quarta-feira, 13 de julho de 2016

Incêndio na Cinemateca - 2

Apesar do blog não estar sendo atualizado tão frequentemente quanto devia, a questão do incêndio na Cinemateca Brasileira não poderia deixar de merecer mais um post. Sobretudo quando, alertado pelo colega Mateus Nagime, descobri que a Secretaria do Audiovisual (SAv), muito discretamente, publicou em seu site um relatório das perdas ocorridas na tragédia do início desse ano (veja aqui e aqui). Apesar da discrição, é elogiável a rapidez da apresentação pública de um relatório, uma vez que a data do comunicado oficial da SAv sobre o incêndio foi publicado em 3 de fevereiro de 2016, e o relatório já estava no site em 11 de abril de 2016. Diferentemente das falas públicas apressadas feitas na ocasião, minimizando as perdas ao se dizer coisas como "quase todo o material perdido tem cópias que correspondem diretamente aos originais, sem perda de qualidade", nas palavras do então secretário-executivo do MinC, João Brant, o relatório traz dados mais confiáveis.
Através do relatório ficamos sabendo que foram queimados 1.003 rolos de filmes de nitrato, correspondendo a 731 títulos, praticamente todos em Preto e Branco e 35mm. A grande maioria desses rolos tinha entre 5 a 10 minutos de duração, sendo que 98,1% eram de cinejornais - o que é compreensível, uma vez que a maior parte dos filmes brasileiros produzidos e preservados até a década de 1950 (a era da película de nitrato, cujo depósito foi o atingido pelo incêndio) era de filmes documentários. Como esperado, sabemos que se queimaram sobretudo negativos de imagens de vários cinejornais, que são consideradas suas matrizes de preservação.
Uma parte dos materiais  incendiados tinha outras cópias no acervo, embora sua qualidade ainda não tenha sido checada e apresentada no relatório, que admite que essas cópias podem estar em "película, vídeo ou digital". O mais triste, é claro, são as obras que não possuíam outras cópias no acervo. Esses rolos queimados representavam as únicas manifestações dessas obras, que passam a ser dadas como inteiramente perdidas por não existir nenhuma outro material desses títulos preservado atualmente.
A partir dos números do relatório, chegamos à seguinte porcentagem:
  • 63% dos títulos queimados tinham outras cópias. 37% dos títulos desapareceram. 
  • 60,5% dos rolos queimados tinham outras cópias. 39,5% dos rolos eram de obras agora consideradas perdidas.
  • 62,5% da metragem total de filmes queimados tinha outros materiais. 37,5% da metragem total era de filmes sem nenhuma outra cópia.
Assim, podemos dizer, com segurança, que cerca de dois quintos do que foi perdido no incêndio eram de filmes brasileiros dos anos 1930 e 1950 que a sociedade brasileira nunca mais vai poder ver e rever.

Ao meu ver, dois quintos de perda irremediável, ou pouco menos de 40%, é algo muito distante de dizer irresponsavelmente que "quase todo o material" estava copiado. E sobre esses filmes agora desaparecidos, restam apenas informações muito pontuais e vagas sobre seu conteúdo a partir de títulos ou descrições como "Presidente Getúlio Vargas visita Uberaba", "Parada da Juventude de 1941", "Contrato DCB e Vera Cruz" (o que devia ser isso!?), "Certame automobilístico - Circuito da Gávea - 1936" etc. Pior do que eles terem se perdido, é o fato deles desaparecerem sem terem circulado amplamente nos últimos anos, sem sequer terem sido vistos quer por cinéfilos, historiadores ou pesquisadores, numa mesa enroladeira que fosse. Nem a memória da visão desses filmes sobreviveu.
Como eu disse no post anterior, a responsabilidade por existir esse enorme volume de filmes de nitratos sem nenhum tipo de cópia no acervo da Cinemateca Brasileira é certamente uma responsabilidade a ser compartilhada por todas as gestões recentes da instituição, cujos esforços deveriam ter sido, pelo menos em grande parte, mobilizados para duplicar suas matrizes de nitrato. Devemos lembrar que esse foi um esforço feito pelos principais arquivos de filmes há décadas atrás. Como aponta Anthony Slide, no final dos anos 1960 foi lançado, inclusive, o slogan "nitrate won't wait" (o nitrato não pode esperar), acreditando-se ser necessário duplicar todos os materiais nesse suporte que não iriam sobreviver até o século XXI.
Posteriormente, essa visão fatalista foi reconsiderada, percebendo-se que, nas devidas condições de armazenamento e com revisão constante, a película de nitrato podia apresentar uma estabilidade maior do que se imaginava. De fato, muitos nitratos brasileiros chegaram até 2016, por exemplo. Mas com a interrupção dos trabalhos necessários de análises do acervo entre meados de 2013 e 2014, como apontado pelo relatório, alguns dos nitratos da Cinemateca Brasileira chegaram ao seu limite e entraram em autocombustão no início desse ano. Assim, não se pode deixar de apontar que foi uma irresponsabilidade que a Cinemateca Brasileira - e o Estado Brasileiro, sobretudo, na figura da Secretaria do Audiovisual - não tenham se esforçado o suficiente, especialmente num momento de alardeada pujança, em fazer nos últimos anos o que sempre foi tido como a tarefa básica de qualquer cinemateca: salvaguardar o patrimônio audiovisual.
No último encontro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), em junho passado, em Ouro Preto, fiquei sabendo que está em curso um programa de duplicação de matrizes na Cinemateca Brasileiro. Ótima notícia. Antes tarde do que nunca. Mas por que sempre precisamos esperar uma tragédia para fazermos o que já devia ter sido feito tempos atrás?