Swanson e Rodolfo Valentino junto - encontrado em partes numa coleção privada de dois mil rolos recentemente doada ao Netherlands Film Museum. Sem piadas aqui, mas é um sinal que ainda há tesouros perdidos meio escondidos debaixo de nosso narizes, e filmes freqüentemente não se perderam, mas estão desaparecidos. Eu digo isso, mas há países onde a situação é muito mais desastrosa. Por exemplo, um outro filme restaurado exibido neste mesmo festival foi um longa chileno silencioso de 1925, El húsar de la muerte – a história do herói nacional chileno Manuel Rodríguez – um dos três únicos longas que sobreviveram dentre os dezesseis produzidos no Chile na década de 1920, vítimas sobretudo de regimes ditatoriais repressivos ou – mais comum – de fábricas de plástico que derretiam cópias de nitrato para fazer escovas de cabelo.

Quais são, então, os problemas e desafios que os arquivos audiovisuais enfrentam hoje? Para todas as intenções e objetivos, eles permanecem fundamentalmente os mesmos que há setenta anos – no máximo, aumentados pelo tempo e pelo novo dilema de como lidar com novas e volúveis tecnologias em um mundo bombardeado por imagens em movimento de todos os tipos. Coleções de filmes de arquivo ainda vivem de orçamentos assustadoramente baixos, ainda mais quando comparados com artes tradicionais como ópera, artes plásticas e música. Anthony Smith, antigo diretor do BFI conhecido pelo seu talento em fazer o falecido Sir John Paul Getty [milionário filantropo, 1932-2003] assinar cheques, costumava dizer que precisaria apenas do equivalente ao que a National Gallery gastava anualmente com a compra de uma pequena pintura Impressionista para fazer funcionar todo o NFA. Os arquivos ainda têm poucos direitos; eles ainda enfrentam a indiferença ou a equivocada resistência de setores da indústria de filmes comerciais; quase nenhum arquivo no mundo tem um sistema de depósito legal satisfatório – apesar de esforços do lobby contrário, o Reino Unido não tem nenhum tipo de depósito legal para filmes, embora tenha amplos direitos (e fundos) para registrar e preservar programas de televisão. A bomba-relógio do nitrato citada por Scorsese, como acontece no clímax dos filmes de James Bond, continua contando seus minutos finais em muitos arquivos, esperando por aquela súbita curva ascendente no gráfico de deterioração. Enquanto isso, seu substituto nos últimos cinqüenta anos – o filme de acetato – que era suposto para durar por quinhentos anos e salvar nossas coleções da maldição do nitrato, ele próprio ameaça se deteriorar arbitrária e inesperadamente nos cofres sob o acre cheiro de vinagre. Se o nitrato é câncer na rosa do cinema, o acetato se tornou a minhoca da maçã. O poliéster, quimicamente estável e aparentemente robusto, é o novo suporte – mas será que ele tem um futuro viável num cenário predominantemente digital? Nossos filmes coloridos estão inexoravelmente desbotando, sem chamar atenção, há quase meio século, apesar da intensa campanha dos anos 1980 de Martin Scorsese e seus companheiros cineastas americanos para que os fabricantes de películas reformulassem a química da emulsão colorida. David Hockney comentou memoravelmente na época que “apesar das cores de Veermer terem mais de 300 anos de idade, vai viver mais do que as cores da MGM”. Mais recentemente, nós experimentamos a virtual obsolescência do videocassete, e nesse caso enfrentamos o território incerto e desconhecido das novas tecnologias – um ambiente em constante fluxo, desenvolvimento e mudanças de formatos.

Entretanto, o que torna o cinema único entre as artes não é apenas o fato de sua imperfeita composição o tornar vulnerável, mas que seu conteúdo visual original – sua razão de ser – não pode ser repetido ou fielmente reproduzido depois de sua desintegração ou desaparecimento ser permitido. Grandes pinturas sobrevivem porque são altamente visíveis e intrinsecamente atraentes, e são logo consensual e publicamente protegidas (sem mencionar seu lucrativo valor turístico). A literatura – a palavra escrita – pode sobreviver sem detrimento em muitas formas diferentes, como rascunhado no verso de um envelope, por exemplo (embora se Rudyard Kipling ou T.S. Eliot tiverem escrito no envelope, você provavelmente irá querer guardar o envelope), ou mesmo – como na cena clímax de Farenheit 451 [dir. François Truffaut, 1966] – confiadas à memória humana. Uma imagem original de um filme, sem a garantia de preservação intencional, é para sempre ameaçada pelo esquecimento. “O filme”, disse Orson Welles, “tem uma personalidade, e essa personalidade é autodestrutiva. O trabalho do conservador é antecipar o que o filme pode fazer – e prevenir isso”.

Então, o que os conservadores de hoje e de amanhã devem fazer? Três coisas. Primeiro, eles não devem entrar em pânico. Eles não devem se curvar às pressões para comprometer suas coleções. Lembrem-se que quando os cofres estão lotados, “debaixo da cama” ainda é uma opção válida. Eles devem a todo custo manter e guardar os materiais originais em seu cuidado e fazer o máximo que puderem para conservar e preservá-los pelo tempo necessário, lembrando-se sempre que não se deve confiar em nenhum suporte cinematográfico. A indústria comercial será a primeira a lhe agradecer. Do mesmo modo, deve manter integralmente e disciplina especializada de catalogação de seus filmes.

Em segundo lugar, assim como eles devem perpetuar a experiência cinematográfica, devem também monitorar e abarcar as novas tecnologias digitais e todas as outras tecnologias que vierem; os arquivos que falharem em fazer isso e preservarem somente o passado irão se apagar e depois morrer. A tecnologia digital de imagens em movimento já revolucionou a realização e exibição cinematográfica. Ele já transformou o acesso às coleções dos arquivos e ajudou a restaurar filmes danificados aparentemente irrecuperáveis. No futuro, qualquer que seja a forma assumida, novas tecnologias vão salvar as coleções – até porque eventualmente elas terão salvá-las. Isso significa que os arquivos devem conspirar de perto com as indústrias de novas tecnologias, com os novos tipos de laboratórios de restauração, e com aqueles estúdios e detentores de direitos que estão finalmente levando a sério seus antigos catálogos e tem, de longe, muito mais recursos que qualquer arquivo poderia sonhar em ter para restaurar e dar nova vida aos seus filmes.

Em terceiro lugar e acima de tudo, os arquivos – na verdade, todos nós que amamos os filmes – devem protestar barulhenta e incessantemente para elevar o status cultural das imagens em movimento no Reino Unido. Mesmo hoje, o filme neste país não é automaticamente encarado como uma forma de arte legítima. Apesar dos protestos de uma pequena elite, que alega reconhecer sim o filme como arte, não há um reconhecimento público como, digamos, a pintura claramente possui. Isso é ainda mais verdadeiro em relação ao novíssimo meio televisivo, apesar das claras evidências a seu favor como, por exemplo, os inovadoras programas de Dennis Potter e Stephen Poliakoff, os incomparáveis documentários de Bronowski, Clark, Attenborough e Vas, ou a genialidade cômica de Hancock, Milligan, Morecambe, Cleese e Gervais.

Para conter esse inerente materialismo, nós devemos exibir nossos produtos, seja Napoleon, The Red Shoes, Josef Joye ou Mitchell and Kenyon, e exigir o crédito por salvá-los como tesouros nacionais autênticos. Esse é o único modo de despertar consciência pública e política e cultural e fazer com que o patrimônio cinematográfico seja adequadamente financiado. Sempre me pareceu deprimentemente significativo que o financiamento do governo para o filme nos Reino Unido foi ligado durante muitos anos a coisas como telecomunicações ou esportes, ao invés de encaminhado através, digamos, do Arts Council (não que eu esteja necessariamente advogando que deva – de fato, hoje o BFI recebe seu financiamento através do Film Council do Reino Unido). O filme sempre foi colocado firmemente no seu lugar; ou lhe foi dito para se sustentar sozinho através do lucro da indústria. Bem, na verdade, por que não, já que há de fato lucro? Se a indústria bilionária dos videogames, por exemplo, fosse taxada em meio centavo para jogo que vendesse, os problemas de nossos arquivos acabariam. Depois de tudo, eu tento salvar Veneza toda vez que eu como uma pizza no PizzaExpress... Esses esquemas não estão além de nossa imaginação ou esperteza [2].

Eu finalmente termino citando novamente Anthony Smith, de uma brilhantemente perspicaz palestra que ele deu sobre a preservação de filmes e televisão para o Royal Society of Arts em 25 de março de 1981:

“O arquivo não é um tributo ao passado, mas uma garantia para o que vem pela frente. Ele representa apenas a ponta do iceberg da memória social e, logo, é parte do futuro... Chega-se a um ponto em que o patrimônio de uma sociedade, seja qual for a tecnologia em que esteja baseado, torna-se responsabilidade comum de toda a sociedade”.

Mas eu dou a última palavra, tipicamente objetiva, a Ernest Lindgren, de sua palestra em 1958: “Os filmes somente podem ser preservados permanentemente pelo interesse nacional por uma organização nacional que tenha, ela mesma, garantia de permanência, que desfrute da confiança da indústria cinematográfica, e que seja provida com recursos para aplicar em seus filmes o cuidado técnico especializado que sua preservação exige. Aqui reside a justificativa para um arquivo de filmes nacional”.

Clyde Jeavons
(tradução de Rafael de Luna)

[1] - Ao invés de Winslow Boy (dir. Anthony Asquith, 1948) e Saraband for Dead Lovers (dir. Basil Dearden, 1948).

[2] - A rede de pizzarias inglesa PizzaExpress criou uma promoção em que de cada pizza Veneziana vendida, 25 centavos eram doados para o fundo “Veneza em Perigo”, criado após as inundações de 1966 na cidade italiana. Segundo o site da cadeia, mais de £1.7 milhão foram doados no Reino Unido nos últimos 25 anos.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A imagem em movimento: tema ou objeto? - Parte 1

Esta transcrição de uma palestra dada em 6 de dezembro de 2005 por Clyde Jeavons, ex-curador do National Film and Televison Archive (NFTA) do British Film Institute (BFI), da Inglaterra, foi publicada no Journal of Film Preservation, n. 73, de 2007. Proferida para uma platéia de arquivistas, trata-se de um amplo apanhado da história da preservação cinematográfica no mundo e, em particular, no Reino Unido, rico em observações pertinentes, detalhes valiosos e tiradas bem-humoradas. Além de um panorama geral sobre as principais questões pertinentes à área, a palestra de Jeavons fornece também um histórico sobre importantes instituições inglesas, como o Imperial War Museum e o próprio National Film Archive (depois National Film and Televison Archive) e a respeito de figuras de destaque como Harold Brown e Ernest Lindgren, conhecido pela rixa com Henri Langlois, de quem sempre perdeu em termos de fama e status.

A imagem em movimento: tema ou objeto?
Clyde Jeavons
(tradução de Rafael de Luna)

Em maio de 1992, através de um acordo negociado com John Grist, então Supervisor da Unidade de Registro do Parlamento, o National Film and Televison Archive (NFTA) do British Film Institute (BFI) começou a adquirir as cópias de preservação dos registros em vídeo parlamentares: ou seja, o acontecimentos da Casa dos Comuns e, em nível seletivo, os procedimentos dos comitês e sessões de debate na Casa dos Lordes. A BBC esteve filmando a Casa dos Lordes desde 1985. O acesso deveria ser dado aos Membros do Parlamento e também às redes autorizadas para fins comerciais. O público também podia ter acesso, mas deveria pagar por cópias de visionamento (Eu devo dizer que houve muito pouca procura por esse setor nos últimos anos). Em 1999, o acordo foi renovado com o sucessor de John Grist, Barbara Long, e acertado para incluir os registros sonoros anteriormente guardados pela Biblioteca Britânica, sendo mutuamente aceito que todos os registros parlamentares deveriam ser colocados juntos num só local. Os registros estão agora em formato digital e planos mais abertos e planos de reações de paralamentares (se o parlamentar em questão estiver sendo referido por um falante), anteriormente proibidos, estão agora liberados.

Eu dou esses pedaços de informações aparentemente gratuitas porque eu acredito que Maurice Bond, guardião dos registros do parlamento por 35 anos, até 1981 – e em cujo nome eu tenha a honra e o privilégio de dar essa palestra – teria aprovado os desenvolvimentos nesse campo específico: ele era uma arquivista profundamente compromissado com o progresso, com o desenvolvimento das práticas de preservação, de adequado armazenamento e de técnicas de conservação, e à permanência dos registros parlamentares britânicos.

A atual estrutura, escopo e escala dos arquivos de filmes em todo o mundo já foram descritos por Crispin Jewitt (coordenadora do conselho da Audiovisual Archives Association), que mostrou como essa área se tornou extensa e ampla. Eu me restringirei a somente um ponto de vista: como eu sou um conservador de filmes por profissão, discutirei, sobretudo, os arquivos de filmes e a preservação de filmes, e seu papel na breve história do cinema. Porém, falarei de filme no sentido mais amplo da palavra. Eu ainda gosto da definição de filme como foi originalmente expressa no artigo primeiro do estatuto da Federação Internacional de Filmes (FIAF): “Por filme se entenda o registro de imagens em movimento, acompanhado ou não por som, registrado na película cinematográfica, fitas de vídeo, discos óticos, ou qualquer outro meio conhecido ou que venha a ser criado”. E como sabemos, no atual panorama digital, novos meios estão sendo inventados enquanto estamos conversando.

As palavras-chave dessa definição são “imagens em movimento”, e essa é a frase que devemos lembrar-nos durante esse panorama histórico da preservação cinematográfica. Eu estive na verdade pensando em três diferentes títulos para essa palestra, todos eles variações do mesmo tema. Eu os convido a escolher um. Eles são: A imagem em movimento: tema ou objeto?, Imagens em movimento: conteúdo versus suporte e O filme como arte e artefato. Eles todos pretendem sugerir e mostrar que a História do cinema em seus 110 anos de existência – seu período primevo, se preferirem – e a ainda mais breve História da preservação cinematográfica tem sido uma batalha contínua pela sobrevivência que se deu entre a miraculosa invenção das imagens fotográficas em movimento e a perversamente instável, autodestrutiva e cronicamente efêmera sucessão de suportes dos quais elas foram dependentes; a exploração mecânica e eletrônica aos quais elas foram constantemente sujeitadas; e, ainda, à indiferença e negligência humana. Eu quero sugerir que sem a chegada tardia da preservação cinematográfica no século XX, não haveria uma história do cinema coerente de seus primeiros cem anos – ou, no melhor dos casos, haveria uma história muito incompleta, repleta de conjecturas. O filme, grosso modo, é uma colisão catastrófica de química, física, biologia, teimosia e a segunda lei de termodinâmica.

Alguns desses pontos são destacados num pequeno filme, que – como costuma acontecer – nos dá um quarto título para acrescentar a nossa lista: Nosso patrimônio cinematográfico inflamável [Our inflammable film heritage, dir. Mark-Paul Meyer, Holanda, 1994]. É uma introdução evocativa - e bastante bela, em minha opinião – de um filme comum de treinamento para técnicos de arquivo feito nos anos 1990, com o apoio da NEDUA por um grupo de Arquivos de filmes europeus, principalmente da Itália, Holanda, França e Portugal. Seu impacto está um pouco diminuído esta noite pela qualidade da imagem disponível para nós, resultado da compressão digital e da projeção de dados eletrônicos (me parece, às vezes, que à medida que a tecnologia avança, as imagens ficam piores), mas eu gosto dele por que destrói uma série de mitos para aqueles que têm uma idéia preconceituosa do primeiro cinema, e para aqueles que não têm absolutamente idéia alguma sobre a origem das imagens em movimento ou sobre como essas primeiras imagens em movimento eram.

Os primeiros filmes – aqueles feitos na primeira década após as primeiras exibições públicas em 1895 – não eram primitivos, como são algumas vezes descritos. Elem podiam se ressentir da falta de fluidez ou da compreensão do que uma câmera de cinema era capaz de fazer, mas eles freqüentemente eram de grande qualidade fotográfica (nós só temos que olhar para a produção de Mitchell e Kenyon [1] para comprovar isso); eles podiam desde o início conter cores belíssimas; eles capturavam o mundo à sua volta com corajosa simplicidade e clareza (assista aos primeiros filmes dos irmãos Lumière, de Birt Acres e Robert Paul); eles descobriram uma nova dimensão de fantasia e imaginação (veja as viagens maravilhosas de fantasia e magia de James Williamson, Georges Meliès e Charles Pathé); e elas cobriram a maior parte da gramática do cinema muito antes de D. W. Griffith ser creditado por sua invenção. O close-up, por exemplo. Se já foi feito no cinema um close-up maior do que o do famoso filme gag de Williamson, de 1901 – The big swallow – no qual um homem em chapéu Gelô engole tanto a câmera quanto o cinegrafista, eu não conheço.

E se fossem projetadas corretamente – como ainda podem ser – as primeiras imagens em movimento não flickavam (tremeluziam), elas não tremiam ou balançavam ou eram filmadas na velocidade errada; e elas não eram mais granuladas do que filmes feitos cinqüenta anos mais tarde (o grão é, no final das contas, a textura que faz o filme funcionar). Estes são clichês do cinema silencioso que os arquivistas de filmes detestam e fazer o máximo para enterrar, embora muitos repórteres e jornalistas preguiçosos continuem surdos a esses argumentos. Há ainda outro velho bordão, que talvez seja o que mais irrite os conservadores de filmes... Eu cito de uma reportagem recente no jornal Guardian celebrando uma iniciativa louvável levada a cabo pela British Telecom e pela BBC, envolvendo tanto o British Film Institute (BFI) quanto o canal de televisão Channel 4, chamada Creative Archive Group, lançada para disponibilizar filmes de arquivo para download: “Como um ex-produtor cinematográfico, eu acredito apaixonadamente no conceito, na verdade, na santidade, dos direitos autorais. Mas eu tenho esperado um longo tempo para ver similar empenho e imaginação utilizados num generoso sistema que permita compartilhar o tesouro de conhecimento que está trancado em arquivos empoeirados por todo o Reino Unido”. Ah, “trancado em arquivos empoeirados” – le cliché juste – sempre presente nos momentos de retórica cultural! Na verdade, são três clichês pelo preço de um: “trancado... arquivos empoeirados... por todo o Reino Unido”, ou seja, todo o país é culpado! O que está faltando é: “trancado e eles jogaram a chave fora!” E de quem sãos essas palavras (ditas para um público que inclui, por acaso, os representantes do próprio BFI, aparentemente arquivos cheios de poeira)? Bem, é melhor não dizer nomes hoje, embora sua “majestade” devesse saber melhor das coisas, já que entregou muitas cópias de seus filmes para o National Film and Television Archive (NFTA), e ele próprio usou extensivamente nossa coleção para pesquisar os jogos olímpicos de Paris em 1924... De qualquer maneira, eu o perdôo e talvez alguns dos arquivos de filmes britânicos estejam mesmo trancados para o acesso público. Mas empoeirados? Se eu e meus colegas no BFI realmente passamos todos esses anos levantando dinheiro para construir arquivos caríssimos, de excelência, protegidos contra incêndios e com umidade e temperatura controladas, somente para esquecermo-nos de separar umas 30 libras para comprar um aspirador de pó, nós é que mereceríamos ser trancafiados!

Na verdade, são os clichês que já estão cobertos de poeira e deveriam ser trancafiados. Mas essa é apenas mais uma manifestação na luta pelo reconhecimento, compreensão, consciência e esclarecimento da imprensa e do público que todos os arquivistas, independente de sua disciplina ou campo, têm de sofrer e se engajar. A arquivística é, quase por definição, um trabalho anônimo, sem glamour e reconhecimento, eternamente mal pago e mal compreendido, e aparentemente incapaz de ter sua própria voz ou definir seu próprio perfil. Nós todos sabemos disso. Eu mencionei Mitchell e Kenyon, a extraordinária coleção de mais de cem anos que foi objeto da apresentação de Patrick Russel mais cedo nesta conferência. De fato, esta coleção se tornou bastante famosa. E foi mesmo, na semana passada, a resposta para a uma pergunta do quiz show da BBC University Challenge. Não importa que nenhum dos estudantes jamais tivessem ouvido falar nela (é preocupante que eles nunca sabiam responder nenhuma pergunta sobre cinema). Mais significativo foi o fato de que o apresentador do programa, Jeremy Paxman, ao dar a resposta como sendo Mitchell e Kenyon, as descreveu somente como “as séries recentemente exibidas na BBC”. Nenhuma menção ao fato delas terem sido resgatadas e restauradas por outro órgão, especificamente o NFTA, e nem ao fato delas pertencerem ao BFI. O mérito para esse grande feito cultural parece já ter passado para outra, mais pública, instituição.

Eu retornarei a esse assunto da percepção pública e oficial e das ações em relação ao filme posteriormente. Vamos voltar por um momento para o documentário Nosso patrimônio cinematográfico inflamável e uma das questões que ele levanta: Porque foi que essa maravilhosa invenção de imagens em movimento ao mesmo tempo reais e fantásticas, o nascimento de uma nova arte (a primeira nos últimos dois mil anos) e, talvez, ainda mais surpreendente, um meio capaz de registrar realisticamente, pela primeira vez na história humana, nossa própria vida e fatos (capaz, de fato, de preservar nossa memória nacional) – enfim, por que ela não foi coletada, celebrada e protegida desde o seu início? Por que nossos ancestrais vitorianos não aplicaram automaticamente ao cinematógrafo as lições que tinham aprendido ao preservar nossa arte e literatura, ou ainda, nosso passado arqueológico, tão em moda naquele momento?

Bem, obviamente que hoje as respostas nos parecem claras e evidentes. Para a gente (ou para muitos de nós), o cinema se tornou a arte vibrante do século XX (na França ela é chamada de sétima arte), enquanto sua importância como evidência histórica é óbvia (mesmo que nem sempre seja tratada seriamente como deveria ser por historiadores tradicionais). Nós agora registramos a história humana assim que ela acontece, globalmente, a toda hora. Mas para os primeiros pioneiros provedores das imagens em movimento, e para aqueles que primeiro as experimentaram, elas não eram nada mais do que um novidade de feira, uma diversão popular, um extensão do music hall, um aparelho de ilusão – e, acima de tudo, uma oportunidade comercial. O kinematógrafo era um fenômeno passageiro – frívolo, efêmero e desimportante –, oferecendo sensacionalismo barato, mirando sobretudo nas classes trabalhadoras. Era, em uma palavra, vulgar. Para seus inventores – para os irmãos Lumière, para Pathé, para Edison, para Acres e Paul, era no melhor das hipóteses um promissor negócio, mas não necessariamente um que tivesse futuro, e certamente não um futuro que exigisse que seu produto fosse guardado depois de esgotada sua vida comercial.

Mesmo assim, uma grande parte do nosso primeiro cinema poderia, com sorte, ter sobrevivido a este indiferença pragmática – sobrevivido até a tardia chegada dos primeiros arquivos de filmes, pelo menos – se não fosse por um fator determinante: a matéria bruta que tornou o próprio cinema possível – a película de nitrato de celulose: o calcanhar de Aquiles do cinema, a armadilha da indústria de cinema – sua própria pegadinha. O celulóide, como o nitrato de celulosa ficou conhecido, foi o primeiro plástico comercialmente viável. Era usados para fazer pentes, armações de óculos, cabos de talheres e broches; foi um substituto popular para o casco de tartaruga. E tinha, como George Eastman, fundador da Kodak, rapidamente descobriu, a força e maleabilidade para ser transformada em tiras flexíveis e transparentes capazes de servir de suporte para a emulsão fotográfica. O momento tinha chegado quando a teoria da persistência de visão aliada às fotografias em seqüência imitando o movimento natural através da projeção numa tela pôde ser tornar uma realidade prática. O cinema nascia. Havia somente um problema: a jovem indústria cinematográfica tinha escolhido um suporte para suas frágeis e vulneráveis imagens que era parente próximo da nitrocelulose explosiva. O cinema comercial, pelos 56 anos seguintes, iria existir sob a forma de uma substância que era alta e virulentamente inflamável, volátil, tóxica quando em chamas, sujeita a encolher, entortar e se despedaçar com o tempo, e inerentemente quimicamente instável, fadada à inevitável e irremediável deterioração e perecimento após um período de tempo alarmantemente breve. Isso foi ilustrado vivamente na seqüência sobre o nitrato do documentário para a TV da BBC dos anos 1980, Tesouro do século XX (20th century treasure trove) sobre o trabalho do National Film Archive (NFA) do Reino Unido, começado pelo grande cineasta Robert Vas e finalizado, post-mortem, pela sua assistente Elizabeth Sussex.

Isso, como vocês vêem claramente, é o material físico que ao entrar em cena se tornou o alvo de preocupação dos arquivos de filmes e influenciou e dominou suas atividades por muitos anos. Em larga medida, ainda o faz – particularmente nos arquivos nacionais com grandes coleções de filmes. Ele permanece, nas palavras de Martin Scorcese, uma bomba relógio ainda a ser desativada. O mistério é que a indústria de cinema insistiu no nitrato por tanto tempo – até 1951, na verdade – apesar de sua natureza autodestrutiva e dos muitos incêndios que ele causou. Certamente, suportes de segurança viáveis estiveram disponíveis desde o início sob a forma dos primeiros acetatos. Provavelmente o relativo baixo preço para a fabricação do nitrato foi um dos motivos, alimentado por forças do mercado. Alguns puristas e aficionados argumentam que o nitrato tem uma luminosidade que nenhuma outra película conseguiu reproduzir. Infelizmente para os conservadores, isso pode possivelmente ser creditado às partículas de prata presentes na emulsão – outro prego no caixão do nitrato, como se descobriu. Cópias estropiadas e filmes cuja vida comercial já tinha se esgotado foram regularmente derretidos pelos estúdios para aproveitar a prata da película. Isso ocorreu duas vezes em escala massiva no período silencioso: primeiramente com a destruição de muitos filmes de curta duração cujo valor comercial estava condenado a acabar quando os longas-metragens se tornaram a norma a partir de 1915; e depois, com a chegada do som no final dos anos 1920, quando Al Jolson disse aquelas palavras imortais, “você ainda não ouviu nada!”, e os filmes silenciosos foram imediatamente condenados como obsoletos e sumariamente destruídos pelos estúdios que os tinham produzido. Como Roger Smither, chefe do arquivo fílmico e fotográfico do Imperial War Museum, diz em Este filme é perigoso (This film is dangerous), o magnífico e premiado livro que ele concebeu e editou para a FIAF em 2002: “Para falar da História do cinema sem mencionar o nitrato é como falar da literatura sem mencionar o papel”. O ex-produtor cinematográfico Lord Puttnam escreve, numa prefácio do mesmo livro, “Falar que os filmes foram um dia feitos em nitrato é um pouco como dizer que a Monalisa de Leonardo da Vinci foi pintada com pigmentos auto-combustíveis ou que Rodin esculpia em plástico explosivo”.

No final das contas, foi calculado que aproximadamente 80% ou mais dos filmes silenciosos lançados pelos principais países produtores se perdeu. Isso significa quatro quintos dos filmes produzidos nos primeiros 35 anos dos 110 anos de existência do cinema, um terço de toda a história do cinema até hoje. De acordo com pesquisa da Biblioteca do Congresso americano, durante alguns anos – por exemplo, entre 1910 e 1915 – a taxa de preservação dos filmes nos EUA chegou a somente 10%. Como apontou David Pierce, novo curador do NFTA, em seu excelente artigo sobre a perda do cinema silencioso nos EUA, “A legião dos condenados” (publicado em Film History, v.9, 1997), um suporte reconhecidamente instável não foi a única razão para o impiedoso desaparecimento de tantos filmes: “Por que”, ele pergunta, “a maior parte dos filmes silenciosos não sobreviveu à passagem do tempo? A ampla disponibilidade atual de tantos títulos em vídeo e a popularidade das exibições de filmes silenciosos com acompanhamento orquestral ao vivo podem dar a impressão de que os filmes silenciosos sempre foram bem considerados. Pelo contrário, por muitas décadas após a chegada do som, os filmes silenciosos tiveram um apelo comercial tão grande quanto o de uma previsão meteorológica da semana passada (...) Quais são os fatores que contribuíram para a perda de um número tão alto de filmes silenciosos de uma maneira aparentemente tão aleatória?” Pierce segue citando o fato de que um número surpreendentemente pequeno de cópias para distribuição foram feitas, mesmo para filmes populares e bem sucedidos – talvez não mais do que 150 ou 200 em cada caso – e nos Estados Unidos estas eram projetadas e reprisadas até se estragarem; Havia a falta de vontade de substituir o nitrato por um suporte de segurança aceitável; Havia as “limpezas” frequentes dos arquivos dos estúdios e dos armazéns dos laboratórios para darem lugar aos novos filmes; Havia também a já mencionado destruição deliberada de produtos comercialmente esgotados e os periódicos e devastadores incêndios. Mas em última análise, diz Pierce, “a perda de grande parte dos filmes silenciosos resultou de decisões desprovidas de uma visão de longo alcance por parte de seus donos e de uma combinação de acaso e negligência (...) Filmes silenciosos eram produzidos para dar lucro e muitos deles satisfaziam essa expectativa imediata (...) Sem o surgimento a tempo dos arquivos para salvar muitos dos filmes até que o interesse público emergisse novamente (...) o desaparecimento da memória do cinema silencioso provavelmente teria sido próximo do total”

Continua...

[1] - Mitchell e Kenyon foi uma das primeiras companhias cinematográficas inglesas, cujos filmes foram encontrados no porão de uma loja em 1994, em sua maioria negativos originais em nitrato, dando origem à maior coleção de filmes de não-ficção do primeiro cinema, restaurada pelo BFI.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira

No último encontro da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), realizado outubro passado na UnB, o conservador da Cinemateca Brasileira, Carlos Roberto de Souza, fez uma comunicação sobre a preservação cinematográfica no Brasil intitulada "Desafios de sobrevivência", no qual citava este artigo de Jurandy Noronha como o primeiro escrito no Brasil em que se afirmava a necessidade de se fazer a prospecção do cinema nacional, encarado como "patrimônio nacional".
De fato, Jurandyr apresenta uma série de questões básicas da preservação de forma extremamente arguta e pioneira, não se restringindo somente à prospecção de filmes.
O respeito à integridade da apresentação do filme, por exemplo, é levantada por ele quando fala da necessidade de se respeitar a velocidade (16 q/s) e a "janela antiga" (1:1,33) do cinema silencioso em relação à velocidade (24 q/s) e janela (1:1,37) do cinema sonoro daquela época.
Escrito no ano em que a Filmoteca do MAM-SP, futura Cinemateca Brasileira, se filiaria à FIAF, e seis anos antes da criação da Cinemateca do MAM-RJ, em 1955, trata-se de um documento essencial para a História da preservação audiovisual no Brasil.
Publicado há exatos 60 anos, a divulgação deste artigo é também uma pequena homenagem a Jurandy, que continua vivendo no Rio de Janeiro, onde está escrevendo suas memórias.



Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira
Reportagem de Jurandyr Bastos Noronha
Publicado em Cena muda, n.28, de 13 de julho de 1948.

Noticiaram os suplementos literários a fundação do Museu de Arte Moderna, estando, à frente do mesmo, nomes os mais representativos da cultura brasileira. Vemos assim (e não há nenhum bairrismo, pois sou mineiro e moro na ilha do Governador...) que o Distrito Federal segue o que vem de acontecer no estado bandeirante, em cujo capital já existe um museu congênere.
Não posso afirmar que o museu de São Paulo tenha uma sessão de cinema, como pretende o do Rio, mas sei que o Clube de Cinema de lá, com Saulo Guimarães, Rubem Biáfora, Almeida Salles e Benedito Duarte, é o melhor organizado do país. Seus debates tornaram-se famosos, bem como famosa é a sua filmoteca, recentemente enriquecida com novas aquisições, feitas na Europa por Paulo Emílio Salles Gomes, entre os quais contam-se os clássicos Um chapéu de palha da Itália e O milhão, de René Clair, A paixão de Joana D’Arc, de Carl Deyer e Sangue de poeta, de quando Jean Cocteau se dedicava às abstrações cinematográficas.
A cidade de Belo Horizonte tem igualmente o seu núcleo de estudiosos, bem como, aqui está em atividade o Diretório de Cinema da Faculdade de Filosofia, ao qual se junta o corpo social do velho Chaplin Clube, com Otávio de Faria, Plínio Sussekind e outros. Acontece que as “libraries” acima citadas cuidam tão somente das grandes obras do cinema mundial, havendo quase completo esquecimento do que fizeram os nossos pioneiros. Apenas o pequeno museu do Recife, criado graças à dedicação de Luis Maranhão, está com os antigos filmes silenciosos feitos no norte, como A filha do advogado, No cenário da vida, Dança, amor e ventura, Aitaré da praia e Herói do século XX.
Confesso que a perda de tantos filmes passados – o que vem acontecendo – é coisa que me tem deixado aturdido, por considerá-los verdadeiro patrimônio nacional. Porque o Cinema Brasileiro não tem sido apenas as aventuras de vésperas de carnaval, como no passado não o representavam os pseudo filmes científicos: tem importância muito maior do que geralmente se supõe, se não quisermos, naturalmente, tomar em conta os farsantes e improvisadores que sempre existiram, em todas as épocas.
Produções há que, dentro do tempo e das condições em que foram feitas, igualmente e até, em alguns casos, superam trabalhos de países mais adiantados. É este confronto que eu pretendo seja feito um dia, para que haja justiça a artistas esquecidos, que não contavam com departamentos de publicidade e letreiros luminosos nas portas das grandes casas de exibição. Não avanço coisa alguma no que pode parecer uma afirmação audaciosa, sendo, apenas, a certeza de quem, há muito tempo vem estudando o cinema de todos os países – em caráter particular o do nosso – sem concordar com tudo o que chamavam de bom, mas sim levando em conta as conquistas feitas do Edwin S. Potter, Griffith, Wiene, Dupont, Grierson e Murnau: Eis porque considero da maior importância o levantamento e recuperação imediata de tudo quanto já fizemos de mais significativo, pois, em caso contrário, dentro em breve nada mais restará, com imenso e deplorável prejuízo artístico.
Preocupação idêntica à minha tem assaltado pessoas, como Álvaro Rocha, Pedro Lima ou Pery Ribas. Ainda recentemente ouvi do Dr. Pedro Gouvêa, diretor do INCE, de sua intenção de criar o Museu do Filme, no qual estivesse garantida a conservação dos filmes nacionais: coisa idêntica ao feito pelo Museu de Arte Moderna de Londres ou pelo de New York, organizador daquela “cavalcade” da sétima arte nos Estados Unidos que o ator Abdias do Nascimento e o poeta argentino Ephraim Bó me levaram para ver, ambos fazendo indagações sobre o destino do cinema

Desde já podem ser firmadas algumas “indicações”, às quais dei o título deste trabalho, e que são os seguintes:
a) Levantamento de toda a produção nacional até hoje
b) Contato com produtores e possíveis possuidores de negativos ou cópias
c) Organização de arquivo fotográfico sobre os filmes; datas de filmagem, equipes, cenário, inclusive tamanho das cenas, condições técnicas como máquinas e película usadas – se ortocromática ou pancromática – laboratório etc. Comentário, baseado nos dados acima, feito por uma comissão
d) Reconstituição, com fotografias, do que não for possível recuperar. Diafilmes. Letreiros
e) Regulamentação da conservação; banhos endurecedores, limpagem e tempo de rebobinagem.
f) Projeção na cadência de 16 quadros por segundo e com a antiga janela.
g) Troca de informações com outras organizações
*
Vejamos os “itens”, cada um de per si. Um trabalho destes, necessariamente, tem que começar pela consulta às revistas da época e às pessoas que de perto estiveram ligadas à nossa filmagem. Exemplos: Dustan Maciel e Gentil Roiz, no Rio, que facilitarão o contato com o pequenino museu de Pernambuco; as famílias de Antonio Leal e Victor Capellaro e muitas outras.
Feito o levantamento, poderá então ser dado início à filmoteca. A ela, que deverá determinar qual o primeiro filme rodado no Brasil, não devem faltar aqueles considerados históricos, como Um transformista original, feito em 1903, na cidade de Barbacena; A quadrilha do esqueleto, sob o patrocínio de A Noite, e Pátria e Bandeira, mostrando manobras do Exército Brasileiro em 1916 e que tinha como finalidade a propaganda do serviço militar.
São filmes de basilar importância, sem que isto signifique que não se deva procurar obter toda a produção muito antiga: A esposa do solteiro e O dever de amar, todo o “ciclo de Cataguazes”, O caçador de diamantes, de Capellaro; Iracema, de Marques Filho, Sinfonia de São Paulo, de Adalberto Kemeny e Rodolpho Lustig, Barro Humano, de Adhemar Gonzaga, Limite, de Mário Peixoto, Lábios sem beijos e Ganga Bruta de Humberto Mauro e Às armas e Mulher, de Otávio Mendes. Limitei-me nesta breve lista, às realizações da era do silencioso, sendo de lamentar o não mais poder contar-se com Urutáu, dirigido pelo americano William Jansen e que marcava o início de Carmen Santos; com Cruzeiro do Sul e com os dois Guaranys feitos por Capellaro, em 1916 e 1925, filmes perdidos em incêndios, em acidentes ou mesmo desgastados pelo tempo. A produção mais nova, pela experiência que existe, deve ser cuidadosamente acompanhada, de maneira que, mais tarde, não venha a acontecer o mesmo.
Os documentários têm, neste ponto, posição de grande relevo, pois estão marcando, ao vivo, a nossa evolução nos últimos tempos. Eles, tanto quanto o filme de ficção, tem que ser tomados em consideração na coleção de uma filmoteca.
Deixo assim, ligeiramente esboçado, o que diz respeito aos dois primeiros itens.
*
Quanto ao item “c”, deve ser lembrado que a cronologia dos filmes é, como tudo que se refere à história, da maior importância, assim como, para a história, devem ser anotados, com o maior cuidado, as condições técnicas.
Possuímos motivos, do maior interesse, para marcar a evolução de uma arte e uma indústria. Exemplos: o colorido e o “cronofone” de Benedetti que era a projeção, no lugar em que hoje estão os letreiros sobrepostos dos filmes estrangeiros, da partitura a ser seguida pela orquestra, havendo sido filmados, com sincronismo, até bailados; A Esposa do solteiro, com os famosos artistas italianos Laetitia Quaranta e Claro Campogalliani e com exteriores do Rio e de Buenos Aires, possibilitando a exibição fora dos nossos circuitos e que foi, por isso, a primeira tentativa de industrialização: Tesouro perdido, com avanços e recuos de máquina, feito em 1923, mais ou menos à época em que Ewald André Dupont fazia o seu Varietê na Alemanha (ainda não exibido no Brasil) e tido como criador do recurso; a Sinfonia de São Paulo, no qual podia ser sentida a influência do Berlim de Kari Ruttman, mas nem por isso despido de valor; Limite, realização super-intelectualizada, discutida até hoje a interpretação da sua narrativa, não havendo sido exibida para o público; João Ninguém, com a seqüência de um sonho inteiramente colorida, o que talvez também nos dê prioridade n’esta história de filmes com trechos em preto e branco e colorido; e Bonequinha de Seda que mostrava pela primeira vez entre nós, o “process-short”, pequeno é verdade, mas perfeito quando víamos, através do vidro o posterior de um automóvel, o desfilar das ruas cariocas; Coisas nossas, o primeira filme da fase do sonoro, feito ainda pelo “sistema-vitafone”, isto é, com discos; os primeiros “movie-tones” como A voz do carnaval e Estudantes, bem como todas as seqüências mais marcantes de toda e qualquer produção.
Não quero dizer que os nossos primeiros “travellings” hajam sido uma maravilha, melhores que os famosos de W. Tourjansky e John Farrow, nas primeiras cenas, respectivamente, da versão falada de A sublime mentira de Nina Petrowna e de Irmãos em armas ou o do ataque à fábrica que vimos o ano passado em Assassinos, que Robert Siodmak dirigiu, tampouco quero afirmar que João Ninguém tivesse uma combinação de preto e branco e colorido melhor que Neste mundo e no outro, filme inglês. Mas que foi antes não é possível negar, pois, enquanto o nacional teve sua apresentação feita em 1936, no Alhambra, o segundo apenas há poucos dias foi mostrado ao público...
De todo o histórico que for possível conseguir-se, uma comissão fará um juízo definitivo, tomando em consideração “o tempo e o espaço”... e as “condições técnicas” acima citadas. É, para este aspecto do trabalho, da mais absoluta necessidade que os filmes tenham a sua cenarização analisada, conseguindo num mtdidos até o tamanho de cada cena, de foram que possam ser avaliadas, não só a tendência de cada realizador, mas os seus conhecimentos das regras fundamentais de montagem e do ritmo.
*
Cuida de letreiros e diafilmes, o item “d”. Acho que deverão ser feitas, nos filmes incompletos, explicações com letreiros, se for o caso de não existirem trechos de capital importância. O som, neste caso, apenas trará prejuízos.
Quando nada mais existir sobre determinado filme, então projeções fixas, feitas com diafilmes, será melhor que coisa alguma.
O item “e” fala em “regulamentação da conservação”.
Sim. Efetivamente é necessário que, de tempos em tempos, digamos anualmente, o filme seja passado n’uma enroladeira, ou melhor, rebobinado. Esta medida tem por finalidade fazer com que os filmes, não ficando guardados muito tempo nas latas não venham a sofrer a corrosão do hiposulfito, muito comum quando a película não esteve em laboratório que lhe dispensasse tratamento adequado, no caso, banho suficientemente demorado.
A limpeza com tetracloreto de carbono e a passagem em um banho dos chamados endurecedores, eis outras medidas da maior importância em filmes que se queiram recuperar.
*
A projeção em 16 quadros por segundo e em projetor com a janela do tempo do silencioso, eis do que trata o item penúltimo.
O advento do som trouxe, para a sua reprodução prefeita, o aceleramento para 24 quadros por segundo, motivo pelo qual os filmes da era do silencioso, quando exibidos em projetores com a cadência sonora ficam ridículos, com os atores dando saltos e corridinhas, pois, como é claro, uma cena filmada em um número de quadros e projetada em velocidade maior tem que assim resultar. No entanto, tal não acontecerá se os projetarmos da maneira para o qual foram realizados.
A janela da projeção deve ser a antiga. Usada a atual, tudo aparecerá desenquadrado. O som, cortando a parte destinada à gravação, cortou também as extremidades superior e inferior das cenas, de maneira à que a parte da emulsão não ficasse um quadrado. Este é o motivo pelo qual tantos artistas de filmes antigos aparecem de cabeças cortadas ou como que filmados em um canto.
Aqui surge novo problema: o copiador usado para trabalhos de um museu deve possuir uma janela das antigas, pelo mesmo motivo exposto.
Estes cuidados parecem imprescindíveis, para que não se torne em uma coisa cômica, o que é merecedor do maior respeito.
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E chegamos, finalmente, ao último item, que fala em “troca de informações”.
Este item está em íntima e perfeita conexão com o da letra “c”, quando fala em “comentário feito por uma comissão”.
A medida sugerida tem por fim entrar em contato com historiadores da importância de Rogér Manwell e Leon Moussinac, ou com organizações, expondo as nossas conquistas no novo meio de expressão e citando datas, não só para comunicarmos o que já tenhamos feito ou estejamos fazendo – forçando a que nossos filmes sejam citados nas antologias do cinema mundial – mas, igualmente, para termos uma visão completa do cinema em todos os países, pois como é sabido, tomamos conhecimento real apenas do que se passa em pouquíssimos centros produtores.
*
Creio estar absolutamente certo no que disse.
Assunto da maior complexidade, não tenho a pretensão de o haver esgotado, devendo, no entanto, ressalvar que o fiz tão somente de memória, sem consultar dados, técnicos ou históricos. No que se refere, por exemplo, a importantes filmes antigos, devem existir faltas, as quais serão completadas em “A pequena História do Cinema Brasileiro”, trabalho já com as pesquisas iniciadas.
Está é a minha contribuição para o que está sendo anunciado: a criação entre nós dos primeiros museus de cinema