quarta-feira, 13 de abril de 2011

Relato do The Reel Thing XXII, 2009 (parte 2)

[Continuação do post anterior]

O segundo dia do Simpósio Técnico da AMIA, The Reel Thing 2009, começou com a palestra de John Galt, da Panavision, intitulada “Resolution Limitations of Film Scanners: More Pixels Do Not Mean More Resolution”.

Este enfático título auto-explicativo já indicava o teor de sua excelente comunicação que criticou severamente a tendência de “olharmos apenas os números” – o que nos deixa entusiasmados com os alardes sobre o não-sei-quantos-mil-pixels da última câmera ou do último filme – , indicando que a realidade é muito mais complexa e que a quantidade de pixels não equivale à resolução de uma imagem. Em suas palavras, a resolução que vemos na tela de um cinema depende de lentes, negativos, interpositivos, contratipos e cópias. Ou seja, a baixa qualidade em qualquer um desses elementos certamente vai comprometer o resultado final, pois é o “pior elemento do sistema que define a qualidade máxima do seu resultado”. A sugestão de Galt era: “analise seu sistema como um todo”.
Para dar um exemplo óbvio de suas palavras, ele mostrava como a moderna câmera profissional Gênesis, que pesa 2,5 kg, atualmente utilizada em vários longas-metragens e programas de televisão, registrava imagens de 12 MegaPixels. A mesma quantidade de pixels que o celular que ele carregava no bolso.
A resolução na tela não depende, obviamente, apenas dos elementos envolvidos no sistema de filmagem e feitura da cópia, mas também de projeção (lentes e equipamentos envolvidos). Dizia ainda: “Se você quer 2k na tela, você precisa de um projetor 8K”, sendo necessário para uma correta avaliação do resultado fotográfico a visão do filme num ambiente adequado. “Veja o filme, não os números”, ressaltou.
Além disso, Galt dizia para desconfiarmos dos números utilizados como propaganda. Se a Kodak fala que um negativo é 400 ASA, mas na verdade descobre-se que ele é, na prática, 250 ASA, os fabricantes dizem que o registro digital é em 4K quando ele mal chega a ser HD.
Por fim, Galt alertava que tecnologia das lentes estão chegando no limite de sua máxima qualidade possível. Desse modo, a única solução que ainda existe para ampliar a qualidade das imagens é o aumento da área de registro.

Ainda no campo do digital, a palestra seguinte foi a do consultor internacional e conservador da Cinemateca Real da Bélgica, Nicola Mazzanti, que fez um relato dos resultados do Projeto EDCINE (Enhanced Digital Cinema), destinado a pesquisar soluções técnicas para gerenciar, preservar e distribuir coleções audiovisuais digitais das cinematecas.
Mazzanti apontou a necessária mudança de concepção da preservação com o advento do digital. Da idéia de conservação a longo prazo – “mantenha frio e mantenha seco” (ou seja, a -5 °C e 20 a 30% de umidade relativa do ar) – chegamos a um quadro marcado por quatro fatores – deterioração da mídia, obsolescência da mídia, obsolescência do formato, ausência de padrões – que implicam na necessidade de migração constante. Afinal, o que se diz sempre é que o digital ou vai “durar para sempre” ou vai durar só cinco anos... É melhor nos prevernirmos para o segundo e mais frequente caso.
Pensando nos vários problemas envolvidos na rotina de um Arquivo de Filmes, com obras em diferentes formatos digitais chegando e diferentes formatos sendo solicitados para acesso e uso, com diferentes equipes com distintos conhecimentos trabalhando no arquivo, e com a necessidade de se levar em consideração os variáveis custos de digitalização – chegou-se à conclusão da necessidade de se pensar numa abordagem sistemática desse problema. Alguns dos principais fatores seriam a preservação de metadados (que são um ponto central), o estabelecimento de estratégias de migração e a adoção de padrões.
Nesse sistema desenvolvido pelo EDCINE, existiriam o Submission Information Pack (SIP) – com os dados e mais metadados que entram no arquivo –; o Master Archive Package (MAP); o Intermediate Acess Package (IAP); e o Delivering Information Package (DIP), que são os arquivos a serem acessados. O MAP, por exemplo, seria no formato JPEG 2000 sem compressão, enquanto o IAP, seria o JPEG 2000 com compressão, 2040 x 1080, 24 x 48 fps.
Alguns dos elementos principais de um sistema são: Padrões e formatos abertos, bem-documentados e livres; arquivos com ou sem compressão; compatibilidade com todas as resoluções, formatos etc.; viabilidade para imagens em movimento; arquivos de fácil extração para resoluções mais baixas; arquivos que permitam preservação para longo prazo.
Para mais informações sugiro o site do EDCINE (http://www.edcine.org), assim como http://www.dspace.org/

Depois dessas duas palestras, ocorreu a pré-estréia da cópia restaurada do filme silencioso de Frank Capra, “The Way of the Strong” (1928). A responsável pelo setor de restauração da Sony Pictures Entertainment, Rita Belda, fez uma breve explanação sobre os desafios para este trabalho.
Conhecido pelos seus longas-metragens realizados a partir de meados dos anos 1930 (Aconteceu naquela noite, E a mulher fez o homem, Do mundo nada se leva etc.), boa parte dos primeiros filmes, inclusive silenciosos, de Capra se perdeu e não existiam nos arquivos da Columbia Pictures. No caso de The Way of the Strong, a restauração partiu sobretudo de uma cópia de nitrato em 35 mm encontrada na Cinemateca da Dinamarca. A pedido da Colúmbia, foi providenciada um negativo de alta densidade dessa cópia dinamarquesa, cujo principal problema se encontrava no fato de todas as cartelas originais , em inglês, terem sido recriadas (e reescritas em dinamarquês). Tentou-se recriar as cartelas originais a partir das folhas de continuidade originais encontradas nos arquivos, mas estas continham apenas as quatro primeiras palavras de cada cartela. Finalmente, foi encontrada uma cópia em nitrato de 1931, bastante danificada, mas que permitiu scannear pelo menos um fotograma de cada cartela para utilizar na restauração.
O resultado desse processo foram arquivos armazenados em fitas LTO, novos negativos em 35mm e um máster de vídeo em HD. Foram gastos dois meses entre a digitalização dos materiais e a cópia final.
O filme foi exibido e é fantástico, uma espécie de melodrama com gangsters no contexto da Lei Seca.

À tarde, a palestra de Bob Eicholz, voltou ao tema digital, sendo intitulada “Eletronic Arquiving: Lessons from 8 years in the DI Trenches”, e trazendo algumas lições da atual realidade com o predomínio da Intermediação Digital.
Conforme Bob, os arquivos eletrônicos são muito mais difíceis do que geralmente se pensa, e ele ressaltou como é importante se guardar os másteres digitais. Mesmo nesses últimos tempos, a obsolescência tem sido rápida (da fita LTO aberta para a LTO-1 e daí para a LTO-4) e os riscos são muitos, incluindo de ocorrerem danos às fitas, seja por causa de software, de erro humano, danos físico ou de hardware. Ele mencionou o caso, por exemplo, de um robô responsável pelo acesso às fitas de um arquivo ter destruído uma fita por erro.
Desse modo, o palestrante afirmava que duas cópias não são suficiente, sendo necessário existir sempre 3 cópias de cada fita.
Apontando como hoje, na indústria, várias mudanças nos filmes ocorrem durante a intermediação digital (por exemplo, a alteração da cor das árvores, fazendo com que uma cena filmada no verão ganhe um tom “outonal”), Bob ressaltou a importância da preservação do DI (Digital Intermediate), que possui elementos inexistentes nos negativos originais. Mesmo que esses elementos estejam presentes nas cópias finais, a questão da qualidade torna necessário a guarda do DI. Afinal, do DI para a cópia, são duas gerações que sempre implicam perdas (do DI – negativo – cópia). Entretanto, mas frequentemente são 4 gerações entre o DI e a cópia na tela (DI – negativo de separação de cor, YCM – scanner – film recorder –negativo – cópia).
A fala de Bob gerou comentários da platéia e suscitou um animado debate. Um diretor de fotografia presente reclamou do atual excesso de manipulação dos coloristas e de como os estúdios estão forçando, mesmo sem necessidade, a feitura de DI, da qual os diretores de fotografia são “desconvidados” para participar. Desse modo cria-se uma quantidade descomunal e desnecessária de arquivos digitais, exemplificado pela produção de 100 TB de dailies (cópias feitas imediatamente depois de cada dia de filmagem para verificação dos resultados).

Em seguida, houve a palestra do restaurador do arquivo da UCLA, Bob Gitt, sobre a recente restauração do musical Sapatinhos vermelhos (The Red Shoes, 1948). Em outro post falarei mais detidamente desse filme, que vi em outra ocasião na mesma época em que estive em Los Angeles.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Relato do The Reel Thing XXII, 2009 (parte 1)

Entre os dias 21 e 22 de agosto de 2009 participei do "The Reel Thing XXII", simpósio técnico promovido pela AMIA (Association of Moving Image Archivists). Estava em Los Angeles com bolsa-sanduiche do doutorado e aproveitei para participar do evento realizado no Linwood Dunn Theater, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Arrumando meus papeis, aproveitei para tentar passar a limpo algumas das anotações que fiz das palestras, tentando alinhar as questões que me pareceram mais interessantes na ocasião.

A primeira palestra do dia foi de David Giovannoni, intitulada "Adieu, sweet aparition. Hello Sweetheart". Fundador do "First Sounds" um grupo de historiadores do som, engenheiros de áudio, "arqueofonistas" e outros indivíduos que se dedicam voluntariamente a tornar acessíveis os primeiros registros sonoros da humanidade. Giovannoni retomou seu relato do ano anterior quando apresentou a recuperação de um dos mais antigos registros da voz humana, feito em Paris em 1860 - 17 anos antes da invenção do primeiro gravador do som por Thomas Edison e seus cilindros de cera. Isso foi conseguido através da descoberta de registros do "phonautograms" de Édouard-Léon Scott, invento dedicado a tornar o som visível, isto é, fazer uma representação visual do som numa espécie de caligrafia automática. Giovannoni relatou as dificuldades de conseguir "tocar" novamente aqueles registros que não foram criados originalmente com essa intenção. Para saber mais dessa história fantástica, sugiro consultar o site http://www.firstsounds.org/

A segunda palestra foi do célebre especialista John Polito, abordando a restauração sonora do filme How to marry a milionaire (1953), comédia com Marilyn Monroe, Lauren Bacall e Betty Grable, primeiro filme feito em cinemascope e mixado em 4 canais estéreo. Para destacar sua novidade tecnológica, o filme se iniciava com um prólogo de 8 minutos com uma orquestra regida pelo compositor Alfred Newman. O som dessa cena foi registrado com 3 microfones como forma de explorar na exibição do filme a espacialidade proporcionada pelo som magnético. Entretanto, Polito revelou como as fitas magnéticas da mixagem original do filme apresentavam um supreendente nível de 6% encolhimento! As máquinas de reprodução magnética geralmente são capazes de tocar fitas com até 1,5% de encolhimento, enquanto os aparelhos especialmente feitos para os arquivo suportam até 4% de encolhimento. As fitas magnéticas apresentavam-se portanto até 2 mm mais curtas do que sua dimensão original. Polito advertiu ainda como a prática corrente de "assar" as fitas de áudio ajudam um pouco, mas fazem mais mal do que bem, pois a deixam em condições piores no final de contas. Foram relatadas ainda como esses problemas foram superados na restauração do filme, apresentado ao final do dia para o público.

A palestra seguinte também foi a apresentação de um caso de restauração, mas do filme Rashomon, de 1950, patrocinado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Mike Pogorzelski apontou como, apesar de ser um filme clássico, não existiam boas cópias 35mm da obra-prima de Kurosawa em nenhum arquivo do mundo. Relatou que nos anos 1970 o negativo original do filme - feito com pouquíssimos recursos - havia desaparecido. Para a restauração foi utilizada uma cópia 35 mm em acetato de 1962, mas, como material de referência, descobriram alguns fotogramas do negativo de câmera que haviam sido guardados pelo diretor de fotografia. A cópia utilizada foi duplicada antes de ser escaneada para não haver riscos, sendo digitalizada em 4K. Pogorzelski observou que os piores elementos para serem tratados numa digitalização, que correm o risco de aparecer como erros devido aos detalhes e a velocidade com que aparecerem, são folhas de ávores, gostas de chuva e chamas de fogo. A platéia riu com a lembrança de que Rashomon se passa em grande parte numa floresta, à noite, com personagens em volta de uma fogueira! A restauração do filme teria custado 400 mil dólares e como produto final foram feitas cópias novas em 35mm e e extraída uma versão em HDCAM-SR para o lançamento do filme em blu-ray (ele já fora lançado em DVD pelo selo Criterium).

A palestra seguinte, mais técnica e menos interessante, abordou o tema da Síndrome do Vinagre no ambiente de trabalho. Os palestrantes, funcionários da Citadel Enviorenmental Services, discorreram sobre o tema de "Higiene industrial", divido nas etapas de reconhecimento, avaliação, prevenção e controle. Foi debatido o dilema entre isolação e ventilação nos ambientes de arquivos audiovisuais e afirmou-se, ao fim, que a síndrome de vinagre não representa ameaça tóxica ou cancerígena para os funcionários, mas pode causar diferentes tipos de irritação de pele.

A parte da tarde começou com a palestra de Ethan Miller, sobre o tema do armazenamento de arquivos digitais que abordarei em seguida.

Mais original foi o relato de Al Sturm, da Wideband Video Labs, sobre a restauração de fitas da primeira missão de registro ótico da lua através de satélite da NASA, anunciada com furor pela mídia americana no ano anterior. O palestrante revelou como a tarefa foi muito mais complicada e contou com muito menos recursos do que foi anunciado.

Sobre formatos "estranhos" também falou Ralph Sargent, ao expor o caso da restauração de um episódio do programa de TV "Johnny Cash Presents the Everly Brothers Show", série da rede ABC do início dos anos 1970. O surpreendente do caso é que esse material não foi gravado internamente pela emissora quando feito, mas sobreviveu apenas através de uma gravação a partir da transmissão televisiva (off-the air) feita em uma fita 1 polegada tipo A, um formato pouco utilizado de vídeo produzido pela Ampex e destinado a uso educacional e destinado ao mercado caseiro - uma espécie de precursor do VHS. Sargent relatou as dificuldades para restaurar essas fitas e mostrou alguns trechos - muito bons! - do programa musical.

Voltando ao tema da NASA, Mike Inchalik fez um relato muitíssimo interessante sobre o sistema utilizado para capturar em vídeo a atividade dos astronautas da nave Apolo 11 fora do veículo espacial. Os registros dessa primeira missão lunar tripulada foram transmitidas ao vivo da lua para a Terra num formato único, nunca utilizado comercialmente, de 320 linhas por quadro, e velocidade de 10 quadros por segundo. Elas foram registradas em fitas de 1 polegada, totalizando 9.200 pés (2.800 metros), com 525 linhas e 60 quadros por segundo. Mas as 45 fitas utilizadas estavam desaparecidas.
Essas imagens eram filmadas na Lua, transmitidas para a Terra, seus sinais convertidos, e depois transmitidas pela TV para a casa de milhares de pessoas em todo o mundo. Dessas imagens sobreviveram apenas os seguintes materiais utilizados na restauração: uma VHS feita em Sidney (onde havia também uma base de apoio à expedição lunar) a partir de fita 2 polegadas; uma quinescopagem feita na NASA (isto é, a filmagem em película diretamente do monitor de vídeo); algumas fitas 2 polegadas da rede de televisão CBS que transmitiu a missão pela TV; e, mais surpreendente de todos, um filme 8 mm feito com câmera na mão filmando um monitor de baixa frequencia na Austrália!

A última apresentação foi sobre o filme ilustrativo do USS Arizona Memorial, museu construído no navio abatido no ataque japonês a Pearl Harbor na Segunda Guerra Mundial. O filme feito em 35 mm nos anos 1980 vinha sendo exibido nesse formato a todos os visitantes até se decidir pela feitura de uma versão digital para substituí-lo. O filme foi scaneado em 4K e apresentado em pré-estréia para o público do simpósio em projeção 4K. Foi a primeira vez que pude ver esse tipo de apresentação e a riqueza de detalhes na tela impressionam, embora, mesmo em 4K, eu ainda tenha ficado insatisfeito com o tom e profundidade das cores, que me pareceram ainda opacas e pouco vivas em relação à película.

Continua...

domingo, 3 de abril de 2011

Mágicos de Oz: sobrevivências, perdas e achados na história do cinema australiano.

Este texto de Ray Edmondson – publicado originalmente no livro This film is dangerous (2002), traduzido para português por Daniel Pech e revisado por mim – é um relato pessoal, divertido e interessante do papel e importância dos colecionadores particulares para a preservação audiovisual de um modo geral, e especificamente no caso do patrimônio cinematográfico da Austrália. Através de casos que Edmondson vivenciou em sua longa carreira, é possível evidenciar a importância dos arquivos audiovisuais estabelecerem uma rede de relações que são essenciais para o resgate de obras que geralmente ocorre através da conjunção (ou coincidência) de diferentes eventos e da colaboração de diferentes pessoais nas mais distintas circunstâncias.

Mágicos de Oz: sobrevivências, perdas e achados na história do cinema australiano, de Ray Edmondson

Entre os Colecionadores

Eu não acho que exista nada mais emocionante na preservação de filmes do que achar um importante filme “perdido”. Sem querer soar melodramático, as comparações que mais rapidamente vêm à mente são com os arqueólogos entrando em uma antiga tumba egípcia jamais saqueada no Vale dos Reis ou o jovem Jim Hawkins e Long John Silver transformando-se em milionários na Ilha do Tesouro (Visões de um risonho Robert Newton babando em cima de uma pilha de latas recém desenterradas não parecem totalmente incongruentes. “Arrrhh, agora Ray, meu rapaz, que pérolas preciosas nos esperam aqui, hein?” ele exclama, e com a ponta de uma chave de fenda abre a tampa enferrujada...)

Desde 1968, quando eu ingressei no predecessor da NFSA – o embrionário Arquivo de filmes da Biblioteca Nacional da Austrália – a arqueologia da história do cinema australiano foi sempre uma intrigante jornada de descoberta. Da história da indústria cinematográfica australiana durante a era do nitrato pouco havia então sido documentado. Entretanto, já existia uma coleção de centenas de títulos, pesquisas sérias estavam se iniciando e muitos dos pioneiros dessa indústria ainda estavam vivos.

Como eu estava para descobrir, a rede de colecionadores de filmes era vibrante, ativa e, claro apropriadamente discreta. Muitos eram pessoas apaixonadas, cujos hobbies custavam caro. Seus cinemas 35 mm particulares – às vezes construídos em garagens ou salas de estar – não eram baratos. Suas coleções ocupavam espaço – barracões, garagens, cômodos vazios. Pelo fato dos filmes serem inflamáveis, eles eram compreensivelmente receosos em compartilhar seu entusiasmo com vizinhos ou com as companhias de seguro. Mas em seus lares, as esposas e filhos (colecionadores são quase sempre homens) geralmente eram obrigados a compartilhar o entusiasmo do pai!

Em tempo, eu me senti bem vindo ao mundo deles. Foi um privilégio ser tratado dessa forma já que, como um arquivista que trabalhava para o governo ao invés de colecionador privado, eu representava a suspeita mão da “oficialidade”. É preciso lembrar que qualquer coleção privada de filmes 35 mm era composta, pelo menos em parte, de filmes que eram tecnicamente “propriedade roubada” – ou seja, de películas que foram oficialmente, se não realmente, jogadas fora. Elas chegaram às mãos dos colecionadores de forma informal e as distribuidoras comerciais das quais elas se originaram – que, dentre outras coisas, temiam a pirataria – compreensivelmente desaprovavam a prática. E desaprovavam algumas vezes de forma ativa: histórias de batidas policiais instigados por distribuidoras a coleções privadas eram parte do rico folclore da rede dos colecionadores, que abundava também de pessoas anunciando grandes descobertas e contando vantagens ou causos de passarem a perna em distribuidoras ou laboratórios (Ao mesmo tempo, eu suspeito que a “emoção” de possuir material ilícito era, para alguns, parte da atração de colecionar).

As histórias são muitas, mas a do misterioso e anônimo “Cavalheiro Chinês” pode servir de exemplo. Naquela época, na Austrália, películas 35 mm eram geralmente mandadas para cinemas no interior do país via trem – a programação era agendada com exibições em cinemas de cidades ao longo da linha férrea. Os filmes “seguiam a linha do trem” para serem exibidos em cada uma delas de cada vez. Os filmes seriam entregues com um dia de antecedência de cada exibição, as latas dos filmes seriam colocadas na plataforma pelo guarda do trem, à espera da coleta pelo projecionista do cinema. Havia um alto grau de informalidade e confiança envolvido – pelo que eu me lembro de observar quando criança, as latas (de metal pesado, contendo vários rolos de filmes de nitrato) podiam ficar na plataforma da estação sob sol forte por várias horas até serem coletadas.

Entra o “Cavalheiro Chinês”. Aparentemente, ele tinha um acordo com um – ou mais – funcionário da estação nas situações onde esse atraso habitual poderia lhe trazer vantagem. Ele pegaria “emprestado” um filme por várias horas, tempo suficiente para fazer um duplicado negativo e retorná-lo antes que o receptor viesse retirá-lo. Esse negativo poderia fornecer inúmeros filmes piratas cujo uso – na Austrália ou no exterior – podemos apenas supor. Imagina-se que o senhor Cavalheiro tivesse seu próprio laboratório – algo totalmente possível na época do filme preto e branco (eu conheci colecionadores que tinham suas próprias copiadoras – o mais importante equipamento, uma vez que a revelação podia ser feita fora).

Claro, os meios que os colecionadores usaram para obter seus filmes podem ser classificados em outras três categorias. A primeira seria a genuína descoberta em locais inesperados, como cabines de projeção de cinemas antigos, ou lojas de segunda mão. A segunda seria pelo tradicional escambo com outros colecionadores. A terceira seria uma aquisição “informal” com distribuidores.

Sobre a última categoria, eu nunca conheci um colecionador que admitisse ter feito uso dessa prática – mas todos sabem que aconteceu! Hipoteticamente, o colecionador Jones conhece o despachante Smith na distribuidora da Companhia de Filmes Estupendos. Smith fora instruído a destruir uma quantidade de películas excedentes e certificar legalmente que isso fora feito. Casualmente, ele menciona isso para Jones, que felizmente poderia fazer-lhe o favor de realizar essa tarefa. No dia seguinte, Jones chega com seu carro e Smith joga as películas no porta-mala. Smith poderia agora, formalmente, dar baixa delas, enquanto Jones – que, parece, não é sempre muito organizado – poderia esquecer-se de destruí-las. Existem inúmeras variações desse caso, e apesar das instâncias oficiais de muitas companhias, havia – pelo menos, algumas vezes – evidente tolerância do inevitável. Colecionadores teriam a mentalidade de que enquanto não houvesse pirataria e o lucro da distribuidora não estivesse sendo afetado, a prática não causaria mal e, de fato, no decorrer do tempo, trouxeram benefícios, contribuindo para a sobrevivência de filmes.

Com o passar dos anos, eu conheci muitos colecionadores que tinham e vigiavam cópias únicas de filmes australianos em nitrato que foram encaminhadas aos nossos arquivos. Entre eles havia filmes mudos como The Breaking of the Drought (1920), de Franklin Barrett, a segunda versão para o cinema do clássico da literatura Robbery Under Arms (1920), o ousado filme de Raymond Longford The Woman Who Suffers (While the Man Goes Free) (1918), The Adventures of Algy (1925), de Beaumont Smith e Waltzing Matilda (1934), do comediante Pat Hanna. Tão importante quanto, havia muitos cinejornais, documentários e filmes publicitários que sobreviveram em coleções particulares.

Colecionadores valorizam sua privacidade, mas eu irei mencionar dois, ambos já falecidos, que eu acho que ficariam felizes em serem lembrados nesse contexto. John Scanes (a fonte de Robbery Under Arms) era um homem extremamente generoso que mantinha sua coleção e equipamento de projeção em sua garagem em um subúrbio distante de Sidney. Ele me alertava quando suas atividades se deparavam com um interessante filme australiano e isso geralmente resultava no depósito dos rolos na coleção do Arquivo. Ele me tornou uma visita bem vinda em sua casa e nós, às vezes, passávamos horas assistindo parte de sua coleção. Guardadas em pilhas em sua garagem, cada rótulo de lata poderia nos levar a uma história passada, ao exame numa mesa enroladeira ou ocasionalmente a projetar algo na tela. Quando tínhamos espaço, eu oferecia guardar alguns filmes de nitrato no nosso cofre em Camberra: muitos de seus filmes raros de origens americanas e européias, alguns da virada do século, foram progressivamente repatriados para arquivos em seus países de origem.

Harry Davidson era talvez o mais famoso colecionador de Melbourne. Ele tinha duas coleções: a primeira foi perdida em um incêndio entre os anos 50 e 60 (ele nunca tinha certeza em relação à data). Ele recomeçou e construiu uma segunda coleção e sua casa era um templo de seu amor pelos filmes: estatuetas e relíquias de cinemas demolidos eram postas pela casa, disputando espaço com latas de filme e memorabilia postas em salas e corredores, e o característico cheiro de nitrato (e eu confesso que amo esse cheiro) estava em toda parte. Harry guardava sua coleção com ciúmes, mas no final dos anos 1970 ele finalmente cedeu e me emprestou seu precioso The Exploits of the Emdem (1928) para copiar, sob minha promessa de sua segurança e retorno seguro. A película já estava mostrando sinais de decomposição e eu mandei para tratamento de retirada de riscos em um laboratório privado antes de copiá-la. Inesperadamente, o tratamento reagiu com a película e piorou seu estado de deterioração. Eu não mantive minha promessa. Passaram-se anos até recuperarmos a confiança de Harry e ele novamente nos deu acesso a sua coleção.

Por volta de 1980, Harry faleceu subitamente, deixando a esposa Pat e a filha Theda. Nós conseguimos comprar sua coleção de aproximadamente 2000 rolos. Muitas de suas riquezas, que incluíam uma versão tintada de Metropolis e cópias únicas do início da carreira de Harold Lloyd foram desde então distribuídas para arquivos ao redor do mundo como parte do programa de repatriação de filmes em nitrato da NFSA nos anos 1990. Em cada caso, os arquivos identificavam o material como parte da “coleção Harry Davidson”. Isso fazia parte de nossas condições para aquisição e celebrou a realização – e o legado – de Harry como colecionador.

Enquanto arquivos de filmes frequentemente possuem meios financeiros, geralmente indisponíveis para pessoas físicas para copiar, guardar de forma correta e preservar filmes em nitrato, é mais comum que seja o colecionador que disponha de tempo, contatos e disposição para encontrar os filmes em primeiro lugar. É uma parceria, embora o papel do colecionador geralmente seja esquecido – e muitos colecionadores preferem dessa forma. Mas a parceria depende de relacionamentos pessoais, envolvendo respeito mútuo, um amor em comum por filmes antigos e a disposição para aceitar as obrigações morais que vem ao ser convidado para – e talvez assumindo responsabilidade por – um mundo particular, o produto de uma vida inteira de paixão e persistência.

Alguns que foram

Os três maiores diretores australianos do cinema mudo – Raymond Longford, Franklyn Barrett e Beaumont Smith – eram prolíficos, cada um realizando mais de 20 filmes em suas carreiras. Tragicamente, apenas vestígios de seus trabalhos sobreviveram.

Do trabalho de Longford, apenas sua obra-prima mais conhecida, The Sentimental Bloke, sobrevive intacta (ver abaixo). Versões substanciais, embora incompletas ou encurtadas, de três outros filmes existem, assim como fragmentos de outros dois. Longford trabalhou para uma série de produtoras entre 1910 e 1914, e não possuía sempre os direitos ou o controle físico de seus filmes. Eles passaram por uma serie de mãos e sua sobrevivência foi uma questão de sorte.

Flanklyn Barrett, da mesma forma, trabalhou para uma serie de produtores, mais tarde abrindo sua própria empresa, e fazendo seu ultimo filme – A Rough Passage – em 1922. Apenas dois de seus filmes – The Breaking of the Drought e A Girl of the Bush, ambos de 1920 – sobreviveram. Por muitos anos, ele parece ter mantido suas cópias e negativos em sua garagem e nos anos 1950 tentou despertar interesse institucional em sua preservação. Mas antes que qualquer progresso pudesse ocorrer, a estrutura de sua garagem cedeu; os filmes, e os demais destroços foram recolhidos como escombros.

Desde o início, Beaumont Smith trabalhava sua própria produtora, fazendo seu primeiro filme em 1917 e seu último em 1934. Três de seus filmes e um fragmento de um quarto chegaram até nós. O fato de não termos sua obra completa é o resultado do tempo e de circunstâncias. Depois da morte de Smith em 1950, seu irmão herdou os filmes sobreviventes e os reteve por vários anos. Mas uma conversa casual com alguém da brigada de incêndio local o alertou para os perigos de se manter uma grande pilha de filmes de nitrato inflamáveis na garagem de sua casa. Sob conselhos, ele consentiu na destruição de toda a obra pelas autoridades do corpo de bombeiros. A biblioteca nacional, então iniciando uma busca por filmes de nitrato escrevendo para todas as brigadas de incêndio da Austrália, rastreou o senhor Smith – apenas seis meses mais tarde. Apenas um fragmento – alguns minutos do filme The Digger Earl de 1924 – havia sobrado. Foi apenas anos mais tarde que uma cópia de um filme mudo de Smith, e dois de seus filmes falados, foram encontrados com outras fontes.

Quatro Achados

National Films, Fatty Finn e Charlie Chaplin

A National Films, de New South Wales, era uma distribuidora pequena e independente, cujo dono era o artista Gerry Tayler. Por muitos anos, até meados da década de 1960, ocupava escritórios na cobertura de lojas na Rua Pitt, o coração do centro comercial de Sidney. Os arquivos de filmes, contendo milhares de rolos de nitrato eram vizinhos aos escritórios: embora eles nunca tivessem tido nenhum problema, pode-se especular que um incêndio dos nitratos teria transformado o edifício em uma interessante variação de um show de fogos de artifício.

Como independente em uma indústria dominada por um pequeno número de grandes empresas estrangeiras, a National trabalhava à margem, suprindo exibidores independentes do interior e nichos específicos. Seu inventário incluía produtos americanos como as séries “Joe Palooka”, vários longas e curtas-metragens australianos e até mesmo material do período silencioso desprezado pelas majors após o advento do som. A National regularmente juntava aos cinco cinejornais locais, curtas cômicos do cinema mudo – nos anos 1950, era o único local onde era provável assistir a esses filmes em 35 mm. Quando estudante, eu freqüentava esses cinemas especializados em cinejornais regularmente e dentre outras coisas, com o passar dos anos, foi lá que eu assisti pela primeira vez aos curtas mudos do Chaplin – todos eles, como eu aprendi depois, parte da série relançada (com música) pelo estúdio Van Bueren nos anos 1930 e vindos da National Filmes.

Outro freqüentador desses cinemas nos anos 1950 (e que eu iria conhecer mais tarde) era John Morris, um estudante da Universidade de Sidney e membro ativo de seu Clube de Cinema. Certa vez, ele ficou intrigado por um filme mudo que mostrava crianças em Sidney fazendo palhaçadas. Ele foi até a fonte da cópia – a National Films – e concluiu que se tratava de um segmento de uma comédia de 1927 chamada The Kid Stakes, baseado em uma popular tira de quadrinhos cômica chamada Fatty Finn. Morris concluiu que a National havia, há algum tempo, adquirido três cópias do filme que eles posteriormente cortaram em trechos de vinte minutos para preencher os programas de cinejornais. A qualidade do filme o impressionou, e ele queria ir além.

Com o apoio do Clube de Cinema e a cooperação (e, suspeita-se, a perplexidade) de Gerry Tayler, Morris reconstruiu a melhor copia completa que ele pôde fazer com os remanescentes dos segmentos cortados. Para fazer novas cópias um negativo tinha que ser tirado e isso foi inicialmente bancado pelo Clube de Cinema – até que o projeto provocou interesse suficiente na impressa para a Biblioteca Nacional ser convencida (Morris diz, “envergonhada”!) a contribuir. Hoje, The Kid Stakes é um clássico reconhecido como um dos melhores filmes mudos australianos e a remontagem de John Morris nunca foi aperfeiçoada.

Morris iniciou uma impressionante carreira como produtor e executivo, comandando a South Australian Film Corporation durante os anos 1970 e finalmente, a Australian Film Finance Corporation até sua recente aposentadoria. No fim de 1999, um novo complexo de salas de cinema em Sidney abriu com uma exibição de The Kid Stakes com acompanhamento de orquestra ao vivo. Nessa ocasião, quando John Morris se levantou e cumprimentou a platéia, sua pioneira carreira como restaurador foi publicamente reconhecida pela primeira vez, quase 50 anos após seu feito.

A história da National Film possui outras ramificações. Quando Gerry Tayler faleceu e sua empresa fechou, sua viúva Dorothy herdou o estoque de filmes de nitrato que foi realocado da Rua Pitt – sem dúvida, para alívio do locatário – para onde quer que eles coubessem em sua casa. Dorothy passou seus últimos anos reparando e arrumando cuidadosamente as cópias. Muito disso chegou a nós, da Biblioteca Nacional, e nos anos 1960 eu me tornei visita regular a sua pequena casa em um dos subúrbios no balneário de Sidney. Ela tinha construído uma mesa enroladeira rudimentar usando discos de vinil como pratos com a qual checava e identificava o material antes de colocá-lo em novas latas recém-pintadas (ela própria as pintava, aumentando seu tempo de vida). Em cada visita, eu pegava uma remessa de filmes para levar à Camberra no meu carro, e a “Coleção Tayler” crescia constantemente.

No acervo de Dorothy, estava uma série de internegativos de cópias dos filmes mudos de Chaplin mencionados acima, os quais ela nos ofereceu. Com um coração pesado, porém racional, eu tive de recusar a oferta, já que na época não possuíamos os meios técnicos e humanos para guardá-los e que, logicamente, eles deveria ser oferecidos a um arquivo americano. Eu facilitei o contato com o American Film Institute, para onde eles foram enviados. De acordo com a AFI na época, eles foram considerados os melhores negativos sobreviventes dos filmes silenciosos de Chaplin.

2) The Flying Doctor

Em 1936, uma empresa chamada National Productions, apoiada pela Gaumont-British e ligada ao novo National Studios, complexo em Sidney, foi criada para a realização de produções internacionais na Austrália. Seu primeiro – e único – filme foi The Flying Doctor, realizado pelo diretor britânico Miles Mander e estrelado pela ídolo americano dos filmes de matinê, Charles Farrel. A história girava em torno do famoso serviço que provia cuidados médicos no deserto australiano, e possuía ingredientes interessantes como um papel para o jogador de cricket Don Bradman, então no auge de sua fama. O filme foi lançado na Austrália e na Grã-Bretanha, mas obteve apenas um sucesso regular, e eventualmente sumiu de vista. Em meados dos anos 1970, quando seu título aparecia em uma lista de filmes que nosso arquivo estava em busca, não se sabia da existência de nenhuma cópia.

Um dia, trabalhadores em Lane Cove, subúrbio de Sidney, estavam em uma obra e sua tarefa inicial era a demolição de uma pequena caixa-forte com portas de aço, que estava no meio do caminho. Não conseguindo abrir de outra maneira, um trabalhador fez um corte na porta de aço com um maçarico, revelando seu interior, coberto de latas de filmes de nitrato. Junto com outros entulhos, as latas foram colocadas em um caminhão e jogadas no lixão mais próximo.

Enquanto o caminhão passava pela Prefeitura local, um funcionário percebeu o que ele estava levando e imediatamente correu, perseguindo o caminhão em seu carro. Chegando ao lixão, ele convenceu o motorista a levar as latas a um local seguro e contactou a Film Austrália, uma produtora estatal localizada no subúrbio próximo de Lindfield. Eles, por sua vez, entraram em contato com a Biblioteca Nacional, e o filme foi transferido para a coleção do National Film Archive.

Dentre outras coisas, continha uma cópia em nitrato de The Flying Doctor. Animado e intrigado, eu vi a cópia através de um telecine. Era coisa boa e envolvente, mas quando a história chegava a uma crise insolúvel, no fim do rolo 8, acabou. Era isso. O último rolo estava faltando.

Por dois anos, eu imaginei como a história acabaria. Então, de forma inesperada, a resposta a uma lista rotineira de filmes perdidos enviada ao National Film Archive de Londres – enquanto sem nada referente aos demais títulos – apontou para a existência de uma cópia de The Flying Doctor nos estúdios da Rank, que ficou feliz em nos doá-la. Finalmente, eu iria assistir ao último rolo! A caixa chegou. Eu a desembalei e, para meu desânimo, a cópia de Rank também possuía apenas 8 rolos. Eu a coloquei no telecine. Claramente, era o mesmo filme, mas ele estava remontado e encurtado: o meio e abertura tinham sido alterados, e outras mudanças tinham sido feitas. Eu me preocupei até chegar ao fim do rolo 7 que acabava... precisamente no mesmo ponto do rolo 8 da cópia de “Lane Cove”! Então, o último rolo poderia servir às duas versões! Chegou o grande momento: rolo 8 visto, eu finalmente soube como a história acabava.

Por que haveria duas versões? Isso foi, na verdade, o destino de muitos filmes australianos no período do nitrato e depois. Lançados como filmes “A” em seu país, eles normalmente eram considerados filmes “B” nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha – caso sequer chegassem a ser lançados lá. O negativo original era enviado para feitura de cópias pelo distribuidor internacional, que muitas vezes remontava e/ou mudava o nome do filme para alcançar um maior mercado. (Então The Adorable Outcast virou White Cargoes of the South Seas, On Our selection virou Down on the Farm, Walk into Paradise virou Walk into Hell, Forty Thousand Horsemen virou Thunder Over the Desert). O negativo original e as novas cópias nunca retornavam à Australia – não valia o custo do envio – e normalmente se perdiam. Os orçamentos das produções eram muito pequenos para a realização de másteres (interpositivos) ou cópias de segurança para serem guardadas “em casa”: as cópias dos lançamento originais serviam para a cadeia comercial do filme. Ninguém pensava em vendas futuras ou algo chamado televisão.

Ainda tem mais nessa história. Anos depois, uma exibição itinerante de fotos de nossa coleção, em exposição em uma galeria de arte de Sidney, nos trouxe uma surpresa. Como generosa doação, alguém entregou o livro oficial de fotos de cena de The Flying Doctor, comprado numa loja de segunda mão. Uma incrível série de coincidências nos deu não apenas duas versões do filmes, mas uma cobertura completa de suas fotos de cena. Realmente, um final feliz.

O quê? Eu não revelei o que acontecia no rolo final? Desculpem-me, mas eu não quero estragar o filme, caso vocês ainda não o tenham assistido. Nós podemos lhe vender um vídeo...

(3) Ned Kelly

Enforcado em 1880, Ned Kelly, o fora-da-lei revestido de aço, conquistara, após duas décadas de sua morte, status de celebridade como símbolo de coragem e anti-autoritarismo. Celebrado primeiramente em peças teatrais, e mais tarde em obras como as pinturas de Sir Sidney Nolan, ele se tornou um ícone nacional australiano. É talvez sem surpresas que ele tenha sido o tema de (até hoje) sete filmes, todos tendo sobrevivido inteira ou parcialmente. O primeiro destes, The Story of the Kelly Gang, feito em 1906, é de crucial importância, porque provavelmente representa a primeira aparição no mundo do conceito moderno de filme. Um drama cinematográfico durando algo em torno de 40 e 80 minutos (não há nenhuma documentação exata) e sendo o programa único das sessões, foi um grande sucesso comercial, sendo exibido na Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Ele foi feito em Melbourne e, para economizar despesas, os produtores até persuadiram a polícia para emprestá-los a verdadeira armadura de Ned Kelly a ser usada pelo ator no filme.

No entanto, até meados da década de 70, não se sabia de nenhum traço do filme. Nós fomos afortunados de adquirir uma cópia do folheto original da programação, que continha uma sinopse detalhada e a reprodução de algumas fotos do filme. Mas não havia nenhum material fílmico...

Um dia, eu estava passando o olho por um material de nitrato que chegara como parte de uma pequena coleção. Chamou a minha atenção um trecho com por volta de 10 fotogramas de perfurações quase quadradas. Havia alguém vestido com a armadura característica de Ned Kelly. Procurei no rolo por mais: havia outros dois breves fragmentos similares. Comparei-os com as fotos do folheto da programação. Não havia dúvidas – eu tinha em mãos algo como 60 centímetros do filme original sobre Kelly. Não era muito, mas era alguma coisa pelo menos. Foi um momento que eu não me esquecerei.

Nós fizemos cópias destes fragmentos – tanto em velocidade real quanto estendida – e, então, tínhamos um relance tentador do filme para exibir. Nós algum dia veríamos mais?

Em Junho de 1979, fui contatado pelo diretor de uma escola de Melbourne, Ken Robb. Enfrentando um período de enfermidade, ele se deparou com uma lata de negativo que havia aparentemente sido encontrada embaixo do porão de uma casa. Após ser copiado, foi possível identificar o rolo como duas cenas estendidas do filme de Kelly: possivelmente de takes excluídos da montagem, as cenas praticamente batiam com as fotos do folheto da programação. Este pequeno rolo de negativo era (e é) um dos ícones físicos mais preciosos do cinema australiano – e sendo só um pouco mais novo que o seu próprio século, ele ainda está em bom estado! Foi um profundo gesto de apoio comunitário do Sr. Robb para o Acervo porque ele simplesmente, e incondicionalmente, doou algo sob o qual ele podia facilmente ter exigido um alto preço.

Dois anos depois, havia mais! Algumas crianças trouxeram para o escritório do jornal Cinema Papers uma lata de filme que eles encontraram na boca de uma lata de lixo em Melbourne. Descobriu-se que eram 150 metros da cópia de exibição do filme – provavelmente da versão de relançamento de 1910. Uma parte estava deteriorada irremediavelmente, mas boa parte pôde ser salva. Finalmente, tínhamos uma seqüência substancial do filme, editada e com intertítulos, como os espectadores originais o viram. Tudo junto, havia agora algo como 5 minutos de material – não muito, mas o suficiente para emanar o sabor e o estilo do filme e para embasar sua importância histórica.

Nada mais veio à tona. As chances de isso acontecer são limitadas, mas não impossíveis – e há quem jamais perca a esperança. Foi apropriado que, para marcar o Centenário do Cinema em 1995, nós finalmente tínhamos Ned Kelly em um selo de postagem australiano. Legalmente, criminosos levados à morte não podem ser impressos em selos: mas a foto de um filme de 1906 em que um ator veste a verdadeira armadura de Ned – bem, isso é um outro caso!

(4) The Sentimental Blonde … er, Bloke

The Sentimental Bloke, produção de 1919 de Raymond Longford, é geralmente vista como a jóia do cinema silencioso australiano. Trata-se de uma simples história de amor passada nos subúrbios, adaptado de um clássico poema narrativo homônimo de CJ Dennis. Estrelando Arthur Tauchert como Bill, o “companheiro” (bloke), e Lottie Lyell como sua mulher, Doreen, o filme foi apreciado por suas interpretações naturalistas e elenco perspicaz.

Dennis escrevera com autênticas gírias australianas, e os intertítulos do filme declaradamente parafraseiam seus versos. Quando Bill é pela primeira vez “apresenteado” (apresentado) à Doreen, ele a cumprimenta com seu chapéu; e quando se arruma para conhecer sua futura sogra, ele faz uma observação com a sua desacostumada elegância:

Mim patentes de couro quase me levaram às lágrimas

Mim gola ereta rasga mim orelhas

Este recurso, claro, explorava a capacidade evocativa dos filmes silenciosos: todos da platéia respondiam às palavras escritas com a criação imaginária das vozes dos personagens. Fora da Austrália, no entanto, o recurso criou sua própria barreira da linguagem. Então, quando o filme foi preparado para o lançamento americano, os intertítulos foram reescritos em gírias americanas! O título principal tornou-se The Sentimental Bloke: The Story of a Tough Guy (O companheiro sentimental: A história de um cara durão) e os versos de Dennis foram um tanto reformulados. Sua descrição do café-da-manhã de casamento:

An’ then we ‘as a beano up at Mar’s

A slap-up feed, wiv wine an’ two big geese

tornou-se:

Then comes the feast at Mar’s: Aunt, uncle, niece,

Done wonders with the wine an’ two big geese

Com o passar da era silenciosa, a carreira de Longford rapidamente declinou (ele terminou sua vida como balconista no porto de Sydney) e seus filmes sumiram de vista. A maioria se perdeu: um punhado veio à tona em formas incompletas ou fragmentadas. Bloke é o único que sobreviveu relativamente intacto.

Em 1952, um incêndio de nitrato no alto de um edifício no centro de Melbourne provocou a destruição da biblioteca cinematográfica de uma antiga instituição, a Cinema Branch of the Deparment of Commerce. Realizadora de curtas institucionais e documentários, ela havia efetivamente fechado no final dos anos 30. Seu chefe, Lyn T. Maplestone, foi um dos primeiros defensores da preservação de filmes, e parece que a instituição realizou alguns passos para salvar filmes importantes, ainda que seja improvável que um dia se saiba que filmes eram estes. Milagrosamente, duas caixas de filmes sobreviveram ao incêndio: elas foram enviadas para o Departamento de Cinema da Biblioteca Nacional do Commonwealth em Canberra, e, no exame de seu conteúdo, encontrou-se uma cópia de nitrato completa de The Sentimental Bloke.

O chefe da Divisão, Larry Lake, foi rápido em reconhecer a qualidade do material, e em 1954 foi enviado ao Laboratório de Sydney para duplicação. A um técnico novato do laboratório chamado Anthony Buckley foi dada a tarefa de refazer as emendas da cópia tintada. Intrigado, ele guardou todos os pares de fotogramas adjacentes aos cortes: anos depois, ele iria ter um grande papel na redescoberta do interesse pela história de cinema australiano, no desenvolvimento do Acervo Nacional de Imagem e Som (NFSA) e – finalmente – se tornaria um grande produtor por conta própria. (Ele acabaria por doar os fotogramas para o Acervo e, em conseqüência, permitir o registro das tintas e tonalidades originais).

As cópias em 16 mm criadas pelo negativo de acetato da Biblioteca começaram então a circular em sociedades cinematográficas e festivais; Bloke, e o próprio Longford, foram redescobertos. Longford deixou um documento pungente sobre seus sentimentos ao assistir novamente o filme após tantos anos: nesta época, todos os demais envolvidos na produção estavam mortos e a projeção foi, ao mesmo tempo, doce e amarga.

Passemos a 1973. Como um jovem preservador de filmes, eu realizei uma viagem de estudos por cinematecas estrangeiras que acabou por me levar a George Eastman House, Rochester, EUA, e seu curador legendário, James Card. Eu havia ouvido rumores que George Eastman House tinha uma cópia em nitrato de The Sentimental Bloke e eu queria confirmar isso, então perguntei a Card se tal título o lembrava de alguma forma. Ele me respondeu que achava que tinham alguma coisa. Atravessamos a neve para chegarmos às salas de nitrato. Jim abriu uma das salas, que vasculhamos durante um tempo. Então eu me deparei com seis latas etiquetadas de The Sentimental Blonde. Era demais para ser uma coincidência, então eu abri a primeira lata, estiquei o rolo até o título principal e vi os créditos de Raymond Longford. Era o negativo original de The Sentimental Bloke. Não posso descrever como senti ao averiguar aquelas seis latas. Cada preservador guarda seus momentos de grandes descobertas.

Como o negativo chegou a Eastman House? Ninguém sabia, mas é provável que tenha chegado lá com uma coleção de filmes silenciosos, talvez do estoque de um distribuidor falecido. Como dito anteriormente, quando os produtores australianos conseguiam um lançamento internacional, eles não tinham outra alternativa além de enviar o negativo original para a feitura de cópias de exibição, e frequentemente, também de remontagens: não existia película para internegativo satisfatória, e mesmo se houvesse, os produtores australianos não poderiam pagar por ela. Os negativos eram raramente devolvidos: não havia demanda posterior de exibição no país de origem e o custo do frete era injustificado.

Encontrar o negativo é uma coisa: ter acesso a ele é outra. Sobrecarregados e mal financiados, cinematecas podem ser incrivelmente lentas para lidar com empréstimos e solicitações de duplicações quando há outras prioridades. Enfim, quando Paolo Cherchi Usai tornou-se o curador de Eastman House, uma troca foi combinada, em que uma cópia de preservação de Eastman – uma linda cópia positiva, de alta densidade, feita a partir do negativo original – foi emprestada a NFSA. Visualmente, ela era muito superior a versão existente vinda do “Cinema Branch”. Mas havia diferenças: ela era mais curta (muitas cenas haviam sido cortadas e diminuídas), continha alguns planos a mais, e todos os intertítulos estavam em gírias americanas!

Uma grande restauração – baseada principalmente nas imagens da cópia de Eastman e nos intertítulos original de CJ Dennis – foi empreendida, com o lançamento previsto para Setembro de 2001 – e a história toma seu próprio rumo. As tintas e as tonalidades serão restabelecidas usando os fotogramas de Anthony Buckley como referência. E podemos agradecer a uma série de pessoas – e à prudência – pela sobrevivência de um dos tesouros da cinematografia australiana.