domingo, 13 de julho de 2014

Museus audiovisuais, parte 1 - Living Computer Museum, Seattle

Tão importante quanto preservar as imagens em movimento - isto é, as "obras", os "produtos", os "filmes" - é preservar o entorno dessas imagens. Isto é, os objetos, saberes e práticas que permitiram a realização e fruição dessas obras em sua diversidade e multiplicidade em cada contexto histórico. Tradicionalmente, as grandes cinematecas também se dedicaram a preservar, por exemplo, os equipamentos que caracterizariam uma história tecnológica do cinema. A Cinemateca Francesa, por exemplo, adquiriu em 1959 a extraordinária coleção do inglês Will Day - talvez a mais antiga do mundo -, com fantásticas câmeras, projetores, lanternas mágicas e outros aparatos cinematográficos e pré-cinematográficos. Esse acervo constitui hoje o grosso da exposição permanente da sede da Cinemateca Francesa.
Por outro lado, enquanto alguns arquivos mantiveram seu foco no "filme", ignorando o que seria o "não-fílmico", outras instituições passaram a contemplar através de uma abordagem museológica objetos que contariam a história tecnológica das imagens em movimento. A George Eastman House: International Museum of Photography and Film, por exemplo, divide suas coleções em "fotografia", "cinema" e "tecnologia", possuindo um dos mais fantásticos acervos do mundo. Esses arquivos constituem os hoje chamados "museus do cinema", algumas vezes ligados a Cinematecas, e outras vezes instituições independentes, sem arquivos de filmes. Uma das principais características desses museus é o fato de, quase sempre, seus acervos terem origem em colecionadores privados: ex-realizadores, ex-projecionistas, ex-exibidores ou apenas fãs e aficcionados.
Entretanto, se pensarmos "audiovisual" para além do "cinema", um museu teria que contemplar além de lanternas mágicas e câmeras, também computadores, hoje a principal ferramenta na produção, distribuição e exibição de imagens em movimento. Mas a histórica tecnológica recente, dos últimos 50 anos, marcada pela enorme velocidade da obsolescência dos equipamentos, às vezes é tão ou mais difícil de ser preservada do que a história do audiovisual, por exemplo, no século XIX.
Nesse viés, uma instituição muito interessante é o Living Computer Museum (LCM), na cidade de Seattle, EUA, que visitei no início deste ano. Sua localização não é casual, uma vez que Seattle é o lar da Microsoft, e o museu é uma iniciativa de Paul G. Allen, cofundador da empresa juntamente com Bill Gates. Nesse sentido, a característica apontada acima se repete, uma vez que o acervo do museu consiste em grande parte na coleção privada do próprio Allen, principal mantenedor da instituição que foi aberta ao público em 2012.
O LCM fica numa espécie de galpão, num prédio simples e feio que em nada se assemelha com as belas construções - quer históricas, quer modernas - onde geralmente os museus se instalam. A vizinhança da região portuária de Seattle onde ele se localiza também não tem nenhum atrativo, cercada de freeways com o intenso movimento de veículos do centro da cidade para os arredores e para o aeroporto, e vizinha do estádio do time local de soccer e futebol americano.
Na entrada do museu você tem a bilheteria e a lojinha, onde pega um elevador que sobe para o andar único onde fica a área de exposição. Em sintonia com a tendência dos museus de aproximar o visitante do acervo - característica também dos mais recentes museus de cinema, que incentivam a interação ao permitir  que as pessoas girem manivelas e olhem pelos visores dos equipamentos em exposição - o museu de Seattle apropriadamente tem a palavra "vivo" em seu nome. O grande destaque é o fato dos computadores em exposição estarem funcionando e poderem ser utilizados pelos visitantes. Como está escrito no site do LCM: "acreditamos que o melhor modo das pessoas realmente compreenderem os sistemas computacionais é experimentando-os. Somente o hardware não pode ilustrar como era utilizar essas máquinas. Software, informação e interação humana completam a experiência".

Ou seja, para além de uma mera exposição histórica dos diferentes modelos de computadores, das grandes máquinas dos anos 1960 e 1970 aos microcomputadores das décadas seguintes, os engenheiros do LCM focaram no principal problema de preservação: manter esses mesmos equipamentos ativos com seus programas originais! Assim, para além de ver como eram os computadores, o visitante pode sentar e interagir, realmente percebendo a trajetória do design e da interação, seja através dos gráficos, dos periféricos (tela, mouse, teclado etc.) e dos comandos. O museu não deixa de ser também um museu de videogames, uma vez que o computador passou a ter hegemonia de diversas ações e diversões cotidianas: escrever um texto, ouvir uma música e ver um filme, como também se entreter com jogos eletrônicos. O LCM permite, por exemplo, jogar Pac Man, jogo que se tornou ícone de uma década, no console original, possibilitando usufruir da experiência tal como ela era vivenciada há três décadas atrás, atingindo ao objetivo de um museu de realmente funcionar como um túnel do tempo. Ao invés de discos (CDs, DVDs), ou cassetes (há computadores em exposição que utilizavam fitas K7!), o Atari funcionava com cartuchos, numa lógica da munição de armas (pense num cartucho de fuzil, encaixado de forma semelhante), que talvez recorde da aproximação da computação com a tecnologia e a indústria bélica.

Quando eu visitei o museu, vi pessoas de várias idades, tanto adolescentes que provavelmente só ouviram falar e nunca tinham sequer encostado o dedo em computadores de mesa, praticamente obsoletos para uma geração de computadores exclusivamente portáteis, quanto pessoas mais velhas. A nostalgia também me atingiu quando pude jogar Wolf-3D num computador 386 idêntico ao que eu tive em casa. Esse jogo - célebre antecessor de Doom e outros jogos em primeira pessoa - foi um dos primeiros que eu instalei no meu PC na minha adolescência.
O LCM é também de grande interesse para os estudiosos do design, sendo fascinante perceber as mudanças tanto nos gráficos dos softwares (fontes usadas, ícones escolhidos) quanto no formato dos hardwares - por exemplo mais quadrados, tais como encontramos em ficções científicas como 2001 - uma odisséia no espaço.
Pensar os computadores sob o viés de uma "arqueologia das mídias", traçando as continuidades e descontinuidades de práticas de interação entre imagem e espectador ou de uma "história das telas" (screen history), também é algo muito interessante de se fazer ao visitar o museu.
O famosíssimo computador Xerox Alto, um dos primeiros "computadores pessoais" da história, lançado em 1973, virou, sem dúvidas, uma peça de museu, tendo sido produzido em escala de dezenas, e não de centenas ou milhares. É curioso perceber que o seu monitor era em formato de "retrato" e não de "paisagem" como viria a se consagrar. Isso seguia a lógica dos computadores substituírem as mesas de trabalho, fazendo o papel da máquina de escrever, da calculadora e do papel e caneta, enfim, do escritório (o Office), que viria a nomear o mais popular software da Microsoft. Nessa lógica da metáfora do escritório que resultou, inclusive, no sistema de "pastas", "escrivaninhas" e "arquivos" que orientou o Windows como sistema operacional, a tela do computador substituiria a folha de papel ofício, assim como o caderno (o notebook), sendo natural que ela tivesse essa mesma orientação que hoje nos parece estranha. Ao longo dos anos, os
computadores assumiram cada vez mais uma tela quadrada ou levemente retangular (semelhante à proporção 3x4 dos televisores da época), até, hoje em dia, praticamente se padronizar o formato panorâmico, claramente associado ao cinema pós-1950.
Em meio à área de exposição do museu, é possível ver, através da parede envidraçada, a área de trabalho dos engenheiros, reparando equipamentos doados ou se esforçando na árdua tarefa de fazer a manutenção dos computadores expostos e mantê-los em funcionamento. Para quem não puder visitar o museu, vale conhecer essa experiência através de seu site na internet.