quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Existe uma velocidade "correta" do cinema silencioso?

Qual era a velocidade de filmagem e projeção dos filmes silenciosos? Isto é, quantos fotogramas ou qual o comprimento de filme, medido em metros ou pés, atravessava(m) a lente da câmera ou do projetor a cada segundo ou minuto? A resposta está na ponta da língua da maioria: 16 fps (fotogramas por segundo).

Mas sabemos, porém, que a maior parte dos filmes silenciosos era filmada com câmeras movidas à manivela e também exibidos, na maior parte dos cinemas, em projetores igualmente postos em funcionamento manualmente. Esse fato fazia com que a velocidade obviamente variasse, sendo necessário que para a reprodução do filme não fosse mais lenta ou mais rápida do que era pretendido pelo realizador ou produtor, a velocidade da câmera fosse a mesma do projetor.

As primeiras câmeras produzidas pelos irmãos Lumière (que funcionavam também como projetores) rodavam 8 fotogramas a cada volta da manivela. Logo, os cinegrafistas consolidaram a prática de calcular duas voltas de manivela por segundo, equivalendo ao transporte pelo equipamento de 16 fotogramas. Daí viria a “velocidade padrão” de 16 fotogramas por segundo do cinema silencioso.

Essa velocidade teria permanecida como usual até o final dos anos 1920, quando o cinema sonoro impõs a rigorosa padronização da velocidade. A alteração da velocidade na gravação ou reprodução do som provoca uma distorção muito maior e mais perceptível da que ocorre com as imagens em movimento. Assim, o advento do som obrigou o uso de câmeras e projetores movidos a eletricidade cuja velocidade fosse estável e inalterável, sendo ela estabelecida em 24 fps, mantida até hoje.

Entretanto, já em 1955 o curador da George Eastman House, James Card, escreveu um artigo no qual criticava o mito de que teria existido uma velocidade padrão do cinema silencioso de 16 fps, equivalente à duração de cerca de 16 minutos e 40 segundos por rolo de filme de 1000 pés ou 300 metros – o que chamamos atualmente de rolo simples de filmes 35 mm. Esta projeção era muito mais lenta do que se fosse feita em 24 fps, que resultava na exibição de um rolo em 11 minutos e 6 2/3 de segundos.

Entretanto, Card apontava que não existia necessariamente um padrão de velocidade ao longo de todo o cinema silencioso. Cada cinegrafista "manivelava" mais ou menos rápido, dependendo, por exemplo, do gênero de filme (as comédias deviam ser mais ágeis e rápidas do que os melodramas), assim como os projecionistas aceleravam ou diminuíam a velocidade de projeção conforme o agrado da platéia. É verdade, porém, que muitos donos de salas de cinema eram criticados por projetarem mais rápido os filmes para que a duração das sessões fosse menor e, logo, para que fosse possível realizar mais sessões ao longo do dia.

A partir da velocidade indicada nas partituras que acompanhavam os filmes silenciosos indicando a música que deveria ser tocada pelas orquestras (as cue sheets), Card revelava que de uma lista de filmes norte-americanos realizados entre 1916 e 1928, nenhum deles tinha a indicação de projeção a 16 fps, tendo alguns a recomendação de velocidade superior até a 24 fps.

Em 1980, o documentarista e restaurador Kevin Brownlow publicou um artigo no qual confirmava essa indicação de que não havia uma padronização da velocidade dos filmes silenciosos, mas que ela variava conforme o cinegrafista, diretor, país de produção, gênero ou companhia produtora, podendo ser, por exemplo, de 18 fps, 20 fps ou 22 fps. Brownlow confirmava ainda como era prejudicial para muitos filmes silenciosos de ação ou aventura serem projetados para as platéias atuais a 16 fps, tornando-o bem mais monótonos e lentos do que originalmente o eram, da mesma forma que melodramas e dramas muitas vezes ficavam excessivamente acelerados em 24 fps. O consenso era de que quanto mais próximo do final dos anos 1930, maior era a velocidade de projeção, às vezes ultrapassando a “velocidade do som”, sendo talvez mais recomendado exibir filmes dos anos 1920 em 24 fps do que em 16 fps.

No Brasil, porém, permanece difundida a crença de que a velocidade de todo e qualquer filme silencioso é 16 fps, embora seja talvez mais correto dizer que até 1910 a velocidade mais comum era algo em torno de 16-18 fps, de 1910 a 1920 entre 18-20 fps, e na década de 1920 se consolidando entre 20-24 fps, embora não haja regra definida.

Para comprovar a ausência de uma velocidade padrão, transcrevo abaixo apenas duas indicações da variabilidade da velocidade na exibição de filmes no Brasil durante o período silencioso.

No excelente livro de Alice Dubina Trusz é citado uma reclamação sobre uma sessão de cinema no jornal gaúcho O independente, de 3 de março de 1901, na qual o jornalista critica a “morosidade nas execuções, que devem ser mais rápidas, a fim de não fatigar o espectador” (TRUSZ, 2010, p. 229). Embora haja no mesmo livro várias reclamações sobre a demora nos intervalos para a troca dos rolos, esse trecho parece se referir claramente à lenta velocidade de projeção dos filmes, estratégia do exibidor ambulante possivelmente decorrente de haver poucos títulos (talvez inéditos) para compor a sessão ou para valorizar um filme em particular alongando sua exibição.

Isso mostra claramente como a velocidade de projeção – assim como o acompanhamento sonoro – fazia parte do processo de “edição criativa” do exibidor no cinema dos primeiros tempos, cujas ações eram e podiam ser alteradas conforme o gosto e a exigência da platéia, como vem mostrando o trabalho do pesquisador Charles Musser.

O segundo exemplo é o anúncio da exibição em Petrópolis (RJ) do film d’art francês Os mistérios de Paris (Les mystères de Paris [dir. Albert Capellani, 1912]) no jornal Cinema=Jornal em junho de 1912. Diferentemente de vários outros anúncios da época que indicavam apenas a metragem dos filmes e o número e partes ou atos, essa publicidade indicava a metragem (1600 metros) e o tempo de duração da sessão (1 hora e 20 minutos), consistindo num filme bastante longo para a época, quando ainda não estava consolidado o formato de longa-metragem.

Ora, para um filme de 1600 metros ser exibido em 1 hora e 20 minutos a velocidade de projeção devia ser de pouco mais de 18 fps. Ou seja, mais próximo de 20 fps do que do supostamente padrão 16 fps (conferir tabela de conversão em USAI, 2000)

Como sempre, a realidade do cinema silencioso é muito mais complexa do que se tenta frequentemente simplificar. E o campo de pesquisas sobre a história do cinema no Brasil ainda tem muito a ser explorado.


Referências:

BROWNLOW, Kevin. “Silent Films: What Was the Right Speed” Sight and Sound, verão, 1980. Republicado em: ELSAESSER, Thomas (ed.). Early Cinema: Space, Frame and Narrative. Londres: BFI, 1990.

CARD, James. Silent Film Speed. Image: Journal of Photography of the George Eastman House, v. 4, n. 7, out. 1955.

Cinema=Jornal. Petrópolis, v. 3, n. 69, 16 jun. 1912 (Fundação Biblioteca Nacional, RJ).

TRUSZ, Alice Dubina Trusz. Entre lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre (1861-1908). São Paulo: Ecofalante, 2010.

USAI, Paolo Cherchi. Silent Cinema: An Introduction. Londres: BFI, 2000.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

homenagem a Hernani Heffner

O X Araribóia Cine, festival de cinema de Niterói, irá homenagear na edição deste ano o professor e preservador Hernani Heffner, referência na área, autor de alguns textos no blog, e tema de outros.
O festival começa terça-feira, dia 22 de novembro, e vai até o domingo, dia 27, quando será a cerimônia de encerramento, com a homenagem a Hernani.
Serviço: 27 de novembro de 2011, 19h30 [ou às 19h. O site do festival dá os dois horários], Teatro Municipal de Niterói.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Relato de colóquio da Cinemateca Francesa

Nosso amigo, o pesquisador e conservador carioca José Quental, está vivendo em Paris e nos enviou o excelente e informativo relato do evento organizado na Cinemateca Francesa sobre a revolução digital e a preservação audiovisual. Rico de questionamento e informações, o texto abaixo é uma excelente reflexão sobre questões prementes, especialmente discutidas neste blog. Agradeço ao Zé pela valiosa colaboração. Boa leitura:

Nos dias 13 e 14 de outubro participei como ouvinte do colóquio internacional “Révolution numérique: et si le cinéma perdait la mémoire?” organizado pela Cinémathèque Française. A convite do Rafael, compartilho aqui alguns comentários, observações e impressões sobre o evento.

Gostaria de esclarecer que não pretendo nesse texto fazer um relato jornalístico ou extremamente detalhado do evento. Certamente muitas coisas que chamaram a atenção de outros participantes podem ter me parecido secundárias e vice-versa. Meu objetivo é dar uma dimensão do que foi o encontro e apresentar uma leitura do mesmo. Procurei ainda utilizar um pouco as ferramentas da internet levantando links que pudessem ajudar quem tiver mais interesse sobre o tema.

O colóquio aconteceu na sede da Cinemateca Francesa e foi organizado em parceria com o Centre National du Cinéma e de l’Image Animée (CNC) e com o apoio da Kodak e da Éclair. O programa em inglês pode ser baixado aqui.

Olhando o programa, a expectativa inicial era de que seria apresentada uma atualização dos debates sobre a transição digital na área cinematográfica e que teríamos acesso a informações sobre o que vem sendo feito na conservação desse cinema que já nasce digital. A organização do evento foi feita em quatro eixos temáticos de reflexão: 1. A revolução digital hoje e amanhã; 2 – Filmar em digital: escrever na areia?; 3 – Reestruturação e digitalização de coleções; 4 – Qual o futuro das cinematecas?

Na abertura do colóquio, as falas de Costa Gavras (presidente da Cinemateca Francesa), Serge Toubiana (Diretor da Cinemateca Francesa) e Éric Garandeau (Presidente do CNC) trouxeram um outro elemento, que não estava tão claro na programação – mas que se mostrou muito importante –, sobretudo para compreender a estrutura do evento e o panorama dos participantes: para além de uma questão técnica e teórica explicitada pelos eixos temáticos, a realização do colóquio tinha um viés político forte. Tinha o objetivo de coroar um posicionamento oficial do governo francês para a “era digital” na área cinematográfica. Em seu discurso, Éric Garandeau, fez um apelo aos produtores e detentores de acervos que haviam assinado um acordo de intenções durante o festival de Cannes para digitalização de 1000 longas-metragens, que colaborassem com as negociações bilaterais para que não houvesse risco de perder linhas de financiamento. (Aqui, a página com os documentos sobre o acordo). Entre outros, o acordo foi assinado pela Pathé e pela Gaumont, ambas representadas no colóquio. Para completar esse aspecto, no final do primeiro dia aconteceu a visita “inesperada” do ministro da Cultura e da Comunicação Frédéric Mitterrand, que anunciou o compromisso do governo nesse processo de digitalização. Um aspecto interessante a destacar nas falas dos “políticos” é que há sempre um cuidado em ressaltar a importância da conservação das películas, mostrando respeito e reconhecimento pelo trabalho da Cinemateca Francesa.

Entre os conferencistas, quem abriu o colóquio foi Laurent Mannoni, um dos organizadores do mesmo. Mannoni é diretor científico e de patrimônio da Cinemateca, responsável pelo Conservatoire des Techniques Cinématographiques. Além de livros sobre o começo do cinema, também escreveu sobre a história da Cinemateca Francesa. A fala de Mannoni tentou puxar a reflexão para um lado mais técnico e histórico, relativizando a revolução digital ao atribuir uma perspectiva histórica ao processo. Ele falou – ainda que de forma tímida – sobre a importância de olharmos para outros momentos de transição tecnológica e agirmos com mais cautela nesse novo momento. Lembrou a transição do nitrato para o acetato, quando muitas matrizes de filmes foram destruídas e destacou o trabalho de Langlois (claro!) na tentativa de combater essa política, inclusive mostrando um manifesto assinado no festival de Veneza de 1966 onde vários diretores, inclusive Glauber Rocha, apoiaram a proteção das matrizes em nitrato. A cautela defendida por Mannoni decorre do entendimento de que o progresso da tecnologia digital no cinema tem resolvido muitos dos problemas de sua adaptação (sobretudo no que toca a qualidade da informação) em várias áreas do cinema (produção, na pós-produção, na distribuição, na exibição e até mesmo na restauração), exceto à da conservação de filmes. A conservação de filmes não foi beneficiada pelo advento do digital, ao contrário, o implemento das novas tecnologias colocou em risco a salvaguarda do cinema produzido digitalmente. Neste sentido, há uma defesa de se manter uma política de impressão dos filmes produzidos em meios digitais em material fotoquímico. Ou seja, a conclusão é a de que hoje a preservação e a salvaguarda das obras produzidas digitalmente deve ser feita em película cinematográfica (!).

Com muita ironia ele terminou sua fala com a seguinte charge publicada em 1968 quando Langlois foi afastado da Cinemateca Francesa.

[Legenda: – Este é o novo computador encarregado de substituir Langlois na direção da Cinemateca!]

Na seqüência, Olivier Bosel, professor de economia da MINES Paris Tech, e autor do livro “Dernier Tango Argentique”, fez uma ode à revolução digital, sem acrescentar muitas informações ou uma reflexão mais substancial. Foi mais do mesmo do que já se diz sobre o advento do digital e seu impacto, sobretudo na difusão e circulação das obras.

Jean-Baptiste Hennion, que é professor da Universidade Paris 8 e sócio de uma empresa que presta serviços de instalação e projeção de cinema digital, fez uma fala bastante informativa ao trazer muitos números sobre a conversão das salas francesas para o sistema de projeção digital. Ele chamou a atenção para a velocidade que a conversão atingiu no último ano: se até 2010 tinham sido adaptadas 1000 salas, entre 2010 e outubro de 2011 foram mais 2312. Hoje 893 cinemas estão equipados exclusivamente com projeção 35mm. A MK2, umas das grandes redes de exibição, por exemplo, já migrou todas as suas salas para projeção digital. Esta migração está baseada num forte apoio estatal e no estabelecimento de um padrão básico para projeção: o 2K.

Para Hennion, muito mais importante do que pensar a questão da qualidade de resolução dos projetores digitais (2K, 4k etc.) em relação aos 35mm é ter em consideração que um elemento continuará sendo crucial na projeção – seja ela analógica ou digital –: a luz. A luminosidade dos projetores continuará a ser um elemento fundamental na qualidade das projeções.

A intervenção de Alain Besse, da Commission Supérieure Technique (CST) destacou a importância da normatização de processos e o estabelecimento de parâmetros de qualidade na implementação das tecnologias digitais, sobretudo no tocante à projeção e conversão de salas. De certa forma a fala de Besse complementou a participação de Jean-Bapstite Hennion mostrando que este movimento de conversão das salas de cinema vem sendo acompanhado por uma comissão técnica que recomenda parâmetros de qualidade a serem seguidos. É importante frisar que a CST só pode fazer recomendações e não regular o setor. Ao fazer um histórico da atuação da CST para o cinema digital, ele destaca, por exemplo, que a comissão só passou a utilizar o termo Cinema Digital quando os primeiros projetores em 2K começaram a chegar ao mercado, antes eles falavam em projeção digital. O parâmetro de qualidade utilizado pela CST para suas análises é a projeção em 35mm, ou seja, para eles a projeção digital deveria garantir, minimamente, a qualidade de uma projeção em 35mm.

A manhã do dia 13 terminou com a participação de Bruno Racine, presidente da Biblioteca Nacional da França – BNF. A contribuição de Racine para a discussão foi pequena. Abordou mais o trabalho desenvolvido pela BNF, os desafios na digitalização do acervo, na manutenção do acesso e na questão dos limites para obras sob proteção legal, e na preservação das informações digitais. A novidade ficou por conta do trabalho que eles vêm desenvolvendo para salvaguarda da internet. A BNF participa de um projeto amplo que busca desenvolver mecanismos para preservação da memória da Internet.

Após uma manhã pouco animada, esperávamos uma tarde com intervenções mais ricas em novidades e/ou proposições.

A primeira apresentação ficou por conta de Milt Shefter, um dos responsáveis pela publicação Dilema Digital. Além de fazer um histórico da criação e atividades do Conselho de Ciência e Tecnologia da Academia, e apresentar as bases e preocupações que geraram o Dilema Digital, ele apenas falou da preocupação de se ampliar as ações de preservação digital para as produções independentes. Para quem já conhecia o trabalho (que por incrível que pareça só foi traduzido para o português e para o japonês), a fala de Shefter foi uma das mais desapontadoras e burocráticas do dia. Basicamente ele reforçou a idéia de que o dilema digital ainda está colocado e que as saídas para ele não estão definidas. Embora o que assistimos no colóquio indique que por mais indefinido que o futuro esteja, vultuosas quantias estão sendo aplicadas na na digitalização de acervos.

Milt Shefter, ao centro, e o dilema digital

Em seguida veio a participação de Christian Lurin diretor do laboratório Éclair. O título de sua apresentação foi “From film lab to film care”. Lurin apontou a profunda transformação pela qual vem passando o laboratório e aproveitou para fazer uma boa propaganda do trabalho desenvolvido por eles. A Éclair vem alterando sua atuação e seu modelo de negócios, dando cada vez mais ênfase às ações de conservação e restauração (tanto fotoquímica como digital), digitalização de acervos e mesmo realização de inventários de conteúdos. Sem sombra de dúvida, o mundo dos laboratórios são os que mais estão sofrendo nesta transição, estão precisando reinventar suas estruturas e investir muito para continuar atuando. Como compensar perdas enormes com as mudanças no negócio?

O último palestrante do dia foi o representante da Kodak, Clive Ogden. Preparou uma intervenção para reforçar o discurso do suporte fílmico como o único capaz de preservar o patrimônio audiovisual. A película seria o “Gold Standard” na preservação cinematográfica. Outro que aproveitou para fazer uma propaganda da Kodak e de sua preocupação com o futuro da película. Na imagem abaixo, uma ilustração de como seria a cadeia de vida de um filme, analógico ou digital, da filmagem à exibição, passando pela produção de matrizes de conservação.

Para os arquivos, esse esquema apesar de incluir a conservação não responde a todas as suas demandas e responsabilidades. Mesmo que o “retorno” à película seja a melhor prática para conservar as obras e seus conteúdos, todos os outros elementos envolvidos na produção de um filme (dos equipamentos de filmagem aos dispositivos de exibição) devem continuar sob a atenção das cinematecas.

Ao final do primeiro dia, foi exibida uma versão restaurada em 4K de Taxi Driver de Martin Scorsese (1976). Porém, a projeção foi feita em 2K que é a resolução do projetor da Cinemateca Francesa.

O início do segundo dia ficou por conta de Kevin Brownlow. Ele fez um depoimento sobre a história da restauração de Napoleón de Abel Gance. Um relato bonito, bem humorado e apaixonado, mas que nada contribuiu para discussão sobre o digital. Como me informou o Mateus Nagime, o texto que Brownlow apresentou foi quase idêntico ao que ele mostrou em Pordenone durante a Giornate del Cinema Muto. A diferença teria ficado na aliviada que ele deu nas críticas ao Henri Langois. Um pouco sobre o trabalho e a trajetória de Brownlow pode ser lido na entrevista realizada pelo BFI [Link citado por Marco Dreer em sua dissertação de mestrado]

A intervenção de Martin Koerber, chefe de conservação da Deutsche Kinemathek e um dos responsáveis pela restauração de Metrópolis, entre diversos outros filmes, foi a primeira a tratar de forma mais direta e séria a questão da transição para o digital. Ele começou chamando atenção para o fato de que esta transição tecnológica é a primeira na qual os arquivistas audiovisuais, as cinematecas e os museus de cinema podem buscar intervir no momento mesmo em que ela está ocorrendo. Ao contrário das transições anteriores, neste momento os arquivos de filmes estariam organizados e estruturados o suficiente para estabelecer uma reflexão e uma ação no sentido de tentar influenciar a direção desse processo. Tal possibilidade por outro lado implicaria em um debate profundo sobre ética e responsabilidade dos arquivistas e das instituições em todas as etapas de seu trabalho.

Para Koerber não há dúvida que todas as etapas da vida de um filme serão feitas através de ferramentas digitais, com a exceção da conservação que continuará conjugando a conservação fotoquímica. Neste sentido, Koerber provocou a platéia a abandonar os termos “restauração digital”, “projeção digital” ou “cinema digital”. Para ele ou há restauração ou não há restauração de um filme. Ou há projeção ou não há projeção. Ou há cinema ou não há cinema. Bastante rigoroso em sua fala, ele defende o uso mais cuidadoso dos termos.

François Ede, diretor de fotografia e responsável pela restauração de “Jour de fête”, “Play Time” e “Lola Montès” escolheu o termo “síndrome digital” para falar desse novo momento e seu impacto na conservação. O discurso forte e insistente na fragilidade do digital para conservação de filmes apenas reforçou o tom geral, indo um pouco além ao falar dos custos de preservação do digital em comparação ao fotoquímico. Neste ponto ele foi auxiliado pela participação de Ronald Boullet, supervisor de restauração do grupo Éclair, que apresentou algumas tabelas comparativas:


Na primeira tabela estão os custos médios de laboratório para um filme colorido de 90 minutos (valores em euro). A segunda apresenta de forma comparativa os custos envolvidos na conservação de longa duração para filmes em suporte de película e em suportes digitais. Mesmo tendo um custo inicial mais elevado, a película é de longe um suporte mais barato na preservação.

A mesa redonda do final da manhã foi uma forma de celebrar as parcerias que estão sendo feitas nesse novo momento, uma volta ao aspecto político do primeiro dia. Um novo pacto entre os atores do mercado e do setor público, convergência de interesses (sobretudo financeiros), num momento em que o governo francês está disposto a financiar a digitalização de acervos públicos e privados. A participação de Nicolas Seydoux, ex-presidente da Gaumont, marcou esse aspecto. Discutiu-se também um pouco do papel da Cinemateca Francesa, não apenas na formação de platéias, mas na mediação e transmissão de conhecimentos. A participação de Gian Luca Farinelli da Cineteca de Bologna e responsável pela criação do Laboratório L’immagine Ritrovatta, foi interessante, pois trouxe uma dimensão um pouco diferente ao falar da realidade italiana. Para ele, a situação da França hoje na área digital é uma verdadeira “ficção científica” se comparada à situação italiana.

A participação de Mari Sol Pérez Guevara, chefe da Comissão de Mídia e Audiovisual da União Européia, apresentou a política que vem sendo construída com os países membros para acompanhar e coordenar essa transição para o digital. Ela fez um histórico da comissão e mencionou muitos relatórios que estariam sendo elaborados de forma conjunta entre os países membros (veja aqui o sitio com relatórios e recomendações do comitê). Porém, sua fala acabou revelando um enorme descompasso entre a política interna francesa e as dos demais estados membros. Ao final, foi atacada de forma veemente por representantes de entidades francesas que questionaram a legitimidade da Comissão e a qualidade do trabalho lá desenvolvido. É um pouco difícil compreender exatamente as razões da briga, pois devem estar relacionadas mesmo com a própria estrutura da União Européia que, como podemos ver com o caso da Grécia, vem enfrentando grandes crises.

De qualquer forma, independente de quem tenha razão neste caso, existe sim uma posição de isolamento da França em relação a outras iniciativas européias, que parece ser sintomática. Na composição mesma do colóquio chamou atenção a ausência de representantes de outras cinematecas importantes (ex.: Espanha, Portugal) e, sobretudo, dos holandeses que notadamente têm um protagonismo nas ações e na reflexão sobre o digital. Basta lembrar aqui o trabalho de Giovanna Fossati “From Grain to Pixel: The Archival Life of Film in Transition” (Fossati é professora do Mestrado em Film Preservation and presentation na Universidade de Amsterdã (do qual ela participou da criação) e Curadora do Museu do cinema holandês (EYE – Film Institute Netherlands. www.eyefilme.nl) e o projeto Images for the future, que está digitalizando todo o patrimônio audiovisual da Holanda.

Mathieu Gallet diretor geral do Institute National de l’audivisuel - INA fez uma apresentação semelhante a do presidente da BNF. Abordou o trabalho desenvolvido pela instituição e despejou uma quantidade de números e estatísticas impressionantes no tocante à armazenagem, digitalização e controle de acervos. Sua presença marcou muito mais uma opção política do que técnica.

Jean-Pierre Beauviala, inventor e criador da Aaton fez uma bela apresentação buscando nos autochromes dos irmãos Lumière a inspiração para uma reflexão sobre a preservação analógica e digital do cinema. Foi uma apresentação bastante técnica e confesso que não consegui acompanhar todo o debate. Mas o público adorou ver a proposta de separação YMC do inter-negativo num mesmo rolo de filme PB. (Ver foto abaixo).

Porém ficou para o final do colóquio aquela que em minha opinião foi de longe a melhor e mais importante reflexão apresentada durante todo o evento. Alexandre Howart, diretor do Österreichisches Filmmuseum-Austrian Film Museum de Viena fez uma intervenção tranqüila e precisa problematizando o processo da chamada revolução digital e a maneira como arquivos e governos têm se posicionado sobre o tema.

O questionamento que Howart faz é simples, mas me parece exato. A quais interesses está respondendo a revolução digital? Não se trata de negar a existência desse processo, de fechar os olhos para as mudanças que estão operando, mas olhá-lo com atenção e enxergar os interesses e disputas que o constituem.

Para Howart, mais do que em outros momentos da história do cinema a questão econômica vem comandando essa transição para o digital. A rapidez e a força desse processo vêm sendo definidas por interesses de grupos específicos que estão mais preocupados com o lado mercantil desse processo do que com o lado cultural. A questão levantada por Howart poderia ser colocada da seguinte forma: Se existe o consenso de que o digital não garante a conservação das informações por longo prazo e que exige constantes investimentos em seu armazenamento, manutenção e migração, porque governos e arquivos audiovisuais estão investindo milhões num processo sem garantias? [Certamente ele não está defendendo uma não atenção para a produção cinematográfica que já nasce digital, essa produção precisa ser preservada e, como já nasce na nova lógica, demanda muitos recursos e cuidados. Ele questiona mesmo é o investimento maciço na digitalização do patrimônio cinematográfico num momento em que está claro que os investimentos necessários são enormes e que as garantias não existem. Isso se torna mais duro quando se pensa num momento de crise como o que vivemos agora: será possível manter uma política de investimentos constantes na migração e na manutenção da acessibilidade desse material? Talvez a França e a Alemanha sejam capazes, mas e os demais países? A crise atingiu com força Portugal, Itália, Grécia.... E o Brasil?]

No mundo todo, a ordem do dia é a “acessibilidade” dos conteúdos e dos acervos, sobretudo audiovisuais. Esta acessibilidade permitida pela digitalização intensa de conteúdos seria sinônimo de democratização, pois milhares de pessoas em todo o mundo poderiam passar a ter contato com obras que antes estariam trancadas, escondidas ou perdidas nos acervos das instituições ou restritas, no caso do cinema, às salas de projeção. A pergunta que Howart coloca é se esta política do acesso está necessariamente respondendo a uma lógica de democratização da informação e da cultura, quando não se tem garantias a médio e longo prazo de se continuar tendo acesso a elas. É uma boa política pública investir milhões num processo que só dá garantias reais aos interesses dos grupos privados que detêm os mecanismos de produção desse mesmo processo? Sob o discurso do acesso talvez estejamos construindo um sistema que é insustentável a médio prazo e que na prática garante a transferência a longo prazo de recursos (normalmente públicos) para aquelas empresas e grupos econômicos que têm o poder de decidir os novos produtos e os novos padrões tecnológicos. Neste sentido, a discussão proposta por Howart é basicamente política, sobre democracia e responsabilidade pública; sobre a responsabilidade dos museus e cinematecas em suas práticas. Para ele, estas instituições deveriam lutar para estabelecer um outro tempo neste processo.

A última mesa redonda acabou girando sobre o tema da cinefilia e formação de platéias. A importância ou não das salas de cinema, o uso da internet na difusão e acesso de filmes. A discussão não conseguiu decolar e ficou muito marcada por um certo saudosismo sem consistência em relação à projeção analógica, o 35mm etc.

Para encerrar o colóquio foi exibido “The man how knew too much” de Alfred Hitchcock em uma cópia original do primeiro lançamento, já um pouco detonada, mas com sistema de som original. A projeção foi precedida de uma palestra de Jean-Pierre Versheure, professor do Institut National Supérieur des Arts Du Spetacle - INSAS, e colaborador do Conservatório Técnico da Cinemateca Francesa, que tratou justamente do sistema sonoro empregado por Hitchcock neste filme.

Espero que esse breve texto tenha dado uma dimensão do encontro e trazido questões interessantes sobre o tema. De uma forma geral fiquei um pouco desapontado com as discussões, talvez tivesse uma expectativa que algo de mais importante fosse levantado e atualizado em relação ao digital, sobretudo na conservação. O aspecto de celebração pública de uma política definida nos bastidores deu um tom um pouco estranho para o colóquio que se apresentava como uma reflexão aberta para o futuro das cinematecas. (Veja aqui o balanço oficial do colóquio feito pela Cinemateca Francesa). De toda forma, há um elemento interessante de se observar que é o lugar central que ocupa o conceito de patrimônio na França. É um conceito realmente enraizado, que aparece de maneira fácil e corrente em todos os discursos. A importância do capital cultural é algo estabelecido. No Brasil, ainda precisamos batalhar muito por esse reconhecimento, precisamos construir esse espaço, sobretudo no que toca ao audiovisual. Fico lembrando do trabalho pedagógico e militante de Paulo Emílio Salles Gomes nos artigos do Suplemento Literário do Estado de São Paulo no final da década de 1950 e início da década de 1960 nos quais tentava consolidar um pensamento sobre a importâncias das cinematecas... Apesar de todos os avanços que ocorreram na área ainda precisamos de muita militância para que uma Cinemateca não seja vista como artigo de luxo ou instituição supérflua no meio cinematográfico.

Foi mesmo a participação de Alexander Howart que me despertou mais questões que começam a me fazer olhar de outra forma para o nosso contexto brasileiro. Uma discussão política que envolve uma profunda reflexão sobre democracia e responsabilidade estatal, sobretudo no que se refere ao acesso e à preservação do patrimônio audiovisual. Talvez o fato de nos encontrarmos um pouco na periferia desse tsunami digital nos permita uma reflexão um pouco mais detida sobre os caminhos que devemos seguir, uma reflexão que é principalmente sobre democracia. Talvez a nossa força nesse contexto seja mesmo o nosso “tempo lento”.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A "restauração" de Guerra nas Estrelas em 1997

O lançamento da “edição especial” de Guerra nas estrelas (1977) em 1997 talvez seja um dos casos mais famosos de “restauração”, tanto pelo apelo do filme que deu início à saga de Luke Skywalker e Darth Vader, quanto pelas circunstâncias que envolveram a sua realização. Este foi um dos casos em que a palavra “restauração”, com as conotações éticas e técnicas conforme utilizada no campo da preservação audiovisual, tenha sido mais mal-utilizada pela indústria cinematográfica.

O texto abaixo nada mais é do que um resumo do excelente artigo “Saving Star Wars: The Special Edition Restoration Process and its Changing Physicality”, de Michael Kaminski.

No início dos anos 1990, quando se aproximava os 20 anos do lançamento do então já mitológico Guerra nas Estrelas, seu diretor e produtores se reuniram para pensar o que poderia ser feito nessa data comemorativa.

Desde a estréia filme, em 1977, o seu extraordinário sucesso obrigou a feitura de milhares de cópias para lançamentos e relançamentos em todo o mundo. No sistema industrial de produção cinematográfica, os negativos originais (isto é, os negativo de câmera já editados) são protegidos através da feitura de “materiais intermediários”. Esse processo consiste em do negativo ser feito um interpositivo e dele um internegativo. A partir de um internegativo é feito um número limitado de cópias, antes do material se danificar pelo uso intenso. Quando um internegativo se “estraga”, volta-se somente ao interpositivo, protegendo, assim, os negativos originais que são pouco manipulados. Entretanto, em vários casos, quando se deseja cópias de alta qualidade, elas costumam ser feitas diretamente dos negativos originais (lembrando que quanto mais gerações, mesmo nos materiais intermediários de grão fino, menor a qualidade).

Além disso, dado o fenômeno que Guerra nas Estrelas se tornou, foi necessário fazer uma quantidade incomum de Interpositivos e Internegativos. Contraditoriamente, quanto mais sucesso comercial faz um filme, mais chances ele tem de seus materiais originais se deteriorarem dado o uso intenso.

O último interpositivo de Guerra nas estrelas fora feito em 1985 para dar origem a uma cópia nova (master) a ser usada para o lançamento do filme em vídeo. Assim, em 1994, quase dez anos depois, quando foram olhar os negativos originais viram que ele estava em péssimo estado.

É verdade que os materiais intermediários também poderiam ser usados, já que eles, a princípio, têm uma qualidade quase igual a dos negativos, mas para poupar tempo e dinheiro, eles tinham sido feitos com intermediário reversível. Reversível é o tipo de negativo que não dá origem a um positivo, mas ele se transforma em positivo (o filme reversível 16 mm, por exemplo, foi muito utilizado em TV e publicidade). E esses intermediários reversíveis estavam horríveis.

Além dos danos mecânicos dado o manuseio excessivo no laboratório, havia um outro problema com os negativos – sua cor.

Até os anos 1950, somente uma parcela da produção de Hollywood era colorida, já que o único sistema disponível era o caro e trabalhoso sistema Technicolor. Nessa década, a Kodak lançou seu negativo colorido tricapa, o Eastmancolor, tornando a realização de um filme colorido tão simples e barata quanto a de um filme em preto-e-branco. Entretanto, como só foi descoberto mais tarde, os negativos e cópias desses primeiros filmes coloridos com negativos Kodak desbotavam após poucos anos. Eles eram muito mais suscetíveis à ação do tempo do que os filmes P&B e mais até do que os realizados pelo Technicolor. Somente a partir dos protestos liderados pelo cineasta Martin Scorcese é que a Kodak admitiu o problema e trabalhou para solucioná-lo, lançando em 1983 um negativo “low fade”.

Mas Guerra nas Estrelas, filmado em 1977, ainda tinha usado um negativo pouco afeito à preservação.

De qualquer modo, esse novo lançamento do filme foi utilizado para que George Lucas finalmente pudesse ter a chance de fazer coisas no filme que não pudera trinta anos antes. O maior desejo era “melhorar” os efeitos especiais e somente as partes que iam receber efeitos digitais é que foram scaneadas em resolução 2K.

O resto do filme, que seria duplicado fotoquimicamente, também apresentava problemas, pois nas cenas que tinham efeitos óticos (como as lutas de sabre de luz), os grãos apareciam com destaque devido às copiagens em laboratórios. Portanto, foi necessário substituir pedaços do negativo original com trechos vindos dos negativos de separação de cor (YCM color separation). O próprio George Lucas tinha uma cópia technicolor de Guerra nas Estrelas guardada no porão da sua casa que serviu de referência nesse processo!

O som também foi radicalmente alterado, sendo remasterizado digitalmente.

Os trechos do filme com novos efeitos em CGI (como a cena anteriormente inexistente do diálogo entre Han Solo e Jabba, the Hut) foram colocadas no negativo da versão original. Isto é, o negativo da versão de 1977 foi desfeito e não mais existe tal como era.

Lançada em 1997, foi a “restauração” mais cara até então, tendo custado mais do que o filme original. O mais curioso – e trágico – é que todas as cópias antigas de Guerra nas Estrelas foram tiradas de circulação e destruídas, mantendo-se apenas as cópias másteres. Atualmente, as únicas cópias em película disponíveis para exibição são as dessa versão “especial”.

Tentou-se reescrever a história, tornando impossível, a partir de 1997, ver Guerra nas Estrelas tal como ele foi exibido nos vinte anos anteriores.

Eu, particularmente, vi Guerra nas Estrelas, que conhecia apenas da Sessão na Tarde da TV, no Cinema Niterói em 1997. Achei na época os efeitos digitais (sobretudo nas cenas finais, com a celebração em várias cidades alienígenas) bastante sem-graças. Hoje, acredito que eles parecem mais mal-feitos para as platéias atuais do que os efeitos óticos ou com bonecos das versões originais. O Yoda de borracha dos anos 1980 dá de mil no Yoda digital dos anos 2000.

Quem quiser saber ainda das questões envolvidas no lançamento do filme em DVD em 2004, leia a continuação do artigo citado.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Ainda o digital - carta da ABC

A Associação Brasileira de Cinematografia (ABC), que reúne técnicos de imagem e som do audiovisual no país, divulgou no dia 28 de outubro de 2011 um documento intitulado "Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais". O documento está abaixo:

Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais

A ABC (Associação Brasileira de Cinematografia), que tem como associados os técnicos responsáveis pela criação da imagem e som do audiovisual brasileiro, vem a público manifestar sua crescente preocupação com a forma com que os seus trabalhos vem sendo apresentados ao público, e propor uma ampla discussão ao longo de toda a cadeia produtiva (técnicos, produtores, realizadores, finalizadores, distribuidores, laboratórios, imprensa especializada(1), autoridades e instituições do cinema).

Esta iniciativa ganhou urgência face aos problemas técnicos constatados pela ABC durante a exibição de muitos filmes nas últimas edições dos principais festivais e mostras realizadas no Brasil, e também na divulgação pelas emissoras de televisão, e tem por objetivo buscar, em conformidade com todos os envolvidos, a melhor forma de preservar a qualidade do audiovisual brasileiro, adotando padrões técnicos universais e aperfeiçoando os procedimentos ao longo do processo produtivo.

Esse é um momento de acelerada transformação tecnológica - com todas as dificuldades e percalços que isso implica, e à ABC cumpre agir no sentido de assegurar ao público a melhor qualidade possível n a apresentação da obra audiovisual.

A cadeia produtiva no foto-químico

Até alguns anos atrás o percurso das nossas imagens e sons entre o momento da sua captação e apresentação poderia ser descrito como:

Filmagem > Laboratório > Montagem > Finalização > Copiagem > Projeção

Tradicionalmente, era responsabilidade do Diretor de Fotografia dominar a técnica da filmagem, do laboratório processar a película dentro de padrões rígidos que garantissem a qualidade do registro fotográfico, e do Exibidor projetar os filmes também dentro de padrões que permitissem a reprodução fiel da imagem e som concebidos na origem por Produtores/Diretores, Diretores de Fotografia, Diretores de Arte e Equipe de Som.

Ao Diretor de Fotografia cabia indicar equipamentos e procedimentos técnicos necessários para a impressão no negativo da imagem concebida para o projeto. Era de sua responsabilidade garantir a obtenção de uma imagem de qualidade compatível com o grau de investimento financeiro e artístico de todos os envolvidos no processo de produção e criação.

Para garantir a preservação da qualidade da imagem e som foi necessário desenvolver uma metodologia e criar padrões técnicos de referência para todos os processos. Diretores de Fotografia, Técnicos de Laboratório e de Projeção se pautaram por eles visando garantir a excelência do espetáculo cinematográfico.

A revolução digital trouxe a falsa esperança de que a qualidade do original seria integralmente preservada ao longo da cadeia de produção. Além disso, o digital inaugurou a facilidade de acesso (preço e acessibilidade), aos equipamentos (hardwares e softwares) por parte dos produtores e técnicos.

Com o desenvolvimento da tecnologia digital, que multiplicou formatos, mídias e codecs (codificadores/decodificadores), surgiu uma enorme diversidade de caminhos para as nossas imagens, da captação até a exibição. Expandiram-se as possibilidades criativas e com isso tornou-se imperativo o estabelecimento de uma metodologia e de padrões rígidos como a que havíamos alcançado no foto-químico. A facilidade das interfaces amigáveis, de certa forma mascara a complexidade crescente dos equipamentos e processos. Um erro numa fase intermediária muitas vezes só aparece quando da exibição da peça finalizada.

A partir de 1999 a tecnologia DLP Cinema (Digital Light Processing), foi aprovada pela indústria cinematográfica norte-americana, sem que entretanto fossem criadas normas técnicas ou padrões definidos para regulamentar o que passou a ser chamado de Cinema Digital. Na ocasião ficou estabelecido que sob essa denominação estariam aquelas exibições realizadas com uma resolução espacial superior a 2K (2 mil pontos por linha).

Seis anos se passaram até que a DCI (Digital Cinema Initiatives), um grupo formado a partir das majors de Hollywood, publicou em um documento abrangente estabelecendo as especificações técnicas para o cinema digital com o intuito de estabelecer limites de qualidade tão altos quanto o fi lme 35 mm(2). Esta iniciativa foi encampada pelo meio cinematográfico e pela SMPTE (Society of Motion Picture and Television Engineers) que mais tarde criou um padrão específico para atender tais requisições.

No Brasil, com a alegação de que a produção independente, que hoje migrou maciçamente para o digital, não teria condições de gerar rendas para cobrir os custos da instalação de salas com o padrão DCI, foi adotado informalmente um "padrão brasileiro" que reuniu elementos de hardware e software já existentes no mercado para atender a um modelo de negócio considerado factível pelos empresários da distribuição e exibição digital. Este padrão está sensivelmente abaixo daquele adotado mundialmente para o cinema digital.

Como profissionais da imagem e do som sabemos que o aumento de variáveis no processo digital traz junto o crescimento da probabilidade de erros. Daí a necessidade de se aumentar o controle e não diminuí-lo como muitos erroneamente acreditam, e de adotar normas universais que venham disciplinar a cadeia produtiva do audiovisual.

O registro da imagem cinematográfica e do som implica investimento significativo de capital, criação artística e conhecimento técnico. Existe um processo de construção destes registros a partir de conceitos concebidos pelo núcleo criativo que devem ser preservados até sua apresentação seja ela em salas de exibição, televisores, computadores pessoais ou dispositivos portáteis.

Ao escolhermos nosso equipamento de captação estamos definindo uma série de especificidades para nossas imagens que devem ser preservadas ao longo do caminho através de um workflow adequado, testado e aprovado pelo produtor.

Outro aspecto que preocupa a ABC nesse momento de transição tecnológica, é a ausência de cursos de atualização, reciclagem e formação de projecionistas e técnicos em projeção digital.

Por outro lado, o sucateamento das sala de exibição em suporte foto-químico, consequência da ausência de investimento numa tecnologia cada vez mais considerada como em vias de desaparecimento, levou a qualidade da exibição nas salas de cinema ao patamar mais baixo que se tem notícia até hoje entre nós.

Nesta conjuntura, a ABC manifesta sua preocupação com o acúmulo de erros e a falta de controle de qualidade em todas as etapas do processo, especialmente na masterização e na exibição, o que compromete o trabalho de todos os envolvidos na criação da imagem e do som (Diretores de Fotografia, Diretores de Arte,Montadores, Figurinistas, Tecnicos de Som, Mixadores, Editores, etc).

Como ação inicial, estamos estabelecendo um Grupo de Trabalho dentro desta Associação, com o objetivo de preparar e divulgar as Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais; documento que descreverá em detalhe os procedimentos mínimos que assegurem a preservação da qualidade - com a reprodução fiel da imagem e som, da captação até a recepção final da obra.

A experiência do espectador diante das obras audiovisuais é nosso bem maior. Deve ser preservado e aprimorado. Para tanto, convidamos a todos os interessados a se unirem à ABC neste esforço.

São Paulo, 28 de Outubro de 2011

Presidente Vice-Presidente Secretario Tesoureira

Carlos Pacheco Adrian Teijido Rodrigo Monte Maritza Caneca

Membros do Conselho

Affonso Beato, Alziro Barbosa, Carlos Ebert, Henrique Leiner,

Jacob Solitrenick, Jose Francisco Neto, Jose Roberto Eliezer,

Lauro Escorel, Lito Mendes da Rocha. Lucio Kodato,

Marcelo Trotta, Nonato Estrela, Pedro Farkas, Roberto Faissal, Tide Borges.