domingo, 23 de novembro de 2008

A imagem em movimento: tema ou objeto? - Parte 2

Continuação...

Bem, vamos dar uma olhada agora neste “surgimento a tempo dos arquivos”, como Pierce generosamente coloca, com uma breve e informal história da conservação fílmica, passando por suas características principais, algumas das quais servem para exemplificar as questões e ideologias dominantes que marcaram seu desenvolvimento.

Eu disse que algumas pessoas levaram o nascimento do cinema a sério, mas raramente foram seus primeiros inventores e empresários. Porém, a preservação cinematográfica teve suas isoladas vozes visionárias, pessoas que viram o potencial das imagens em movimento para alem de sua capacidade de excitar e entreter. Uma dessas pessoas foi Boleslaw Matuszevski, um cinegrafista polonês radicado em Paris que em 1898 – apenas três anos após os irmãos Lumière projetarem seus primeiros filmes para um público pagante no porão do Grand Café no Boulevard des Capucines em 28 de dezembro de 1895 – reconheceu a importância do filme como registro da vida contemporânea num livreto intitulado Uma nova fonte de História (Un nouvelle source de l’histoire). “O filme”, ele escreveu, “esse simples tira de celulóide impresso, constitui não apenas um documento histórico, mas uma parcela da história, e uma história que se apagou, mas não necessita de mágica para ganhar vida novamente... é necessário dar a essa fonte talvez privilegiada a mesma existência oficial e as mesmas possibilidades que são dadas a outros arquivos já reconhecidos”. Ele sugeria que esse arquivo de filmes proposto fosse ligado a uma organização como a Biblioteca Nacional francesa, e ele foi visionário o bastante para recomendar um sistema de depósito legal com padrões técnicos, como o depósito de negativos e o uso de cópias de referência para acesso. Como ele próprio previu, suas propostas não foram ouvidas: "Eu não tenho ilusões”, ele disse, “que meus projetos sejam rapidamente implementados”.


Houve sugestões similares no Reino Unido. No anuário Optical Magic Lantern Journal Annual de 1899, um escritor da revista Truth é citado como tendo dito que “uma espécie de Museu Nacional deveria ser criado para a coleção de todos os eventos públicos, como o Jubileu do ano passado”. Sete anos depois, o periódico Optical Lantern and Kinematograph Journal antecipou a possibilidade de depósito legal para filmes, como existia para livros e para a palavra impressa: “Chegará a época”, imaginou, “quando realizadores de registros bioscópicos terão que enviar duas cópias para o Museu Britânico, duas cópias para Biblioteca Bodleian e por aí em diante... até que um dia você será capaz de ver, anos e anos depois, esses incidentes acontecendo?”. De fato, o pioneiro cineasta britânico Robert W. Paul, em dezembro de 1896, ofereceu ao Museu Britânico várias de suas reproduções cinematográficas, que foram propriamente aceitas e depositadas no setor de Impressos e Desenhos. Em outubro de 1908, o Bioscope – num artigo chamado Não é uma moda – publicou algumas palavras que encorajavam o novo meio: “A voga do filme não é como dos cogumelos... Ele cresce vagarosamente como o carvalho... Ele não pode colapsar. Ele pode sofrer das tempestades de seus inimigos dos outros negócios de diversão e dos métodos inescrupulosos das pessoas mesquinhas, mas vai continuar crescendo e se ramificando em novos campos de utilidade. Seu futuro é garantido.” De volta à França, porém, o Ciné Journal de 27 de fevereiro de 1910 revelava que os primeiros quinze anos de produção de filmes franceses já tinham se perdido ou estavam ameaçados por mutilação, dispersão, perda, negligência ou destruição deliberada, e – ecoando Mautszewski – exigia o estabelecimento de uma “Cinematografoteca” para registro de direitos autorais e guarda de filmes, assim como existia para livros na Biblioteca Nacional Francesa. “O que”, reclamava o jornal, “se pode dizer da negligência de nossos contemporâneos? Eles não estão preocupados que o mais excitante espetáculo de suas vidas tenha desaparecido.”

Houve também nessa época um punhado do que você pode chamar de arquivos acidentais. A Biblioteca do Congresso nos EUA recebeu cópias em papel dos filmes [os chamados paper prints], com fins de registro de direitos autorais, de 1893 (os primeiros foram os “Kinetoscopic Records” de Edison) até 1912 – estes foram (satisfatoriamente) restaurados de volta para película. E o Abade Josef Joye, um padre jesuíta suíço, pediu, pegou emprestado e contrabandeou por baixo de sua batina mais de dois mil filmes curtos do início do cinema, de todos os tipos, para exibir em sua escola dominical na Basiléia nos primeiros anos do século XX. Cerca de 1.200 deles sobreviveram e estão preservados no NFTA no Reino Unido.

Houve também um arquivo constituído na Dinamarca nos anos 1920 para preservar registros de personalidades dinamarquesas célebres. Mas talvez o principal candidato ao título de primeiro arquivo de filmes autêntico e autorizado seja o Imperial War Museum, no Reino Unido, criado em 1917 como um memorial do Império Britânico para o sacrifício e esforço que a Grande Guerra representou. Em 1919, a coleta de registros cinematográficos oficiais da Primeira Guerra Mundial foi adicionado aos seus estatutos. O filme A Batalha de Somme (The Battle of the Somme) – agora designado como patrimônio mundial pela UNESCO – foi um de seus primeiros depósitos. A história do homem encarregado de construir esse arquivo – um discreto e talentoso servidor civil chamado Edward Foxen Cooper – é fascinante, e você pode encontrar um parte dela contada por Roger Smither e David Walsh do Departamento de Filme e Vídeo do Imperial War Museum em artigo em Film History, vol 12, n. 2000. O que está claro é que o arquivo de Foxen Cooper, apesar de especializado em conteúdo, foi, em conceito, a primeira organização de seu tipo a reconhecer e preencher a política completa de coleta, conservação, preservação, catalogação e disponibilização para acesso de filmes sobre a Primeira Guerra Mundial. Ele até advogou exibições públicas de filmes, utilizando a coleção do Museu, e lutou para um papel mais ativo do governo na filmagem de eventos importantes.

Mas nos fomos ensinados que os primeiros arquivos de filmes de verdade – aqueles que reconheceram o cinema como arte e como registro – foram criados em 1935. Dois anos antes, um protótipo de arquivo foi estabelecido na Suécia, mas era uma coleção privada, do falecido Einar Lauritzen [milionário suíço, oriundo de uma família de banqueiros]. Os primeiros arquivos oficiais dessa espécie, criados entre 1933 e 1935, foram o National Film Library do Reino Unido (depois National Film Archive), integrado à alçada educacional do então recém-fundado do BFI (o celebrado autor e membro do parlamento, John Buncan, foi a força atrás dessa iniciativa); o Departamento de Filme do MoMA de Nova York, que ambicionava coletar filmes como uma extensão de sua coleção de arte; e o Reichsfilmarchiv em Berlim, um produto da paixão de Josef Goebbels pelo cinema como instrumento de propaganda. Em 1936, a Cinemateca Francesa, a coleção privada do cinéfilo Henri Langlois, foi estabelecida em Paris (a expressão Cinemateca foi cunhada pela primeira vez pelo crítico francês Léon Moussinac, em um artigo da Cinémagazine em 1921; ele se referia a uma “biblioteca do cinematógrafo, ou cinemateca”. Ele também, em 1929, sublinhou o papel que uma cinemateca podia ter na vida cultural de uma nação - justamente a missão que a Cinemateca Francesa assumiria).

O que levou a esta súbita preocupação pelo cuidado e uso sério do cinema? Não foi apenas a perda de tanto do cinema silencioso – isso só ficou claramente aparente com o desenvolvimento dos arquivos –, mas uma crescente consciência do filme do algo mais do que apenas uma diversão popular: era agora oficialmente uma forma de arte. O crescimento dos círculos de filmes intelectualizados nos anos 1920, como The Film Society, em Londres, que importou os novos e iconoclastas filmes russos, franceses e alemães daquele período, e os movimentos artísticos europeus de vanguarda européia como o Expressionismo, o Surrealismo e o Futurismo, que abarcaram o cinema, contribuíram fortemente para os novos conceitos que viam os filmes como merecedores de serem guardados por seus méritos artísticos. Nos EUA, isso foi reforçado pela chegada de cineastas imigrantes da Europa, como F. W. Murnau, Ernst Lubitsch ou ambos os Vons, o Stroheim e o Sternberg, que injetaram uma estética do velho mundo no impetuoso cinema americano.

Um arquivo se destaca dentre esse disparatado bando de organizações novatas, e é aquele que se tornaria o National Film Archive (NFA) do Reino Unido. Ele merece uma visão mais próxima por ter se tornado universalmente conhecido como modelo de boas práticas e políticas de preservação. Ele nasceu como parte da competência do BFI, ele próprio criado em 1933 para promover filmes culturais e educativos na vida nacional e (como definido numa virtual sub cláusula) para “ser responsável pelos registros cinematográficos e manter um repositório nacional para filmes de reconhecido valor”.

Ernest Lindgren, fundador e primeiro curador do NFA, não foi um colecionador romântico como Lauritzen ou um flamboyant excêntrico como Henri Langlois. Formado em Literatura Inglesa e amante do cinema, ele entrou no instituto em seu Setor de Informação. Sua visão do arquivo se diferenciava da de Langlois e de outros contemporâneos de duas importantes formas. Primeiramente, ele tinha uma visão completamente eclética do filme e da preservação de filmes. Para ele, filmes de não-ficção, filmes de atualidade, documentários, filmes amadores – filmes como um registro vital da nossa vida e do nosso tempo – deveriam receber a mesma importância que os longas-metragens de ficção feitos para o cinema, especialmente num país como a Inglaterra, com uma forte tradição documentária. Eles eram um ingrediente autêntico dessa forma de arte. Numa brochura da NFA publicada em 1958, Lindgren especulava sobre a inquestionável importância e valor que haveria em registros filmados, por exemplo, da coroação da Rainha Elizabeth I e sua vida em Londres, se o cinema tivesse sido inventado 350 anos antes. Ele poderia ter tornado esse argumento igualmente potente, porém mais realista, se tivesse aproximado essa noção ao ser referir nesses termos à Guerra Civil Americana ou à Guerra da Criméia, já que esses eventos foram vívida e extensivamente registrados pelos precursores imediatos do cinema, como a fotografia. Mas o arquivo de Ernest foi o primeiro e único arquivo nacional durante muitos anos a adotar essa postura de ampla aquisição. Mais tarde, ele foi o primeiro a abraçar a televisão como uma parte importante da missão de coleta do NFA.

Em segundo lugar, ele nunca permitiria que cópias únicas fossem projetadas. Ele se preocupava mais com a sobrevivência em longo prazo da coleção do que com o acesso imediato. Cópias de visionamento viriam quando houvesse dinheiro para fazê-las. O armazenamento e a conservação adequados eram sua principal prioridade. Nesse campo, Lindgren se estranhou muito com Langlois, que exibia todo tipo de cópia que tivessem, não importando o dano infligido em cópias únicas. Langlois, então, virou um herói para seus espectadores, entre eles os críticos e futuros cineastas da Cahiers du Cinéma – Godard, Truffaut, Chabrol e os demais – enquanto Lindgren (sem admiradores glamourosos como esses) ganhou a fama de um rígido burocrata que odiava filmes e não deixava ninguém vê-los. Segundo recorrente piada de seus inimigos, NFA significava “Nenhum Filme Acessível” (No Film Available).

Mas qualquer um que já leu o livro de Lindgren, A arte do filme (The Art of the Film), sabe como isso é injusto. Na realidade, ele regularmente programava filmes da coleção do arquivo – cimentando o caminho para a criação da sala de cinema do BFI (o National Film Theatre) – e seu comprometimento genuíno com acesso o levou eventualmente a criar o primeiro serviço de visionamento de arquivos para estudantes, pesquisadores e cineastas (Eu sei disso por que eu fui o encarregado de escrever o rascunho dessa proposta). E, no final, suas medidas protetoras venceram: assim que as cópias do arquivo foram progressivamente preservadas e copiadas (um curador seguinte, David Francis, instituiu a prática de fazer uma cópia de checagem – na verdade, uma cópia de visionamento – de todo filme duplicado para preservação), a coleção de cópias de acesso do NFA se tornou não apenas a maior de todos os arquivos, como uma das que possuem cópias de melhor qualidade. Nos anos 1990, o serviço de visionamento do Arquivo com dois funcionários para agendamento, liderado pela ex-catalogadora Elain Burrows, chegou a emprestar mais de seis mil filmes anualmente para pesquisadores, cinemas do BFI e para arquivos estrangeiros – mais até do que o próprio departamento de distribuição do BFI. “Exibir para se preservar”, disse Langlois. “Não”, disse Lindgren, “Preservar para se exibir”.

O resultado dessa disputa ideológica eventualmente levou ao racha da comunidade dos arquivos de filmes, e por muitos anos Langlois e a Cinemateca Francesa, junto com alguns arquivistas com a mesma mentalidade, como James Card da George Eastman House e Freddy Buache na Suiça, se afastaram do movimento internacional de arquivos de filmes. Como Luke McKernan diz em seu verbete sobre Ernest Lindgren na Enciclopédia de Filmes Britânicos (Encyclopedia of British Film) de Brian McFarlane: “Lindgren não era tão divertido quando Langlois, mas era ele quem estava certo”.

Lindgren trabalhou em seu escritório até sua morte em 1973. Àquela altura ele tinha estabelecido regras de arquivos específicas, como catalogação padronizada, divulgação de procedimentos de seleção, e rigorosa revisão de filmes, que se tornaram práticas básicas da arquivística audiovisual em todo o mundo. Ele também negociou os primeiros acordos de aquisição vantajosos com uma indústria de cinema notoriamente desconfiada, pouco cooperativa e obcecada em proteger seus diretos, e que, ao mesmo tempo, atacava constantemente o governo por causa do depósito legal de filmes. Ele fez outra coisa que foi muito inteligente. Ele colocou no Setor de Preservação de Filmes do Arquivo um jovem chamado Harold Brown, que era office boy no Instituto. Tornando-se praticamente um autodidata após um sacrificante curso para projecionistas sobre como fazer emendas e revisar filme, e que, desde o início, inventava suas próprias técnicas de manuseio e preservação de filmes de arquivo, Harold Brown veio a se tornar um dos maiores especialistas do mundo em preservação de filmes. Desse modo, ele podia rapidamente treinar funcionários sem experiência em trabalhos especializados como reparo de filmes, e dar ajuda prática e esperança a arquivos em países pobres com pouco ou nenhum recurso. Sua visão básica é que profissionais de fora da indústria do cinema adotavam atitudes de visão mais longa do que a de profissionais da indústria cinematográfica, que viam o filme como o produto para exploração em curto prazo e com uma breve vida comercial, e conseqüentemente o manuseavam com menos preocupação para com sua sobrevivência mais longa.

Vou me reter à apenas duas histórias sobre Harold, mas ambas ilustram momentos importantes – talvez cruciais – da técnica arquivística de filmes. O primeiro o próprio Harold é quem conta numa lembrança sobre o início de sua carreira que eles escreveu em Este filme é perigoso: “Eu me deparei com um filme com um rasgo ao longo de dois fotogramas. O jeito ‘certo’ de lidar com isso era cortar os dois fotogramas danificados e fazer uma emenda normal. O que eu fiz foi juntar as partes rompidas e colar um pedaço de filme transparente sobre o corte. Eu fui severamente criticado pelo supervisor técnico do Instituto, mas quando Lindgren viu, ele disse: ‘você estava tentando salvar os fotogramas, não estava?’. Ele claramente estava aprovando aquela medida... e esse incidente revela a postura que passou a nortear nosso trabalho dali em diante”.

A segunda anedota de Harold Brown é narrada em outra citação de Tesouro secreto do século XX, no qual Harold demonstra sua revolucionária copiadora quadro a quadro Mark IV, projetada para copiar os primeiros filmes Lumière e construída por ele próprio com “peças de brinquedo metálico de montar, engrenagens de câmeras antigas, madeira balsa, clipes de papel, elástico de borracha e elástico de estilingue”.

É impossível exagerar a importância desse equipamento do “Dr. Pardal”, que copiou e salvou inúmeros e preciosos rolos de filmes nitratos encolhidos que, por muito tempo, nenhuma outra copiadora conseguia passar – assim como é impossível exagerar a contribuição do próprio Harold Brown para o desenvolvimento da arquivística audiovisual. Nas palavras de David Francis, segundo curador do NFA e depois chefe da divisão de filmes da Biblioteca do Congresso, em Washington, “foi a combinação única da mente ordenada e curiosa de Ernest Lindgren e a habilidade de Harold Brown em pensar em soluções simples e baratas para problemas técnicos complexos, que fez do National Film Archive a autoridade mundial em preservação cinematográfica”.

Eu devo agora fazer uma atualização da história da arquivística cinematográfica e considerar seu futuro. Em 1938, os primeiros arquivos de filmes se reuniram em Paris para criar a Federação internacional de Arquivos de Filmes (FIAF). A Segunda Guerra Mundial interveio e a FIAF teve um recomeço em 1946, agora sem o Reichsfilmarchiv, mas com novos membros em Bruxelas, Basiléia, Praga, Amsterdã e Varsóvia. Desde então o movimento internacional de preservação cinematográfica cresceu rapidamente por todo o mundo, com uma inevitável tendência na direção de arquivos na Europa e América do Norte, mas com uma significativa adição de membros da América Latina, Ásia e África. Sobre aquele primeiro encontro em 1938, Robert Daudelin, ex-presidente da FIAF, escreveu, por ocasião do 50° Aniversário da FIAF: “1938 marcou o fim do período heróico: aquele dos piratas românticos, trabalhando secretamente e isolados, entusiastas do cinema do nitrato subterrâneo. A criação da FIAF marcou o início oficial da era da colaboração, do intercâmbio e de projetos internacionais. Não significou o fim dos mistérios e segredos, mas paixões puderam ser reveladas sem vergonha e o papel dos conservadores de filmes se tornou respeitável. Os arquivos de filmes emergiram de suas atividades clandestinas...” (Bem, pelo menos a maior parte deles, em alguma medida).

Hoje a FIAF tem mais de 125 membros em 80 diferentes países, abrangendo todo tipo possível de arquivo de filme – grandes arquivos nacionais, instituições governamentais, arquivos de filmes especializados e regionais (O Reino Unido sozinho tem arquivos de filmes servindo cada grande região, incluindo arquivos nacionais sui generis na Escócia e no País de Gales), arquivos religiosos e militares, museus de cinema, museus de arte, departamentos universitários, fundações privadas; alguns pobres e outros não tão pobres (não que exista algo como um arquivo rico) – mas todos dedicados, através de um código de ética, à coleta e à preservação de filmes, tanto como elementos do patrimônio cultural como documentos históricos. Um livro excelente e acessível foi escrito sobre o movimento de arquivos de filmes (embora a orelha do livro infelizmente use a frase “imagens tremeluzentes do passado”) que é o livro de Penelope Houston Guardiões do fotograma (Keepers of the frame), publicado pelo BFI em 1994. Entretanto, eu vou ressaltar um aspecto particularmente importante da cooperação entre arquivos, especificamente a repatriação de filmes perdidos ou danificados. O filme é, acima de tudo, um meio internacional, vastamente disseminado por todo o mundo (e era assim particularmente na era silenciosa, quando a língua não era sequer um problema). Ernest Lindgren gostava de apontar o absurdo, por exemplo, do NFA do Reino Unido se concentrar somente em filmes britânicos – como se a National Gallery se restringisse apenas às pinturas britânicas. Felizmente, as maiorias dos conservadores de filmes concordavam com essa visão e freqüentemente os filmes perdidos de um país reaparecerão em outros arquivos, talvez hibernando até finalmente serem catalogados. Parte dos objetivos da FIAF é encorajar e possibilitar o retorno desses filmes aos seus países de origem através de doação ou troca. Alguns arquivos surpreendentes se revelaram uma rica fonte de cópias perdidas na diáspora do cinema, entre os ele os do Uruguai, da Tchecoslováquia, da Holanda e da Austrália. Não é incomum até hoje um clássico britânico ou americano aparecer numa cinemateca exibindo legendas em tcheco.

Eu posso contar uma divertida anedota sobre esse assunto. Num recente festival de cinema em Londres, eu programei uma restauração do mais popular filme silencioso australiano, "O cara sentimental" (The sentimental bloke), um filme de 1919 que por muitos anos sobreviveu somente na forma de um fragmento. Em 1970, um jovem (agora venerável) conservador de filmes, Ray Edmondson, da Divisão de Filmes do Australian National Library, sediado em Canberra (hoje The National Film and Sound Archive of Australia), numa visita à George Eastman House nos EUA, parou em frente a uma dúzia de latas de filmes etiquetadas como "A loira sentimental" (The Sentimental Blonde). Bem, poderia ser um filme esquecido da Jean Harlow ou algo parecido, mas ele era desconfiado – e seu faro estava correto: o arquivista americano, sem familiaridade com a gíria “cara” (bloke), a transformou em “loira” (blonde). Estes eram os negativos de câmera originais em nitrato de “O cara sentimental”, remontado para o mercado americano em 1921. Negociações para o retorno desse material para Canberra logo ocorreram, e o resto faz parte da história da preservação cinematográfica australiana. “A loira sentimental” foi então adicionada à lista dos títulos mais idiotas de todos os tempos, junto com Win Slow Boy ou Charabanc for Dead Lovers [1].

Eu também exibi no mesmo Festival de filmes de Londres a restauração de um filme silencioso americano de 1922 perdido, "Além das rochas" (Beyond the Rocks) – o único filme estrelando Gloria Swanson e Rodolfo Valentino junto - encontrado em partes numa coleção privada de dois mil rolos recentemente doada ao Netherlands Film Museum. Sem piadas aqui, mas é um sinal que ainda há tesouros perdidos meio escondidos debaixo de nosso narizes, e filmes freqüentemente não se perderam, mas estão desaparecidos. Eu digo isso, mas há países onde a situação é muito mais desastrosa. Por exemplo, um outro filme restaurado exibido neste mesmo festival foi um longa chileno silencioso de 1925, El húsar de la muerte – a história do herói nacional chileno Manuel Rodríguez – um dos três únicos longas que sobreviveram dentre os dezesseis produzidos no Chile na década de 1920, vítimas sobretudo de regimes ditatoriais repressivos ou – mais comum – de fábricas de plástico que derretiam cópias de nitrato para fazer escovas de cabelo.

Quais são, então, os problemas e desafios que os arquivos audiovisuais enfrentam hoje? Para todas as intenções e objetivos, eles permanecem fundamentalmente os mesmos que há setenta anos – no máximo, aumentados pelo tempo e pelo novo dilema de como lidar com novas e volúveis tecnologias em um mundo bombardeado por imagens em movimento de todos os tipos. Coleções de filmes de arquivo ainda vivem de orçamentos assustadoramente baixos, ainda mais quando comparados com artes tradicionais como ópera, artes plásticas e música. Anthony Smith, antigo diretor do BFI conhecido pelo seu talento em fazer o falecido Sir John Paul Getty [milionário filantropo, 1932-2003] assinar cheques, costumava dizer que precisaria apenas do equivalente ao que a National Gallery gastava anualmente com a compra de uma pequena pintura Impressionista para fazer funcionar todo o NFA. Os arquivos ainda têm poucos direitos; eles ainda enfrentam a indiferença ou a equivocada resistência de setores da indústria de filmes comerciais; quase nenhum arquivo no mundo tem um sistema de depósito legal satisfatório – apesar de esforços do lobby contrário, o Reino Unido não tem nenhum tipo de depósito legal para filmes, embora tenha amplos direitos (e fundos) para registrar e preservar programas de televisão. A bomba-relógio do nitrato citada por Scorsese, como acontece no clímax dos filmes de James Bond, continua contando seus minutos finais em muitos arquivos, esperando por aquela súbita curva ascendente no gráfico de deterioração. Enquanto isso, seu substituto nos últimos cinqüenta anos – o filme de acetato – que era suposto para durar por quinhentos anos e salvar nossas coleções da maldição do nitrato, ele próprio ameaça se deteriorar arbitrária e inesperadamente nos cofres sob o acre cheiro de vinagre. Se o nitrato é câncer na rosa do cinema, o acetato se tornou a minhoca da maçã. O poliéster, quimicamente estável e aparentemente robusto, é o novo suporte – mas será que ele tem um futuro viável num cenário predominantemente digital? Nossos filmes coloridos estão inexoravelmente desbotando, sem chamar atenção, há quase meio século, apesar da intensa campanha dos anos 1980 de Martin Scorsese e seus companheiros cineastas americanos para que os fabricantes de películas reformulassem a química da emulsão colorida. David Hockney comentou memoravelmente na época que “apesar das cores de Veermer terem mais de 300 anos de idade, vai viver mais do que as cores da MGM”. Mais recentemente, nós experimentamos a virtual obsolescência do videocassete, e nesse caso enfrentamos o território incerto e desconhecido das novas tecnologias – um ambiente em constante fluxo, desenvolvimento e mudanças de formatos.

Entretanto, o que torna o cinema único entre as artes não é apenas o fato de sua imperfeita composição o tornar vulnerável, mas que seu conteúdo visual original – sua razão de ser – não pode ser repetido ou fielmente reproduzido depois de sua desintegração ou desaparecimento ser permitido. Grandes pinturas sobrevivem porque são altamente visíveis e intrinsecamente atraentes, e são logo consensual e publicamente protegidas (sem mencionar seu lucrativo valor turístico). A literatura – a palavra escrita – pode sobreviver sem detrimento em muitas formas diferentes, como rascunhado no verso de um envelope, por exemplo (embora se Rudyard Kipling ou T.S. Eliot tiverem escrito no envelope, você provavelmente irá querer guardar o envelope), ou mesmo – como na cena clímax de Farenheit 451 [dir. François Truffaut, 1966] – confiadas à memória humana. Uma imagem original de um filme, sem a garantia de preservação intencional, é para sempre ameaçada pelo esquecimento. “O filme”, disse Orson Welles, “tem uma personalidade, e essa personalidade é autodestrutiva. O trabalho do conservador é antecipar o que o filme pode fazer – e prevenir isso”.

Então, o que os conservadores de hoje e de amanhã devem fazer? Três coisas. Primeiro, eles não devem entrar em pânico. Eles não devem se curvar às pressões para comprometer suas coleções. Lembrem-se que quando os cofres estão lotados, “debaixo da cama” ainda é uma opção válida. Eles devem a todo custo manter e guardar os materiais originais em seu cuidado e fazer o máximo que puderem para conservar e preservá-los pelo tempo necessário, lembrando-se sempre que não se deve confiar em nenhum suporte cinematográfico. A indústria comercial será a primeira a lhe agradecer. Do mesmo modo, deve manter integralmente e disciplina especializada de catalogação de seus filmes.

Em segundo lugar, assim como eles devem perpetuar a experiência cinematográfica, devem também monitorar e abarcar as novas tecnologias digitais e todas as outras tecnologias que vierem; os arquivos que falharem em fazer isso e preservarem somente o passado irão se apagar e depois morrer. A tecnologia digital de imagens em movimento já revolucionou a realização e exibição cinematográfica. Ele já transformou o acesso às coleções dos arquivos e ajudou a restaurar filmes danificados aparentemente irrecuperáveis. No futuro, qualquer que seja a forma assumida, novas tecnologias vão salvar as coleções – até porque eventualmente elas terão salvá-las. Isso significa que os arquivos devem conspirar de perto com as indústrias de novas tecnologias, com os novos tipos de laboratórios de restauração, e com aqueles estúdios e detentores de direitos que estão finalmente levando a sério seus antigos catálogos e tem, de longe, muito mais recursos que qualquer arquivo poderia sonhar em ter para restaurar e dar nova vida aos seus filmes.

Em terceiro lugar e acima de tudo, os arquivos – na verdade, todos nós que amamos os filmes – devem protestar barulhenta e incessantemente para elevar o status cultural das imagens em movimento no Reino Unido. Mesmo hoje, o filme neste país não é automaticamente encarado como uma forma de arte legítima. Apesar dos protestos de uma pequena elite, que alega reconhecer sim o filme como arte, não há um reconhecimento público como, digamos, a pintura claramente possui. Isso é ainda mais verdadeiro em relação ao novíssimo meio televisivo, apesar das claras evidências a seu favor como, por exemplo, os inovadoras programas de Dennis Potter e Stephen Poliakoff, os incomparáveis documentários de Bronowski, Clark, Attenborough e Vas, ou a genialidade cômica de Hancock, Milligan, Morecambe, Cleese e Gervais.

Para conter esse inerente materialismo, nós devemos exibir nossos produtos, seja Napoleon, The Red Shoes, Josef Joye ou Mitchell and Kenyon, e exigir o crédito por salvá-los como tesouros nacionais autênticos. Esse é o único modo de despertar consciência pública e política e cultural e fazer com que o patrimônio cinematográfico seja adequadamente financiado. Sempre me pareceu deprimentemente significativo que o financiamento do governo para o filme nos Reino Unido foi ligado durante muitos anos a coisas como telecomunicações ou esportes, ao invés de encaminhado através, digamos, do Arts Council (não que eu esteja necessariamente advogando que deva – de fato, hoje o BFI recebe seu financiamento através do Film Council do Reino Unido). O filme sempre foi colocado firmemente no seu lugar; ou lhe foi dito para se sustentar sozinho através do lucro da indústria. Bem, na verdade, por que não, já que há de fato lucro? Se a indústria bilionária dos videogames, por exemplo, fosse taxada em meio centavo para jogo que vendesse, os problemas de nossos arquivos acabariam. Depois de tudo, eu tento salvar Veneza toda vez que eu como uma pizza no PizzaExpress... Esses esquemas não estão além de nossa imaginação ou esperteza [2].

Eu finalmente termino citando novamente Anthony Smith, de uma brilhantemente perspicaz palestra que ele deu sobre a preservação de filmes e televisão para o Royal Society of Arts em 25 de março de 1981:

“O arquivo não é um tributo ao passado, mas uma garantia para o que vem pela frente. Ele representa apenas a ponta do iceberg da memória social e, logo, é parte do futuro... Chega-se a um ponto em que o patrimônio de uma sociedade, seja qual for a tecnologia em que esteja baseado, torna-se responsabilidade comum de toda a sociedade”.

Mas eu dou a última palavra, tipicamente objetiva, a Ernest Lindgren, de sua palestra em 1958: “Os filmes somente podem ser preservados permanentemente pelo interesse nacional por uma organização nacional que tenha, ela mesma, garantia de permanência, que desfrute da confiança da indústria cinematográfica, e que seja provida com recursos para aplicar em seus filmes o cuidado técnico especializado que sua preservação exige. Aqui reside a justificativa para um arquivo de filmes nacional”.

Clyde Jeavons
(tradução de Rafael de Luna)

[1] - Ao invés de Winslow Boy (dir. Anthony Asquith, 1948) e Saraband for Dead Lovers (dir. Basil Dearden, 1948).

[2] - A rede de pizzarias inglesa PizzaExpress criou uma promoção em que de cada pizza Veneziana vendida, 25 centavos eram doados para o fundo “Veneza em Perigo”, criado após as inundações de 1966 na cidade italiana. Segundo o site da cadeia, mais de £1.7 milhão foram doados no Reino Unido nos últimos 25 anos.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A imagem em movimento: tema ou objeto? - Parte 1

Esta transcrição de uma palestra dada em 6 de dezembro de 2005 por Clyde Jeavons, ex-curador do National Film and Televison Archive (NFTA) do British Film Institute (BFI), da Inglaterra, foi publicada no Journal of Film Preservation, n. 73, de 2007. Proferida para uma platéia de arquivistas, trata-se de um amplo apanhado da história da preservação cinematográfica no mundo e, em particular, no Reino Unido, rico em observações pertinentes, detalhes valiosos e tiradas bem-humoradas. Além de um panorama geral sobre as principais questões pertinentes à área, a palestra de Jeavons fornece também um histórico sobre importantes instituições inglesas, como o Imperial War Museum e o próprio National Film Archive (depois National Film and Televison Archive) e a respeito de figuras de destaque como Harold Brown e Ernest Lindgren, conhecido pela rixa com Henri Langlois, de quem sempre perdeu em termos de fama e status.

A imagem em movimento: tema ou objeto?
Clyde Jeavons
(tradução de Rafael de Luna)

Em maio de 1992, através de um acordo negociado com John Grist, então Supervisor da Unidade de Registro do Parlamento, o National Film and Televison Archive (NFTA) do British Film Institute (BFI) começou a adquirir as cópias de preservação dos registros em vídeo parlamentares: ou seja, o acontecimentos da Casa dos Comuns e, em nível seletivo, os procedimentos dos comitês e sessões de debate na Casa dos Lordes. A BBC esteve filmando a Casa dos Lordes desde 1985. O acesso deveria ser dado aos Membros do Parlamento e também às redes autorizadas para fins comerciais. O público também podia ter acesso, mas deveria pagar por cópias de visionamento (Eu devo dizer que houve muito pouca procura por esse setor nos últimos anos). Em 1999, o acordo foi renovado com o sucessor de John Grist, Barbara Long, e acertado para incluir os registros sonoros anteriormente guardados pela Biblioteca Britânica, sendo mutuamente aceito que todos os registros parlamentares deveriam ser colocados juntos num só local. Os registros estão agora em formato digital e planos mais abertos e planos de reações de paralamentares (se o parlamentar em questão estiver sendo referido por um falante), anteriormente proibidos, estão agora liberados.

Eu dou esses pedaços de informações aparentemente gratuitas porque eu acredito que Maurice Bond, guardião dos registros do parlamento por 35 anos, até 1981 – e em cujo nome eu tenha a honra e o privilégio de dar essa palestra – teria aprovado os desenvolvimentos nesse campo específico: ele era uma arquivista profundamente compromissado com o progresso, com o desenvolvimento das práticas de preservação, de adequado armazenamento e de técnicas de conservação, e à permanência dos registros parlamentares britânicos.

A atual estrutura, escopo e escala dos arquivos de filmes em todo o mundo já foram descritos por Crispin Jewitt (coordenadora do conselho da Audiovisual Archives Association), que mostrou como essa área se tornou extensa e ampla. Eu me restringirei a somente um ponto de vista: como eu sou um conservador de filmes por profissão, discutirei, sobretudo, os arquivos de filmes e a preservação de filmes, e seu papel na breve história do cinema. Porém, falarei de filme no sentido mais amplo da palavra. Eu ainda gosto da definição de filme como foi originalmente expressa no artigo primeiro do estatuto da Federação Internacional de Filmes (FIAF): “Por filme se entenda o registro de imagens em movimento, acompanhado ou não por som, registrado na película cinematográfica, fitas de vídeo, discos óticos, ou qualquer outro meio conhecido ou que venha a ser criado”. E como sabemos, no atual panorama digital, novos meios estão sendo inventados enquanto estamos conversando.

As palavras-chave dessa definição são “imagens em movimento”, e essa é a frase que devemos lembrar-nos durante esse panorama histórico da preservação cinematográfica. Eu estive na verdade pensando em três diferentes títulos para essa palestra, todos eles variações do mesmo tema. Eu os convido a escolher um. Eles são: A imagem em movimento: tema ou objeto?, Imagens em movimento: conteúdo versus suporte e O filme como arte e artefato. Eles todos pretendem sugerir e mostrar que a História do cinema em seus 110 anos de existência – seu período primevo, se preferirem – e a ainda mais breve História da preservação cinematográfica tem sido uma batalha contínua pela sobrevivência que se deu entre a miraculosa invenção das imagens fotográficas em movimento e a perversamente instável, autodestrutiva e cronicamente efêmera sucessão de suportes dos quais elas foram dependentes; a exploração mecânica e eletrônica aos quais elas foram constantemente sujeitadas; e, ainda, à indiferença e negligência humana. Eu quero sugerir que sem a chegada tardia da preservação cinematográfica no século XX, não haveria uma história do cinema coerente de seus primeiros cem anos – ou, no melhor dos casos, haveria uma história muito incompleta, repleta de conjecturas. O filme, grosso modo, é uma colisão catastrófica de química, física, biologia, teimosia e a segunda lei de termodinâmica.

Alguns desses pontos são destacados num pequeno filme, que – como costuma acontecer – nos dá um quarto título para acrescentar a nossa lista: Nosso patrimônio cinematográfico inflamável [Our inflammable film heritage, dir. Mark-Paul Meyer, Holanda, 1994]. É uma introdução evocativa - e bastante bela, em minha opinião – de um filme comum de treinamento para técnicos de arquivo feito nos anos 1990, com o apoio da NEDUA por um grupo de Arquivos de filmes europeus, principalmente da Itália, Holanda, França e Portugal. Seu impacto está um pouco diminuído esta noite pela qualidade da imagem disponível para nós, resultado da compressão digital e da projeção de dados eletrônicos (me parece, às vezes, que à medida que a tecnologia avança, as imagens ficam piores), mas eu gosto dele por que destrói uma série de mitos para aqueles que têm uma idéia preconceituosa do primeiro cinema, e para aqueles que não têm absolutamente idéia alguma sobre a origem das imagens em movimento ou sobre como essas primeiras imagens em movimento eram.

Os primeiros filmes – aqueles feitos na primeira década após as primeiras exibições públicas em 1895 – não eram primitivos, como são algumas vezes descritos. Elem podiam se ressentir da falta de fluidez ou da compreensão do que uma câmera de cinema era capaz de fazer, mas eles freqüentemente eram de grande qualidade fotográfica (nós só temos que olhar para a produção de Mitchell e Kenyon [1] para comprovar isso); eles podiam desde o início conter cores belíssimas; eles capturavam o mundo à sua volta com corajosa simplicidade e clareza (assista aos primeiros filmes dos irmãos Lumière, de Birt Acres e Robert Paul); eles descobriram uma nova dimensão de fantasia e imaginação (veja as viagens maravilhosas de fantasia e magia de James Williamson, Georges Meliès e Charles Pathé); e elas cobriram a maior parte da gramática do cinema muito antes de D. W. Griffith ser creditado por sua invenção. O close-up, por exemplo. Se já foi feito no cinema um close-up maior do que o do famoso filme gag de Williamson, de 1901 – The big swallow – no qual um homem em chapéu Gelô engole tanto a câmera quanto o cinegrafista, eu não conheço.

E se fossem projetadas corretamente – como ainda podem ser – as primeiras imagens em movimento não flickavam (tremeluziam), elas não tremiam ou balançavam ou eram filmadas na velocidade errada; e elas não eram mais granuladas do que filmes feitos cinqüenta anos mais tarde (o grão é, no final das contas, a textura que faz o filme funcionar). Estes são clichês do cinema silencioso que os arquivistas de filmes detestam e fazer o máximo para enterrar, embora muitos repórteres e jornalistas preguiçosos continuem surdos a esses argumentos. Há ainda outro velho bordão, que talvez seja o que mais irrite os conservadores de filmes... Eu cito de uma reportagem recente no jornal Guardian celebrando uma iniciativa louvável levada a cabo pela British Telecom e pela BBC, envolvendo tanto o British Film Institute (BFI) quanto o canal de televisão Channel 4, chamada Creative Archive Group, lançada para disponibilizar filmes de arquivo para download: “Como um ex-produtor cinematográfico, eu acredito apaixonadamente no conceito, na verdade, na santidade, dos direitos autorais. Mas eu tenho esperado um longo tempo para ver similar empenho e imaginação utilizados num generoso sistema que permita compartilhar o tesouro de conhecimento que está trancado em arquivos empoeirados por todo o Reino Unido”. Ah, “trancado em arquivos empoeirados” – le cliché juste – sempre presente nos momentos de retórica cultural! Na verdade, são três clichês pelo preço de um: “trancado... arquivos empoeirados... por todo o Reino Unido”, ou seja, todo o país é culpado! O que está faltando é: “trancado e eles jogaram a chave fora!” E de quem sãos essas palavras (ditas para um público que inclui, por acaso, os representantes do próprio BFI, aparentemente arquivos cheios de poeira)? Bem, é melhor não dizer nomes hoje, embora sua “majestade” devesse saber melhor das coisas, já que entregou muitas cópias de seus filmes para o National Film and Television Archive (NFTA), e ele próprio usou extensivamente nossa coleção para pesquisar os jogos olímpicos de Paris em 1924... De qualquer maneira, eu o perdôo e talvez alguns dos arquivos de filmes britânicos estejam mesmo trancados para o acesso público. Mas empoeirados? Se eu e meus colegas no BFI realmente passamos todos esses anos levantando dinheiro para construir arquivos caríssimos, de excelência, protegidos contra incêndios e com umidade e temperatura controladas, somente para esquecermo-nos de separar umas 30 libras para comprar um aspirador de pó, nós é que mereceríamos ser trancafiados!

Na verdade, são os clichês que já estão cobertos de poeira e deveriam ser trancafiados. Mas essa é apenas mais uma manifestação na luta pelo reconhecimento, compreensão, consciência e esclarecimento da imprensa e do público que todos os arquivistas, independente de sua disciplina ou campo, têm de sofrer e se engajar. A arquivística é, quase por definição, um trabalho anônimo, sem glamour e reconhecimento, eternamente mal pago e mal compreendido, e aparentemente incapaz de ter sua própria voz ou definir seu próprio perfil. Nós todos sabemos disso. Eu mencionei Mitchell e Kenyon, a extraordinária coleção de mais de cem anos que foi objeto da apresentação de Patrick Russel mais cedo nesta conferência. De fato, esta coleção se tornou bastante famosa. E foi mesmo, na semana passada, a resposta para a uma pergunta do quiz show da BBC University Challenge. Não importa que nenhum dos estudantes jamais tivessem ouvido falar nela (é preocupante que eles nunca sabiam responder nenhuma pergunta sobre cinema). Mais significativo foi o fato de que o apresentador do programa, Jeremy Paxman, ao dar a resposta como sendo Mitchell e Kenyon, as descreveu somente como “as séries recentemente exibidas na BBC”. Nenhuma menção ao fato delas terem sido resgatadas e restauradas por outro órgão, especificamente o NFTA, e nem ao fato delas pertencerem ao BFI. O mérito para esse grande feito cultural parece já ter passado para outra, mais pública, instituição.

Eu retornarei a esse assunto da percepção pública e oficial e das ações em relação ao filme posteriormente. Vamos voltar por um momento para o documentário Nosso patrimônio cinematográfico inflamável e uma das questões que ele levanta: Porque foi que essa maravilhosa invenção de imagens em movimento ao mesmo tempo reais e fantásticas, o nascimento de uma nova arte (a primeira nos últimos dois mil anos) e, talvez, ainda mais surpreendente, um meio capaz de registrar realisticamente, pela primeira vez na história humana, nossa própria vida e fatos (capaz, de fato, de preservar nossa memória nacional) – enfim, por que ela não foi coletada, celebrada e protegida desde o seu início? Por que nossos ancestrais vitorianos não aplicaram automaticamente ao cinematógrafo as lições que tinham aprendido ao preservar nossa arte e literatura, ou ainda, nosso passado arqueológico, tão em moda naquele momento?

Bem, obviamente que hoje as respostas nos parecem claras e evidentes. Para a gente (ou para muitos de nós), o cinema se tornou a arte vibrante do século XX (na França ela é chamada de sétima arte), enquanto sua importância como evidência histórica é óbvia (mesmo que nem sempre seja tratada seriamente como deveria ser por historiadores tradicionais). Nós agora registramos a história humana assim que ela acontece, globalmente, a toda hora. Mas para os primeiros pioneiros provedores das imagens em movimento, e para aqueles que primeiro as experimentaram, elas não eram nada mais do que um novidade de feira, uma diversão popular, um extensão do music hall, um aparelho de ilusão – e, acima de tudo, uma oportunidade comercial. O kinematógrafo era um fenômeno passageiro – frívolo, efêmero e desimportante –, oferecendo sensacionalismo barato, mirando sobretudo nas classes trabalhadoras. Era, em uma palavra, vulgar. Para seus inventores – para os irmãos Lumière, para Pathé, para Edison, para Acres e Paul, era no melhor das hipóteses um promissor negócio, mas não necessariamente um que tivesse futuro, e certamente não um futuro que exigisse que seu produto fosse guardado depois de esgotada sua vida comercial.

Mesmo assim, uma grande parte do nosso primeiro cinema poderia, com sorte, ter sobrevivido a este indiferença pragmática – sobrevivido até a tardia chegada dos primeiros arquivos de filmes, pelo menos – se não fosse por um fator determinante: a matéria bruta que tornou o próprio cinema possível – a película de nitrato de celulose: o calcanhar de Aquiles do cinema, a armadilha da indústria de cinema – sua própria pegadinha. O celulóide, como o nitrato de celulosa ficou conhecido, foi o primeiro plástico comercialmente viável. Era usados para fazer pentes, armações de óculos, cabos de talheres e broches; foi um substituto popular para o casco de tartaruga. E tinha, como George Eastman, fundador da Kodak, rapidamente descobriu, a força e maleabilidade para ser transformada em tiras flexíveis e transparentes capazes de servir de suporte para a emulsão fotográfica. O momento tinha chegado quando a teoria da persistência de visão aliada às fotografias em seqüência imitando o movimento natural através da projeção numa tela pôde ser tornar uma realidade prática. O cinema nascia. Havia somente um problema: a jovem indústria cinematográfica tinha escolhido um suporte para suas frágeis e vulneráveis imagens que era parente próximo da nitrocelulose explosiva. O cinema comercial, pelos 56 anos seguintes, iria existir sob a forma de uma substância que era alta e virulentamente inflamável, volátil, tóxica quando em chamas, sujeita a encolher, entortar e se despedaçar com o tempo, e inerentemente quimicamente instável, fadada à inevitável e irremediável deterioração e perecimento após um período de tempo alarmantemente breve. Isso foi ilustrado vivamente na seqüência sobre o nitrato do documentário para a TV da BBC dos anos 1980, Tesouro do século XX (20th century treasure trove) sobre o trabalho do National Film Archive (NFA) do Reino Unido, começado pelo grande cineasta Robert Vas e finalizado, post-mortem, pela sua assistente Elizabeth Sussex.

Isso, como vocês vêem claramente, é o material físico que ao entrar em cena se tornou o alvo de preocupação dos arquivos de filmes e influenciou e dominou suas atividades por muitos anos. Em larga medida, ainda o faz – particularmente nos arquivos nacionais com grandes coleções de filmes. Ele permanece, nas palavras de Martin Scorcese, uma bomba relógio ainda a ser desativada. O mistério é que a indústria de cinema insistiu no nitrato por tanto tempo – até 1951, na verdade – apesar de sua natureza autodestrutiva e dos muitos incêndios que ele causou. Certamente, suportes de segurança viáveis estiveram disponíveis desde o início sob a forma dos primeiros acetatos. Provavelmente o relativo baixo preço para a fabricação do nitrato foi um dos motivos, alimentado por forças do mercado. Alguns puristas e aficionados argumentam que o nitrato tem uma luminosidade que nenhuma outra película conseguiu reproduzir. Infelizmente para os conservadores, isso pode possivelmente ser creditado às partículas de prata presentes na emulsão – outro prego no caixão do nitrato, como se descobriu. Cópias estropiadas e filmes cuja vida comercial já tinha se esgotado foram regularmente derretidos pelos estúdios para aproveitar a prata da película. Isso ocorreu duas vezes em escala massiva no período silencioso: primeiramente com a destruição de muitos filmes de curta duração cujo valor comercial estava condenado a acabar quando os longas-metragens se tornaram a norma a partir de 1915; e depois, com a chegada do som no final dos anos 1920, quando Al Jolson disse aquelas palavras imortais, “você ainda não ouviu nada!”, e os filmes silenciosos foram imediatamente condenados como obsoletos e sumariamente destruídos pelos estúdios que os tinham produzido. Como Roger Smither, chefe do arquivo fílmico e fotográfico do Imperial War Museum, diz em Este filme é perigoso (This film is dangerous), o magnífico e premiado livro que ele concebeu e editou para a FIAF em 2002: “Para falar da História do cinema sem mencionar o nitrato é como falar da literatura sem mencionar o papel”. O ex-produtor cinematográfico Lord Puttnam escreve, numa prefácio do mesmo livro, “Falar que os filmes foram um dia feitos em nitrato é um pouco como dizer que a Monalisa de Leonardo da Vinci foi pintada com pigmentos auto-combustíveis ou que Rodin esculpia em plástico explosivo”.

No final das contas, foi calculado que aproximadamente 80% ou mais dos filmes silenciosos lançados pelos principais países produtores se perdeu. Isso significa quatro quintos dos filmes produzidos nos primeiros 35 anos dos 110 anos de existência do cinema, um terço de toda a história do cinema até hoje. De acordo com pesquisa da Biblioteca do Congresso americano, durante alguns anos – por exemplo, entre 1910 e 1915 – a taxa de preservação dos filmes nos EUA chegou a somente 10%. Como apontou David Pierce, novo curador do NFTA, em seu excelente artigo sobre a perda do cinema silencioso nos EUA, “A legião dos condenados” (publicado em Film History, v.9, 1997), um suporte reconhecidamente instável não foi a única razão para o impiedoso desaparecimento de tantos filmes: “Por que”, ele pergunta, “a maior parte dos filmes silenciosos não sobreviveu à passagem do tempo? A ampla disponibilidade atual de tantos títulos em vídeo e a popularidade das exibições de filmes silenciosos com acompanhamento orquestral ao vivo podem dar a impressão de que os filmes silenciosos sempre foram bem considerados. Pelo contrário, por muitas décadas após a chegada do som, os filmes silenciosos tiveram um apelo comercial tão grande quanto o de uma previsão meteorológica da semana passada (...) Quais são os fatores que contribuíram para a perda de um número tão alto de filmes silenciosos de uma maneira aparentemente tão aleatória?” Pierce segue citando o fato de que um número surpreendentemente pequeno de cópias para distribuição foram feitas, mesmo para filmes populares e bem sucedidos – talvez não mais do que 150 ou 200 em cada caso – e nos Estados Unidos estas eram projetadas e reprisadas até se estragarem; Havia a falta de vontade de substituir o nitrato por um suporte de segurança aceitável; Havia as “limpezas” frequentes dos arquivos dos estúdios e dos armazéns dos laboratórios para darem lugar aos novos filmes; Havia também a já mencionado destruição deliberada de produtos comercialmente esgotados e os periódicos e devastadores incêndios. Mas em última análise, diz Pierce, “a perda de grande parte dos filmes silenciosos resultou de decisões desprovidas de uma visão de longo alcance por parte de seus donos e de uma combinação de acaso e negligência (...) Filmes silenciosos eram produzidos para dar lucro e muitos deles satisfaziam essa expectativa imediata (...) Sem o surgimento a tempo dos arquivos para salvar muitos dos filmes até que o interesse público emergisse novamente (...) o desaparecimento da memória do cinema silencioso provavelmente teria sido próximo do total”

Continua...

[1] - Mitchell e Kenyon foi uma das primeiras companhias cinematográficas inglesas, cujos filmes foram encontrados no porão de uma loja em 1994, em sua maioria negativos originais em nitrato, dando origem à maior coleção de filmes de não-ficção do primeiro cinema, restaurada pelo BFI.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira

No último encontro da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), realizado outubro passado na UnB, o conservador da Cinemateca Brasileira, Carlos Roberto de Souza, fez uma comunicação sobre a preservação cinematográfica no Brasil intitulada "Desafios de sobrevivência", no qual citava este artigo de Jurandy Noronha como o primeiro escrito no Brasil em que se afirmava a necessidade de se fazer a prospecção do cinema nacional, encarado como "patrimônio nacional".
De fato, Jurandyr apresenta uma série de questões básicas da preservação de forma extremamente arguta e pioneira, não se restringindo somente à prospecção de filmes.
O respeito à integridade da apresentação do filme, por exemplo, é levantada por ele quando fala da necessidade de se respeitar a velocidade (16 q/s) e a "janela antiga" (1:1,33) do cinema silencioso em relação à velocidade (24 q/s) e janela (1:1,37) do cinema sonoro daquela época.
Escrito no ano em que a Filmoteca do MAM-SP, futura Cinemateca Brasileira, se filiaria à FIAF, e seis anos antes da criação da Cinemateca do MAM-RJ, em 1955, trata-se de um documento essencial para a História da preservação audiovisual no Brasil.
Publicado há exatos 60 anos, a divulgação deste artigo é também uma pequena homenagem a Jurandy, que continua vivendo no Rio de Janeiro, onde está escrevendo suas memórias.



Indicações para a organização de uma filmoteca brasileira
Reportagem de Jurandyr Bastos Noronha
Publicado em Cena muda, n.28, de 13 de julho de 1948.

Noticiaram os suplementos literários a fundação do Museu de Arte Moderna, estando, à frente do mesmo, nomes os mais representativos da cultura brasileira. Vemos assim (e não há nenhum bairrismo, pois sou mineiro e moro na ilha do Governador...) que o Distrito Federal segue o que vem de acontecer no estado bandeirante, em cujo capital já existe um museu congênere.
Não posso afirmar que o museu de São Paulo tenha uma sessão de cinema, como pretende o do Rio, mas sei que o Clube de Cinema de lá, com Saulo Guimarães, Rubem Biáfora, Almeida Salles e Benedito Duarte, é o melhor organizado do país. Seus debates tornaram-se famosos, bem como famosa é a sua filmoteca, recentemente enriquecida com novas aquisições, feitas na Europa por Paulo Emílio Salles Gomes, entre os quais contam-se os clássicos Um chapéu de palha da Itália e O milhão, de René Clair, A paixão de Joana D’Arc, de Carl Deyer e Sangue de poeta, de quando Jean Cocteau se dedicava às abstrações cinematográficas.
A cidade de Belo Horizonte tem igualmente o seu núcleo de estudiosos, bem como, aqui está em atividade o Diretório de Cinema da Faculdade de Filosofia, ao qual se junta o corpo social do velho Chaplin Clube, com Otávio de Faria, Plínio Sussekind e outros. Acontece que as “libraries” acima citadas cuidam tão somente das grandes obras do cinema mundial, havendo quase completo esquecimento do que fizeram os nossos pioneiros. Apenas o pequeno museu do Recife, criado graças à dedicação de Luis Maranhão, está com os antigos filmes silenciosos feitos no norte, como A filha do advogado, No cenário da vida, Dança, amor e ventura, Aitaré da praia e Herói do século XX.
Confesso que a perda de tantos filmes passados – o que vem acontecendo – é coisa que me tem deixado aturdido, por considerá-los verdadeiro patrimônio nacional. Porque o Cinema Brasileiro não tem sido apenas as aventuras de vésperas de carnaval, como no passado não o representavam os pseudo filmes científicos: tem importância muito maior do que geralmente se supõe, se não quisermos, naturalmente, tomar em conta os farsantes e improvisadores que sempre existiram, em todas as épocas.
Produções há que, dentro do tempo e das condições em que foram feitas, igualmente e até, em alguns casos, superam trabalhos de países mais adiantados. É este confronto que eu pretendo seja feito um dia, para que haja justiça a artistas esquecidos, que não contavam com departamentos de publicidade e letreiros luminosos nas portas das grandes casas de exibição. Não avanço coisa alguma no que pode parecer uma afirmação audaciosa, sendo, apenas, a certeza de quem, há muito tempo vem estudando o cinema de todos os países – em caráter particular o do nosso – sem concordar com tudo o que chamavam de bom, mas sim levando em conta as conquistas feitas do Edwin S. Potter, Griffith, Wiene, Dupont, Grierson e Murnau: Eis porque considero da maior importância o levantamento e recuperação imediata de tudo quanto já fizemos de mais significativo, pois, em caso contrário, dentro em breve nada mais restará, com imenso e deplorável prejuízo artístico.
Preocupação idêntica à minha tem assaltado pessoas, como Álvaro Rocha, Pedro Lima ou Pery Ribas. Ainda recentemente ouvi do Dr. Pedro Gouvêa, diretor do INCE, de sua intenção de criar o Museu do Filme, no qual estivesse garantida a conservação dos filmes nacionais: coisa idêntica ao feito pelo Museu de Arte Moderna de Londres ou pelo de New York, organizador daquela “cavalcade” da sétima arte nos Estados Unidos que o ator Abdias do Nascimento e o poeta argentino Ephraim Bó me levaram para ver, ambos fazendo indagações sobre o destino do cinema

Desde já podem ser firmadas algumas “indicações”, às quais dei o título deste trabalho, e que são os seguintes:
a) Levantamento de toda a produção nacional até hoje
b) Contato com produtores e possíveis possuidores de negativos ou cópias
c) Organização de arquivo fotográfico sobre os filmes; datas de filmagem, equipes, cenário, inclusive tamanho das cenas, condições técnicas como máquinas e película usadas – se ortocromática ou pancromática – laboratório etc. Comentário, baseado nos dados acima, feito por uma comissão
d) Reconstituição, com fotografias, do que não for possível recuperar. Diafilmes. Letreiros
e) Regulamentação da conservação; banhos endurecedores, limpagem e tempo de rebobinagem.
f) Projeção na cadência de 16 quadros por segundo e com a antiga janela.
g) Troca de informações com outras organizações
*
Vejamos os “itens”, cada um de per si. Um trabalho destes, necessariamente, tem que começar pela consulta às revistas da época e às pessoas que de perto estiveram ligadas à nossa filmagem. Exemplos: Dustan Maciel e Gentil Roiz, no Rio, que facilitarão o contato com o pequenino museu de Pernambuco; as famílias de Antonio Leal e Victor Capellaro e muitas outras.
Feito o levantamento, poderá então ser dado início à filmoteca. A ela, que deverá determinar qual o primeiro filme rodado no Brasil, não devem faltar aqueles considerados históricos, como Um transformista original, feito em 1903, na cidade de Barbacena; A quadrilha do esqueleto, sob o patrocínio de A Noite, e Pátria e Bandeira, mostrando manobras do Exército Brasileiro em 1916 e que tinha como finalidade a propaganda do serviço militar.
São filmes de basilar importância, sem que isto signifique que não se deva procurar obter toda a produção muito antiga: A esposa do solteiro e O dever de amar, todo o “ciclo de Cataguazes”, O caçador de diamantes, de Capellaro; Iracema, de Marques Filho, Sinfonia de São Paulo, de Adalberto Kemeny e Rodolpho Lustig, Barro Humano, de Adhemar Gonzaga, Limite, de Mário Peixoto, Lábios sem beijos e Ganga Bruta de Humberto Mauro e Às armas e Mulher, de Otávio Mendes. Limitei-me nesta breve lista, às realizações da era do silencioso, sendo de lamentar o não mais poder contar-se com Urutáu, dirigido pelo americano William Jansen e que marcava o início de Carmen Santos; com Cruzeiro do Sul e com os dois Guaranys feitos por Capellaro, em 1916 e 1925, filmes perdidos em incêndios, em acidentes ou mesmo desgastados pelo tempo. A produção mais nova, pela experiência que existe, deve ser cuidadosamente acompanhada, de maneira que, mais tarde, não venha a acontecer o mesmo.
Os documentários têm, neste ponto, posição de grande relevo, pois estão marcando, ao vivo, a nossa evolução nos últimos tempos. Eles, tanto quanto o filme de ficção, tem que ser tomados em consideração na coleção de uma filmoteca.
Deixo assim, ligeiramente esboçado, o que diz respeito aos dois primeiros itens.
*
Quanto ao item “c”, deve ser lembrado que a cronologia dos filmes é, como tudo que se refere à história, da maior importância, assim como, para a história, devem ser anotados, com o maior cuidado, as condições técnicas.
Possuímos motivos, do maior interesse, para marcar a evolução de uma arte e uma indústria. Exemplos: o colorido e o “cronofone” de Benedetti que era a projeção, no lugar em que hoje estão os letreiros sobrepostos dos filmes estrangeiros, da partitura a ser seguida pela orquestra, havendo sido filmados, com sincronismo, até bailados; A Esposa do solteiro, com os famosos artistas italianos Laetitia Quaranta e Claro Campogalliani e com exteriores do Rio e de Buenos Aires, possibilitando a exibição fora dos nossos circuitos e que foi, por isso, a primeira tentativa de industrialização: Tesouro perdido, com avanços e recuos de máquina, feito em 1923, mais ou menos à época em que Ewald André Dupont fazia o seu Varietê na Alemanha (ainda não exibido no Brasil) e tido como criador do recurso; a Sinfonia de São Paulo, no qual podia ser sentida a influência do Berlim de Kari Ruttman, mas nem por isso despido de valor; Limite, realização super-intelectualizada, discutida até hoje a interpretação da sua narrativa, não havendo sido exibida para o público; João Ninguém, com a seqüência de um sonho inteiramente colorida, o que talvez também nos dê prioridade n’esta história de filmes com trechos em preto e branco e colorido; e Bonequinha de Seda que mostrava pela primeira vez entre nós, o “process-short”, pequeno é verdade, mas perfeito quando víamos, através do vidro o posterior de um automóvel, o desfilar das ruas cariocas; Coisas nossas, o primeira filme da fase do sonoro, feito ainda pelo “sistema-vitafone”, isto é, com discos; os primeiros “movie-tones” como A voz do carnaval e Estudantes, bem como todas as seqüências mais marcantes de toda e qualquer produção.
Não quero dizer que os nossos primeiros “travellings” hajam sido uma maravilha, melhores que os famosos de W. Tourjansky e John Farrow, nas primeiras cenas, respectivamente, da versão falada de A sublime mentira de Nina Petrowna e de Irmãos em armas ou o do ataque à fábrica que vimos o ano passado em Assassinos, que Robert Siodmak dirigiu, tampouco quero afirmar que João Ninguém tivesse uma combinação de preto e branco e colorido melhor que Neste mundo e no outro, filme inglês. Mas que foi antes não é possível negar, pois, enquanto o nacional teve sua apresentação feita em 1936, no Alhambra, o segundo apenas há poucos dias foi mostrado ao público...
De todo o histórico que for possível conseguir-se, uma comissão fará um juízo definitivo, tomando em consideração “o tempo e o espaço”... e as “condições técnicas” acima citadas. É, para este aspecto do trabalho, da mais absoluta necessidade que os filmes tenham a sua cenarização analisada, conseguindo num mtdidos até o tamanho de cada cena, de foram que possam ser avaliadas, não só a tendência de cada realizador, mas os seus conhecimentos das regras fundamentais de montagem e do ritmo.
*
Cuida de letreiros e diafilmes, o item “d”. Acho que deverão ser feitas, nos filmes incompletos, explicações com letreiros, se for o caso de não existirem trechos de capital importância. O som, neste caso, apenas trará prejuízos.
Quando nada mais existir sobre determinado filme, então projeções fixas, feitas com diafilmes, será melhor que coisa alguma.
O item “e” fala em “regulamentação da conservação”.
Sim. Efetivamente é necessário que, de tempos em tempos, digamos anualmente, o filme seja passado n’uma enroladeira, ou melhor, rebobinado. Esta medida tem por finalidade fazer com que os filmes, não ficando guardados muito tempo nas latas não venham a sofrer a corrosão do hiposulfito, muito comum quando a película não esteve em laboratório que lhe dispensasse tratamento adequado, no caso, banho suficientemente demorado.
A limpeza com tetracloreto de carbono e a passagem em um banho dos chamados endurecedores, eis outras medidas da maior importância em filmes que se queiram recuperar.
*
A projeção em 16 quadros por segundo e em projetor com a janela do tempo do silencioso, eis do que trata o item penúltimo.
O advento do som trouxe, para a sua reprodução prefeita, o aceleramento para 24 quadros por segundo, motivo pelo qual os filmes da era do silencioso, quando exibidos em projetores com a cadência sonora ficam ridículos, com os atores dando saltos e corridinhas, pois, como é claro, uma cena filmada em um número de quadros e projetada em velocidade maior tem que assim resultar. No entanto, tal não acontecerá se os projetarmos da maneira para o qual foram realizados.
A janela da projeção deve ser a antiga. Usada a atual, tudo aparecerá desenquadrado. O som, cortando a parte destinada à gravação, cortou também as extremidades superior e inferior das cenas, de maneira à que a parte da emulsão não ficasse um quadrado. Este é o motivo pelo qual tantos artistas de filmes antigos aparecem de cabeças cortadas ou como que filmados em um canto.
Aqui surge novo problema: o copiador usado para trabalhos de um museu deve possuir uma janela das antigas, pelo mesmo motivo exposto.
Estes cuidados parecem imprescindíveis, para que não se torne em uma coisa cômica, o que é merecedor do maior respeito.
*
E chegamos, finalmente, ao último item, que fala em “troca de informações”.
Este item está em íntima e perfeita conexão com o da letra “c”, quando fala em “comentário feito por uma comissão”.
A medida sugerida tem por fim entrar em contato com historiadores da importância de Rogér Manwell e Leon Moussinac, ou com organizações, expondo as nossas conquistas no novo meio de expressão e citando datas, não só para comunicarmos o que já tenhamos feito ou estejamos fazendo – forçando a que nossos filmes sejam citados nas antologias do cinema mundial – mas, igualmente, para termos uma visão completa do cinema em todos os países, pois como é sabido, tomamos conhecimento real apenas do que se passa em pouquíssimos centros produtores.
*
Creio estar absolutamente certo no que disse.
Assunto da maior complexidade, não tenho a pretensão de o haver esgotado, devendo, no entanto, ressalvar que o fiz tão somente de memória, sem consultar dados, técnicos ou históricos. No que se refere, por exemplo, a importantes filmes antigos, devem existir faltas, as quais serão completadas em “A pequena História do Cinema Brasileiro”, trabalho já com as pesquisas iniciadas.
Está é a minha contribuição para o que está sendo anunciado: a criação entre nós dos primeiros museus de cinema

domingo, 9 de novembro de 2008

Preservação

Este artigo de Hernani Heffner, conservador da Cinemateca do MAM e uma das maiores autoridades em preservação audiovisual no Brasil, foi escrito para a valiosa edição especial dedicada à Preservação e Restauração da revista virtual Contracampo, n. 34, de 2001. Além deste texto, essa edição contém artigos assinados por, entre outros, Felipe Bragança, Marina Meliande, Ruy Gardnier (todos ex-estagiários da Cinemateca do MAM em diferentes épocas), além de entrevistas e documentos históricos.
Num texto conciso e denso, Hernani traça um rico painel da preservação no Brasil e no mundo, destacando o surgimento dos primeiros arquivos de filmes nos EUA e na Europa nos anos 1930 e fazendo, sobretudo, um precioso histórico dos arquivos de filmes brasileiros.
Curiosamente, quem visitar a Cinemateca do MAM num dia qualquer periga encontrar o Hernani carregando um carrinho de latas pelos seus corredores. Sinal de que a História se repete...
Preservação

Hernani Heffner
Carlos Manga sempre enfatizou o choque sofrido em seu primeiro contato com o universo cinematográfico real. Conduzido por Cyll Farney para conhecer o estúdio da Atlântida, localizado na rua Visconde do Rio Branco, e especialmente o diretor responsável pelas famosas chanchadas, surpreendeu-se por encontrar este último em mangas de camisa carregando adereços, levantando cenários, manejando um martelo como qualquer cenotécnico. Watson Macedo não tinha escritório de luxo, secretária bonita e simpática, carro e chofer na porta da companhia. Traduzindo: não havia salários nababescos e muito menos recursos de monta para a produção e para a própria infra-estrutura do estúdio. A sobrevivência era difícil e com conseqüências óbvias. Pouco depois do memorável e decisivo encontro, o local sofreria um devastador incêndio, responsável pelo desaparecimento de quase toda a filmografia inicial da Atlântida.

Guardadas as devidas proporções, salientadas as peculiaridades de um arquivo de filmes e indicados os contextos diversos, passando dos anos 50 aos anos 80, pode-se dizer que tive um choque semelhante ao tomar contato com o universo das cinematecas brasileiras. Ao me aproximar do cotidiano da mítica Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – Cinemateca do MAM, para os funcionários, amigos e admiradores – vez por outra via um ou outro carrinho carregado de filmes passar com latas desgastadas pelo tempo, as vezes amassadas, quase sempre enferrujadas parcial ou totalmente. Descobriria mais tarde, igualmente espantado, que quem empunhava o carrinho não era um auxiliar, mas o próprio conservador chefe. Havia poucos, pouquíssimos auxiliares. Mas nada se comparou à primeira incursão pela área de armazenamento de filmes, o famoso depósito de filmes. Na entrada a primeira surpresa: nada de luz. Explico-me: não era oposição à essência luminosa do cinema ou mesmo um cuidado técnico, pois a luz é um fator nocivo à conservação de quase todos os tipos de documentos, inclusive filmes. Era preciso simplesmente usar uma solitária gambiarra, o que tornava o cenário de corredores estreitíssimos, traçado irregular e estantes abarrotadérrimas e altíssimas, uma mistura de filme expressionista e de instalação surrealista, com direção de arte de Gaudí. Ah!, neste momento inesquecível identifica-se também o inconfundível cheiro de película cinematográfica, que dizem ama-se ou detesta-se para sempre. Eu gostei.

O choque completou-se muitos anos depois quando vi pela primeira vez o acervo da Cinemateca Brasileira, já instalada no Matadouro. Acreditei estar vendo todas as latas naquele enorme galpão (era só uma parte) e elas me pareceram três, quatro, cinco vezes mais do que estava acostumado na Cinemateca do MAM. A imagem é impactante e lembra um pouco os finais simbólicos de Cidadão Kane e Caçadores da Arca Perdida e suas implicações filosóficas, políticas e culturais. De imediato me veio à mente a idéia de que tão poucos jamais dariam conta daquilo tudo e naquelas condições tão precárias, sabendo-se de antemão da escassez de recursos humanos e financeiros, tecnologia, infra-estrutura adequada, falta de cursos especializados no país e do fato de que as latas nunca param de multiplicar-se. Alguns meses mais tarde, comecei a trabalhar de fato em uma cinemateca, a do MAM. Naturalmente fui vendo a questão da preservação de filmes por outros ângulos. A perspectiva interna é mais rica, nuançada e necessariamente mais complexa. Alguns mitos caíram por terra, certos clichês se desfizeram e práticas mal aceitas por usuários externos ganharam justificativas irretocáveis. Isso não significa que os problemas clássicos deixaram de existir, seu peso é considerável no cotidiano de um arquivo de filmes. Mas houve a compreensão de que os problemas de natureza documental, arquivística e técnica são parte da área, da atividade, da preservação em si. São fatores estruturais. Esses problemas sempre existirão, ou melhor, na verdade não existem, na medida em que são intrínsecos. A questão real gira em torno de sua intensidade – quando escapam ao controle, tornam-se do ponto de vista administrativo, gerencial e logístico um obstáculo pesado e oneroso - e principalmente da qualidade da resposta dada a eles.

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Nos primeiros tempos da atividade cinematográfica a palavra cinemateca possuía acepção bem prosaica. Alguns dicionários do início do século XX registram o sentido de coleção de filmes, ou seja, uma biblioteca de filmes. O paralelo é óbvio mas traz embutido uma noção importante, a de que o filme poderia difundir conhecimento e servir como fonte de consulta, disponível a um público indiferenciado para além da sua manifestação presente. Um uso específico do registro cinematográfico como fonte histórica já havia sido previsto desde o final do século anterior. Em 25 de março de 1898 o cinegrafista polonês Boleslav Matuszewski publicou em Paris um livreto intitulado Uma Nova Fonte Histórica, em que preconizava a criação de locais destinados à guarda seletiva de filmes, o que denominou Depósito de Cinematografia Histórica. O trabalho como operador cinematográfico dos Lumière despertou-lhe a consciência para o valor das imagens que captava com a câmara, em especial as de caráter documental, desprezando as de natureza propriamente ficcional. É considerado muito justamente um precursor do conceito de cinemateca como espaço de guarda de bens culturais móveis destinados às gerações futuras.

As primeiras coleções de filmes se formaram igualmente no início do século XX, mas não por influência de Matuszewski. Os motivos foram bem menos nobres. Por conta da guerra de patentes travada por Thomas Alva Edison contra seus rivais no campo do comércio cinematográfico e pela necessidade de um registro legal que alicerçasse um processo judicial em torno desta ou daquela obra cinematográfica, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos (Library of Congress) começou a receber a título de depósito legal para resguardo dos direitos de propriedade comercial (copyright) os famosos paper prints. Por causa da película de nitrato utilizada então, autoinflamável sob certas condições, e da exigüidade de espaço para dar conta do volume de produção, a Biblioteca recebia os filmes sob a forma de tiras de papel com os fotogramas impressos, do primeiro ao último. Não fossem os paper prints, a filmografia norte-americana seria infinitamente menor, abreviando o conhecimento de autores inaugurais como David Wark Griffith, Ralph Ince e Edwin S. Porter. Deve-se a este material inclusive o desenvolvimento da primeira experiência de restauração cinematográfica, levada a cabo durante a Segunda Guerra Mundial pelo naturalista, cineasta, professor e inventor de câmaras de filmar Carl Louis Gregory, que criou uma truca capaz de reconverter os fotogramas de papel em imagem em movimento registrada em película.

Houve outras iniciativas de caráter isolado nesses primeiros tempos da atividade cinematográfica. Surgiram os primeiros colecionadores de filmes, responsáveis em grande parte pelo pouco que seria legado dos primórdios para a posteridade, e algumas ações de natureza institucional, como a do Imperial War Museum inglês, cuja coleção de filmes iniciou-se logo após a Primeira Guerra Mundial. Neste campo cumpre destacar a extraordinária e pioneira experiência brasileira com a criação da Filmoteca do Museu Nacional em 1910. Idealizada pelo antropólogo Edgard Roquette-Pinto para servir de repositório da evolução dos costumes urbanos nacionais e de registro das culturas indígenas presentes no país, a Filmoteca funcionou durante décadas e reuniu importante coleção de filmes. O descaso, a falta de conhecimentos de conservação de filmes e o tempo destruíram quase todas as películas. Na década de 60 o pesquisador Jurandyr Passos Noronha resgatou na sede da Quinta da Boa Vista umas poucas latas originárias da Filmoteca contendo alguns dos mais antigos títulos da filmografia brasileira, como o Circuito de São Gonçalo, de 1910. [estas imagens foram incluídas no documentário 70 anos de Brasil, dir Jurandyr Passos Noronha, 1974]

Frente ao conjunto da produção mundial essas pequenas coleções, constituídas quase sempre seletivamente, tinham o sabor de gota no oceano. A falta de um movimento mais vigoroso quanto à salvaguarda do patrimônio fílmico em geral, proporcionou o desaparecimento em larga escala da maior parte dos filmes produzidos entre 1895 e 1950. Foram três grandes ondas sucessivas de destruição. A primeira ocorreu ao final da Primeira Guerra Mundial quando o longa metragem se consolidou como produto preferido pelo público. Não havia mais sentido para os produtores manter em estoque os velhos filmes de um ou dois rolos de tamanho. Não havia mais mercado para eles. Dissemina-se nesse momento a prática do reaproveitamento de matéria-prima, dissolvendo-se as películas para reobtenção da prata ou fornecimento de celulose para a fabricação de piaçava de vassoura. A segunda grande onda de destruição ocorreu por ocasião do advento do som a partir de 1927. Mais uma vez, o sucesso junto ao público determinou a obsolescência precoce de milhares e milhares de filmes reduzidos à condição de estorvo anti-lucrativo. A terceira onda se deu em 1950 por conta da troca da película de nitrato, inflamável, pela de acetato, não inflamável, o que implicou em novas tecnologias de projeção e na inadequação dos filme em nitrato frente ao panorama que se seguiu.

Estima-se perdas consideráveis para o cinema mudo mundial. Algo em torno de 60% a 70% da produção teria desaparecido em definitivo. A percentagem varia da país para país, com maior incidência em nações pobres como o Brasil, que salvou cerca de 10% de tudo que produziu entre 1898 e 1933. A velocidade desta verdadeira tragédia cultural diminuiu até a década de 50, com estimativas de perdas em torno de 30% do volume produzido nos países industrializados e em torno de 50% nos países pobres. Entre um momento e o outro surgem as primeiras discussões sobre o valor do que está desaparecendo e sobre iniciativas a tomar para deter o processo. Influenciados pelo impressionismo cinematográfico, que havia alçado o filme à condição de arte autônoma, vários críticos franceses lançam em 1933 a idéia de uma Cinemateca Nacional. O projeto não vai adiante mas sinaliza uma primeira conscientização quanto à necessidade de uma preservação sistemática e em larga escala do patrimônio cinematográfico. Este reconhecimento do cinema como arte significa a base conceitual que permitirá o florescimento das cinemateca nacionais ao longo da décadas de 30 e 40.

Ao longo deste período constituem-se cinematecas apenas na Europa e nos Estados Unidos. A primeira foi o Svenska Filmsamfundets Arkiv (Cinemateca Sueca), criado em 1933. No ano seguinte surgiu o BundesArchiv (Cinemateca Alemã). Em 1935 foi a vez do British Film Institute e do arquivo de filmes do Museum of Modern Art of New York (MoMA). E em 1936 apareceu a Cinémathèque Française. Dois anos mais tarde, estas cinematecas reuniram-se em Bruxelas e fundaram a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF). Longe de ser apenas um colegiado protocolar, a entidade mostrou-se decisiva em seus primeiros tempos na formação de uma mentalidade conservacionista. Rapidamente evoluiu do apoio ao esforço pela salvaguarda do filme para a ação mais geral e decisiva de conservar o cinema. Distinção sutil, a passagem da guarda exclusiva da película ao recolhimento conjunto dela e dos mais diferentes itens que gravitam em torno do filme como roteiros, boletins de continuidade e de marcação de luz, cartazes, fotos, documentos de produção, revistas de cinema e outros, configurou propriamente a área de atuação o e perfil institucional das cinematecas e definiu simultaneamente o cinema como documento e fato cultural em suas múltiplas manifestações.

Conservar neste momento era entendido quase sempre como guardar de maneira relativamente ordenada. Essa guarda desinteressada do passado não implicava padrões rígidos de armazenamento, não tinha fins lucrativos e não dava direitos sobre a exploração comercial das obras, que permaneciam com os produtores originais ou seus sucessores, tal como hoje. Práticas pouco profissionais como simplesmente empilhar latas somavam-se a conceitos importantes no relacionamento com a desconfiada comunidade cinematográfica. Mas o verdadeiro senão deste momento estava na continuação da guarda seletiva. Os novos arquivos de filmes constituíram-se principalmente como cinematecas de caráter universal ou nacional (mais tarde apareceria a categoria regional, especializada em determinados temas ou na produção de uma região), destinados prioritariamente a recolher e guardar o que melhor a arte cinematográfica tivesse apresentado nas telas do planeta. Foi a época da busca dos títulos e autores fundamentais: um Nosferatu, um Aurora, um Intolerância; um Charles Chaplin, um Abel Gance, um Sergei Eisenstein. Naturalmente os critérios para esta seleção estavam nas mãos do diretor da cinemateca ou de seu curador e sofriam a influência de determinadas histórias do cinema, ideologicamente traçadas. Psicologias à parte, a questão girava em torno de uma suposta evolução estética do cinema, naturalmente qualificante e estreitamente vinculada ao que se fazia no Primeiro Mundo, hegêmonico desde os primórdios em termos de tecnologia, comércio e ideologia cinematográficas. Basta lembrar que o MoMA, uma cinemateca de caráter universal, só se interessou por um único título brasileiro, Limite, cujos negativos foram remetidos para Nova Iorque e lá se deterioraram. Na dependência deste tipo de sanção, nada mais restaria do cinema brasileiro. E se cinematecas houvessem por aqui nos anos 30 e 40, provavelmente o filme não seria salvo, pois foi um fracasso artístico aos olhos das platéias de seu tempo. Como em muitos casos semelhantes mundo afora a admiração e o esforço particulares salvaram Limite, constituindo-se em uma das grande sagas da preservação brasileira de filmes.

A alternativa ao julgamento de valor era uma só: guardar tudo sem seleção. Ultrapassar a barreira dos clássicos do cinema, no entanto, parecia dispensável do ponto de vista teórico, pois as cinematecas estariam mais próximas de museus que de bibliotecas, e impensável do ponto de vista prático, já que não haveria condições para recolher tudo o que se produzia. O cenário só começou a mudar após a Segunda Guerra Mundial, momento em que a idéia de guardar tudo se fortalece. Certamente o grau de destruição visto na história recente da humanidade teve alguma influência sobre a preservação das criações modernas, o cinema incluído. Mas os fatores decisivos foram menos evidentes, entre eles as concepções da chamada Nova História, que propunha estudos menos oficiais e ligados às classes dominantes, valorizando assim atividades distantes da política, do comércio e da guerra, como por exemplo o lazer e seu papel junto às classes trabalhadoras. Da mesma forma a Nova História e a Arquivologia moderna redefiniriam o estatuto daquilo que pode ou não contar a História, conferindo a qualquer tipo de registro em qualquer tipo de suporte a natureza de fonte e de documento, respectivamente. Filme, artístico ou não, clássico ou não, é documento, portanto, fundamental para a reconstituição de uma porção da história humana, operação essa melhor sucedida se objetivada a partir de um conjunto e não de alguns poucos elementos. Por fim certas formulações filosóficas, psicanalíticas e sociológicas põem em cena a noção de memória, instância formadora da identidade de um indivíduo tanto quanto de uma nação. O direito à memória cinematográfica nacional passa a ser um instrumento de luta e libertação, em especial no chamado Terceiro Mundo. Não por acaso, a maior parte das cinematecas do antigo Leste Europeu, da Ásia e da América Latina surgiu entre 1945 e 1955, entre elas a Cinemateca Brasileira em 1949 e a Cinemateca do MAM em 1955.

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O pós-guerra não conheceu apenas o vertiginoso crescimento do número de cinematecas espalhadas pelo mundo. A descoberta da magnitude das perdas anteriores teve um efeito interno tão importante quanto a ampliação do espectro de guarda. Estava evidente que a película cinematográfica e seu universo de atuação tinham uma natureza frágil e evanescente. Preservá-los implicava em uma profissionalização dos procedimentos internos quanto à conservação, manuseio e difusão dos filmes. Esta nova atitude face o objeto a ser preservado dependia evidentemente de uma mudança de mentalidade quanto ao valor de uma filmografia nacional e quanto ao papel do cinema dentro desta ou daquela sociedade. Mais diretamente requisitava a presença do Estado como agente político e financeiro decisivo na implementação de uma ação de salvaguarda de algo que deveria ser considerado patrimônio cultural nacional. Não foi por acaso que as cinematecas criadas nesse contexto constituíram-se na esfera pública, seja como verdadeiros arquivos nacionais de imagens em movimento, seja como orgãos com a incumbência de zelar pelo patrimônio cultural cinematográfico.
Eis aqui uma primeira e grande diferença entre a origem da preservação de filmes no Brasil e em países de características históricas, econômicas ou culturais similares como Argentina, Portugal, Cuba e México. As cinematecas brasileiras continuavam a tradição dos primórdios do movimento. Eram fruto de iniciativas privadas, egressas quase sempre de círculos como cineclubes, associações de críticos, entidades cinéfilas. A institucionalização seguiu os moldes do MoMA, mas pode-se dizer que a associação foi algo fortuita. Não havia interesse real por parte dos Museus de Arte Moderna, tanto o do Rio de Janeiro, quanto o de São Paulo (onde a Cinemateca Brasileira inicialmente funcionou). O prestígio de considerar o cinema uma das criações modernas, o paralelismo com a entidade norte-americana e o retorno expressivo de público no tocante à exibição justificavam a cessão de algumas salas e uma pequena estrutura administrativa, mas sem considerar seriamente um investimento de peso na conservação, catalogação e restauração de milhares de rolos de filmes. As coleções floresceram sem planejamento, formação de pessoal especializado, conhecimento tecno-científico da matéria e armazenamento adequado. Como conseqüência a Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo sofreu um devastador incêndio com menos de dez anos de existência, em 1957. Em contraponto, o Gosmofilmfond (Cinemateca da antiga União Soviética), nasceu neste mesmo período de uma decisão de Estado e foi fortemente apoiado pelo poder público. Desde o início tinha reservas técnicas climatizadas com ar condicionado industrial e logo atingiu a condição de maior cinemateca do mundo em número de títulos e rolos, posição que ocupa até hoje.

No caso brasileiro, à falta de uma política de apoio público, somaram-se a lenta assimilação da profissionalização mundial quanto aos procedimentos internos de trabalho em uma cinemateca e principalmente o desconhecimento do comportamento físico-químico das diferentes películas fabricadas ao longo da história do cinema, primeiro o nitrato, depois o acetato. Estávamos marcados não só por nossa condição de subdesenvolvimento, como principalmente, de um ponto de vista técnico, pela localização do país em região tropical. Temperatura e umidade elevadas e inconstantes são os vilões imediatos da conservação de documentos, em especial películas cinematográficas. Não que relaxamento, descaso e omissão não se manifestassem em paralelo e tivessem dado também sua contribuição decisiva ao desaparecimento de boa parte da filmografia brasileira. No período pré-cinematecas, o que escapava ao reaproveitamento ficava encostado em depósitos, sotãos, galpões e similares, muitas vezes sob telhados de zinco, quase sempre sem qualquer cuidado especial dos funcionários das produtoras. Nada sobrou do que foi produzido entre 1898 e 1909. Dois dos mais prolíficos produtores dos primórdios, Paschoal Segreto e Francisco Serrador, perderam seus acervos em incêndios de casas de espetáculos, o do velho cine-teatro Carlos Gomes em 1929 e o do cinema Alhambra em 1940, respectivamente. Alberto Botelho, nosso cinegrafista de atualidades mais produtivo, viveu a tragédia pessoal de dois incêndios em laboratórios próprios, um em 1924 e o outro em 1940. Quase todos os velhos estúdios viram seus acervos arderem em chamas – Sonofilmes em 1940, Atlântida em 1952 e Brasil Vita Filmes em 1957. O mesmo ocorreu com grandes produtores de cinejornais e institucionais do pós-guerra, como Isaac Rozemberg e Herbert Richers, que viram seus acervos anteriores a 1963 desaparecerem quase por completo. Da mesma forma a Filmoteca do Serviço de Informação Agrícola (SIA), constituída informalmente em 1939 sob a iniciativa do crítico de cinema Pedro Lima, cinegrafista do orgão, e que pode ser considerada a primeira cinemateca de fato do país, pois coletava sistematicamente o passado cinematográfico brasileiro, não escapou a mais um incêndio, ocorrido em 1952. Dos pouquíssimos títulos sobreviventes constava o único registro fílmico de Noel Rosa e do Bando dos Tangarás, recentemente redescoberto e exibido. Os incêndios do SIA e da Filmoteca do MAM-SP destruíram boa parte do que ainda restava àquela altura do cinema mudo brasileiro.

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Preservar filmes significa coletar, identificar, documentar, estabilizar, recuperar fisicamente, restaurar técnica e esteticamente, transferir para novos suportes de guarda, conservar, catalogar, difundir e disponibilizar para consulta permanente, entre outras tarefas associadas. Mesmo longe do ideal, este trabalho pode ter uma enorme influência na vida de uma comunidade e mesmo de uma sociedade. Basta pensar na precariedade das cinematecas brasileiras no começo dos anos 60 e na sua participação direta e indireta no movimento do Cinema Novo. Como centros de formação estética, discussão artística e política e base de produção e finalização, atraíram a atenção daquele grupo de jovens e depois da comunidade cinematográfica e da sociedade em geral, estimulando os primeiros depósitos voluntários de filmes recentes, servindo de referência confiável para o envio de velhos títulos e sedimentando a tradição cinematográfica brasileira junto a um público maior. Neste momento as cinematecas tinham o status de centros geradores de cultura em sentido amplo, refletindo o bom momento da atividade cinematográfica e participando ativamente dele. Se isto ajudou no crescimento ou na reconstituição das coleções e no fortalecimento de uma identidade para o setor, não melhorou as condições de guarda e muito menos promoveu de início uma profissionalização do trabalho interno. Os problemas permaneciam praticamente os mesmos dos primórdios.

Mas quais problemas permaneciam os mesmos? Visto em perspectiva histórica, o trabalho de preservação naquele momento implicava principalmente em tarefas arquivísticas clássicas, como inventariamento da coleção, acondicionamento em padrões rigorosos de conservação (temperatura e umidade controladas) e na transferência das matrizes (negativas ou positivas) em nitrato para película de segurança, por conta do risco de incêndio e por crença de que essa simples operação já representava uma preservação mais adequada, o que se revelaria um equívoco posteriormente. O inventariamento era sumário, o acondicionamento não existia e a transferência era feita, quando os recursos o permitiam, em laboratório comercial, o que foge aos padrões de processamento recomendados para a confecção de matrizes mais duráveis, pois a rotina empresarial difere profundamente dos requisitos necessários à geração de materiais estáveis do ponto de vista físico-químico. Nesse sentido, os problemas permaneciam os mesmos, mas começariam em breve a serem atacados de frente, não com vistas à sua resolução definitiva, pois descobriria-se em breve que a deterioração de películas é natural, irreversível e começa no ato da fabricação, mas ao controle das diversas variáveis que interferem em dada situação, viabilizando-se soluções possíveis para as dificuldades encontradas. Para tanto era preciso realizar um amplo e abalizado diagnóstico da situação brasileira.

De outro lado, o notório desinteresse do Estado brasileiro pela preservação de filmes começou a sofrer lentas transformações. Na passagem do antigo Instituto Nacional de Cinema Educativo para o Instituto Nacional de Cinema, criou-se a primeira reserva técnica climatizada para guarda de filmes no Brasil, destinada a abrigar principalmente a filmoteca da instituição. Embora longe de parâmetros ideais, era um primeiro passo com vistas à estabilização do acondicionamento de uma coleção. Mais tarde, a Embrafilme, sucessora do INC, tornou-se a principal financiadora dos projetos de remodelação e modernização das cinematecas, promovendo a compra de equipamentos, a adaptação e refrigeração de reservas técnicas e a duplicação e restauração de inúmeros títulos. Ao idealizar seu centro de apoio técnico à produção, desenvolveu o primeiro projeto de uma área especialmente desenhada e construída para a guarda de filmes no Brasil, o Arquivo de Matrizes do CTAv. Idealizado sob orientação de João Sócrates de Oliveira, então chefe do laboratório de restauração da Fundação Cinemateca Brasileira, o local pretendia ser uma unidade modelo em termos de engenharia civil, refrigeração e desumidificação e mobiliário de guarda. Inaugurado em meados dos anos 80 como setor da Fundação do Cinema Brasileiro (atual Funarte), representou um marco técnico importante e uma solução intermediária, considerando parâmetros rígidos, e de relativo baixo custo. Tem demonstrado bom desempenho na conservação de um acervo formado basicamente por produção dos últimos vinte anos. Em duas ou três décadas, este modelo demonstrará sua eficiência ou suas limitações.

A presença do Estado ainda pode ser sentida na normalização da situação institucional da Cinemateca Brasileira, que saiu da esfera privada e virou uma autarquia federal em 1984, conservando, porém, a natureza e autonomia de uma fundação de direito privado. A esfera pública ainda proporcionou-lhe uma sede definitiva em 1985, após décadas de peregrinação pela cidade de São Paulo e sucessivos incêndios, embora de proporções menores do que o de 1957. Contudo, nenhum desses fatores talvez tenha tido tanto impacto sobre a qualidade das rotinas internas como o conhecimento mais abalizado e atualizado sobre a deterioração em si: suas origens, manifestações, formas de controle e principalmente prevenção. O entendimento do processo como um todo e do grau de interferência de instâncias como a catalogação, o acompanhamento técnico rolo a rolo e a restauração, permitiram pela primeira vez um mapeamento preciso do estágio em que se encontrava o problema, sua natureza específica e as soluções adequadas para o acervo da instituição, o que permite planejamento a longo prazo e consequentemente controle de resultados. Este conhecimento foi obtido com a pioneira ida de Carlos Augusto Machado Calil ao FIAF Summer School de 1976, realizado no Staatlichesfilmarchiv (Cinemateca da antiga Alemanha Oriental). Já no ano seguinte a Cinemateca Brasileira inaugurava seu Laboratório de Restauração, criando um diferencial de qualidade para a produção de novas matrizes, e montava a infra-estrutura que proporcionou o início da catalogação em larga escala não só de seu acervo, como de toda a filmografia brasileira (os guias referentes ao período 1897-1930 foram editados na década de 80 e o projeto está sendo retomado agora como Censo Filmográfico Brasileiro).

O mesmo estágio foi fundamental para a Cinemateca do MAM. A permanência de um ano de Francisco Sérgio Moreira em Berlim Oriental, complementada mais tarde com igual tempo passado no UCLA Film and Television Archive, deu-lhe a convicção e os conhecimentos necessários para implementar a climatização do acervo em parâmetros semelhantes aos do CTAv e almejar também uma unidade laboratorial para higienização e duplicação, com ênfase na restauração de originais no limite do desaparecimento (grau elevado de abaulamento, encolhimento ou desbotamento e outros danos). As mudanças aqui, entretanto, foram mais restritas em função do incêndio que atingiu o prédio principal do Museu (o acervo de filmes não foi atingido, apenas a sala de exibição original da Cinemateca foi danificada) e a conseqüente paralisação da maioria das atividades da instituição. O contexto econômico adverso dos anos 80 e a permanência da Cinemateca do MAM na esfera privada acabaram por limitar a reforma estrutural necessária.

Houve igualmente em ambas as instituições a reprodução da famosa querela fiafiana entre os dirigentes que advogavam o primado da exibição sobre a preservação e vice-versa. A falsa questão aflorou nos anos 70 por conta dos métodos de Henri Langlois, fundador da Cinémathèque Française. Famoso por sua defesa intransigente do cinema como arte e do direito dos filmes sobreviverem, além da influência que exerceu sobre a formação da geração da Nouvelle Vague, conduziu a cinemateca de forma personalista até sua morte em 1977, não permitindo a modernização dos trabalhos internos, em particular nos campos da conservação e catalogação, que, diziam, odiava. O resultado não se fez esperar. Um violento incêndio tomou conta dos depósitos do Pontel em 1980, causando a perda de cerca de dez mil títulos e uma das imagens mais impressionantes que já vi de acidentes na área, milhares de latas e rolos carbonizados espalhados em um raio de quilômetros. A partir da catástrofe o governo francês investiu seriamente na recuperação da instituição e com a posse em 1982 do cineasta Constantin Costa-Gravas como diretor da cinemateca, realizou-se um enorme e fundamental trabalho de catalogação do acervo, abrindo-se lata por lata e registrando-se os dados técnicos e de conteúdo dos materiais. A formação desse banco de dados, aliada à revisão periódica e sistemática da coleção, representa o ponto de partida para um gerenciamento profissional de qualquer cinemateca. O conhecimento da natureza do acervo, seus problemas e estágios de deterioração, permite gerenciar tempo e recursos, otimizando os trabalhos internos e os sempre escassos investimentos externos.

O mesmo ocorreu com a Cinemateca Brasileira nos anos 80 e está ocorrendo agora com a Cinemateca do MAM. Sem isto o impacto da quarta onda de destruição, a que aflorou da recente descoberta de que o acetato deteriora de forma mais rápida, disseminada e violenta do que o nitrato, teria sido bem maior. Todo um conhecimento acumulado quase sempre empiricamente mundo afora vem sendo modificado nos últimos quinze anos pela pesquisa científica sistemática do comportamento da película frente ao seu microambiente (a lata ou estojo) e ao seu macroambiente (a reserva técnica e a cidade em que se localiza o arquivo). Se nos anos 70 era possível ler que o nitrato explodia e podia deteriorar o acetato com seus gases nítricos, e que o acetato deveria permanecer envolto em plástico e lacrado em sua lata original, hoje sabe-se que tanto um quanto o outro liberam gases tóxicos e contaminantes, que os acervos devem ser separados, que a exaustão é tão fundamental quanto a climatização e que a redução da velocidade da deterioração está intimamente relacionada com a queda da temperatura de guarda. Estar preparado para separar o acervo por suporte e estágio de deterioração permitiu à Cinemateca Brasileira a reordenação rápida das práticas internas e principalmente o planejamento de soluções definitivas (frente ao conhecimento atual). Pela primeira vez na história da preservação de filmes no Brasil, está se buscando o diferencial de qualidade para a sobrevivência da filmografia brasileira. Pela primeira vez entrou em cena a possibilidade de uma preservação de longo prazo (em termos arquivísticos nunca inferior a um século). Com a inauguração recente do novo depósito climatizado da instituição, os materiais com baixo nível de deterioração poderão ser guardados a baixas temperaturas (10ºC), ganhando a perspectiva de chegarem inteiros ao século XXII, permitindo assim a aplicação dos recursos disponíveis a um maior número de títulos ameaçados por mais tempo.

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O Estado brasileiro continua distante do universo da preservação de filmes.

Há falta de vontade política e suporte financeiro por parte da sociedade, da classe cinematográfica, dos poderes públicos.

Não há legislação específica de proteção ao bem cinematográfico brasileiro.

As cópias de exibição, brasileiras e estrangeiras, são sistematicamente destruídas em sua maior parte após a exploração comercial.

A lei de depósito legal de títulos brasileiros raramente é cumprida por parte dos produtores.
Não há lei de depósito legal para títulos estrangeiros.

Não há legislação prevendo o repatriamento de matrizes de filmes brasileiros que se encontram no exterior.

O Brasil está mais quente e mais úmido, consequentemente provocando mais acidificação, fungos e bactérias nas películas.

O filme virgem em preto e branco está cada vez mais caro e raro, implicando no uso de filme colorido para obras originalmente realizadas em tons de cinza.

A importação de filme preto e branco para fins de preservação não tem qualquer redução de tarifa ou imposto.

Não há escolas de formação de pessoal técnico especializado na preservação de filmes no Brasil.

O filme colorido tem problemas mais graves de preservação por conta do desbotamento dos corantes.

O Brasil ainda não restaura filmes coloridos.

Não há estudos sobre o impacto dos meios eletrônicos sobre a restauração de filmes.

É preciso cuidar de todos os filmes e não apenas restaurar este ou aquele título.

As cópias de filmes brasileiros deveriam ser distribuídas, após a exploração comercial, por instituições sem fins lucrativos espalhadas pelo país, resguardando-se os direitos dos produtores, economizando-se em fretes sempre caros, e difundindo o cinema e a cultura brasileiros junto a platéias que raramente tem oportunidade de ir a uma sala de exibição.

Que a difusão tenha compromisso com a preservação e com o público.

Que os poucos recursos sejam bem aplicados onde quer que seja necessário.

Hernani Heffner