domingo, 4 de julho de 2010

Um Eldorado no Ceará

Texto e fotos por Rafael de Luna

Em maio de 2010, estive em Juazeiro do Norte, interior do Ceará, para ministrar um curso sobre a história tecnológica do cinema no Centro Cultural do Banco do Nordeste. Em minha primeira noite, fui conhecer os únicos cinemas da cidade, as duas salas do Cine Cariri, localizadas obviamente no único shopping center da cidade, o Cariri Shopping, onde estavam sendo exibidos Chico Xavier – o filme (dir. Daniel Filho, 2010) e O Homem de Ferro 2 (dir. Jon Favreau, 2010). Como já tinha visto o primeiro, fui assistir ao blockbuster de Hollywood. A projeção em 35mm era bastante precária (parte da tela ficava fora de foco), mas, em compensação, o preço do ingresso era atraente: promoção de quarta-feira com ingresso à R$ 6,00 com direito a um saco de pipoca grátis (a meia-entrada saía por R$ 3,00 e também com pipoca). No fim de semana, o ingresso inteiro não era muito mais caro, saindo por R$ 8,00.
No dia seguinte, sabendo do meu interesse por cinema, alguém me perguntou se eu não queria conhecer o Seu Expedito, dono de sala de cinema na cidade. Perguntei se ele era o dono das salas do Shopping, mas me informaram que sua sala funcionava como cinema pornô. Fui procurá-lo no Plaza Hotel, onde ele morava e em cuja recepção a foto ao lado foi feita (junto à onipresente estátua de Padre Cícero e algumas cadeiras retiradas de seu cinema). Com muita paciência, ele gentilmente me recebeu para uma boa conversa. Logo fiquei sabendo que “Seu” Expedito Costa, nascido em Pocinhos, em 1944, mas criado em Campina Grande, foi um dos maiores exibidores e distribuidores do interior do Ceará e Paraíba.
Sua ligação com cinema começou ainda criança, como espectador frequente do Cinema Babilônia, em Campina Grande, aberto em 1939 (e fechado em 2000). Por estar sempre na “sala escura”, aos treze anos foi convidado pela esposa do dono do cinema para vender confetes na sala, o que lhe permitiria assistir aos filmes de graça. Foi confeiteiro do Cinema Babilônia, antes de mudar-se para João Pessoa para dar prosseguimento aos estudos. Além de cursar o ginásio na capital, passou a frequentar o Cinema Brasil, onde tornou-se ajudante de projecionista.
De volta a Campina Grande, retornou também ao Cinema Babilônia, mas agora como “operador cinematográfico”, ganhando um “salário razoável”, em suas palavras. Em 1963, junto com um sócio, abriu em Sumé, PB, sua primeira sala, o Cinema Municipal, dotada de um projetor 16mm RCA. Ao longo das duas décadas seguinte, expandiu seus negócios adquirindo novas salas, maiores e melhor aparelhadas (mas muitas delas com projeção 16mm), vindo a constituir inclusive a Distribuidora Expedito da Costa. No auge dos negócios, na segunda metade dos anos 1970, chegou a ter cerca de 17 salas no interior do Ceará e da Paraíba, em cidades importantes como Patos, Campina Grande e Juazeiro do Norte.
Em sua opinião, as ditas chanchadas representaram a época de ouro do cinema nacional e chegou a exibir filmes da Atlântida em Juazeiro do Norte, mas somente em reprise, já que eles eram lançados com exclusividade no Cinema Eldorado, do circuito Severiano Ribeiro. Porém, devido ao grande número de lançamentos da U.C.B. (distribuidora de Severiano Ribeiro), eles ficavam apenas dois ou três dias em cartaz, tendo bastante público ainda para assistí-las quando passavam para outra sala.
Viajava com frequencia à Boca do Lixo, em São Paulo, para comprar direitos de filmes para exibição no interior do Nordeste, ou os alugava nas filiais das distribuidoras de Recife e Fortaleza. Para os filmes estrangeiros, a porcentagem do distribuidor era de 60% da bilheteria na primeira semana e 50% na segunda, mas havendo ainda a cota mínima que deveria ser atingida – nesse caso, se o filme fracassava de público, a porcentagem do distribuidor podia abocanhar grande parte da bilheteria, não rendendo praticamente nada ao exibidor. Filmes italianos de gladiadores (“peplum”), filmes de terror e de comédia mexicanos (Cantiflas ou O Santo) e faroestes e filmes de ação americanos eram os gêneros privilegiados, mas havendo grande espaço para o cinema nacional e, obviamente, para a tradicional exibição de uma versão cinematográfica de “A Paixão de Cristo” durante a Semana Santa.
Seu Expedito exibia ainda diversos filmes brasileiros da Embrafilme, que cobrava porcentagem fixa de 50% (o que era uma grande vantagem para o exibidor) e entre os grandes sucessos que passaram em seu cinemas ele destacou aqueles estrelados pelo cantor gaúcho Teixeirinha, como Motorista sem limites (dir. Milton Barragan, 1970) e o Gaúcho de Passo Fundo (dir. Teixeirinha, 1978). Segundo seu depoimento, alguns dos maiores sucessos dos anos 1970 foram os filmes Coração de luto (dir. Eduardo Llorente, 1967, com Teixeirinha) e a reprise do célebre O Ébrio (dir. Gilda de Abreu, 1946). Em 1977, ele viajou ao Rio de Janeiro e comprou de Alice Gonzaga, da Cinédia, os direitos para o relançamento do filme estrelado pelo cantor Vicente Celestino no Nordeste. Ele ainda guardava um cartazete do lançamento do filme pela sua distribuidora. Ao lhe contar que eu conhecia Dona Alice, ele me entregou aquele documento, hoje uma raridade, para que presenteasse a atual dona da Cinédia. Entreguei a “encomenda” algumas semanas depois a Dona Alice, que ainda se lembrava do negócio fechado entre os dois mais de trinta anos antes.
Na mesma viagem ao Rio de Janeiro, Seu Expedito conheceu também o cineasta Watson Macedo e adquiriu os direitos ara relançar a chanchada “junina” Aguenta o rojão (dir. Watson Macedo, 1958), que havia sido um grande sucesso na época de seu lançamento na região. Entretanto, o Laboratório Rex lhe informou que os negativos estavam em mau-estado e não permitiam a feitura de novas cópias. Seu Expedito não cobrou o dinheiro de volta de Macedo, grato que estava pelo modo como foi recebido pelo grande cineasta. Desse encontro com o pai das chanchadas, mantém até hoje como recordação um extraordinário album fotográfico do filme estrelado por Zé Trindade.
A partir do final dos anos 1980, a crise no circuito exibidor se intensificou e Seu Expedito foi se desfazendo de suas salas. Os imóveis eram vendidos ou alugados, restando as cadeiras (que podiam ser negociadas com outros comerciantes) e os projetores (a maioria foi vendida para salas do Sudeste para ser reformado e reaproveitado – segundo sua versão, as salas do Cariri Shopping são equipadas com projetores Phillips de 1956, que tiveram apenas o leitor de som trocado!)
A única sala ainda em seu poder fica justamente em Juazeiro do Norte, o Cine Eldorado, originalmente com 1.500 lugares (hoje com 1.300), que ele adquiriu ao Circuito Severiano Ribeiro. O aprofundamento da crise nos anos 1990 o obrigou a fechar a sala, ficando a cidade sem nenhum cinema até a abertura do Cariri Shopping. Recebeu ofertas de compra para transformar o espaço em Igreja, mas não aceitou. Entretanto, para não manter o imóvel ocioso, em 2010 ele projetava filmes pornográficos em vídeo. Segundo palavras de um amgo, só duas pessoas geralmente estão na sala, e uma era seu filho, Paulino, que iria lá só para fechar a porta. Já nas palavras do neto de Seu Expedito, só “veado” frequentaria o cinema.
Após conversar com Seu Expedito, fui ver o seu cinema abrir naquele sábado e contei quinze espectadores (todos homens) entrando no início da única sessão do dia, às 19h, sendo recebidos por Paulino, filho de Expedito. Os ingressos custavam R$ 5,00 (R$ 2,00 a meia entrada), um pouco mais barato do que as salas do shopping. Os filmes pornográficos eram exibidos em DVD, numa projeção em vídeo bastante precária. Pude conhecer naquela noite a cabine de projeção, onde além dos projetores desmontados e racks de som abandonados, sobreviviam alguns rolos de pontas e trailers dos anos 1990. Se Leo Enticknap, em seu excelente livro Moving Image Technology (2005), indica que a projeção cinematográfica com arco voltaico deixou de ser utilizada na década de 1950, substituída pelas lâmpadas incandescentes, é possível perceber, inclusive pela quantidade de bastões de carvão novos esquecidos no Cine Eldorado, que esse sistema de projeção permaneceu sendo utilizado em muitas salas do interior do Brasil certamente até a década de 1980.
No domingo pela manhã, último dia em que eu estaria na cidade, Paulino, filho de Seu Expedito, permitiu que eu conhecesse o interior da sala onde ainda existiriam documentos e filmes da época áurea das empresas de seu pai, reunidas naquela útlima sala. Encontrei um espaço abandonado, mas cheio de tesouros, como pilhas e pilhas de cartazes e foto-cartazes de filmes dos anos 1970 e 1980. Paulino permitiu que eu levasse alguns deles para o Rio de Janeiro como forma de divulgar os tesouros escondidos em seu cinema. Recolhi alguns exemplares de cartazes raros (mas geralmente duplicados) de filmes brasileiros que já foram doados para o acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dentre os cartazes de alguns sucessos dos Trapalhões (Os trapalhões nas Minas do Rei Salomão, 1977), Zé do Caixão (Estranha Hospedaria dos Prazeres, 1976, ou Inferno Carnal, 1976) e sobretudo daqueles estrelados pelo cantor Sérgio Reis (Mágoa de Boiadeiro, 1978, Os Três Boiadeiros, 1979, O Filho Adotivo, 1984) encontrei pelo menos três raridades que, pelo que pude constatar, não existiam sequer nos acervos da Cinemateca Brasileira e da Cinemateca do MAM, os dois maiores arquivos de documentação correlata sobre cinema brasileiro do país:
1)O cartaz original de Aguenta o Rojão, em ótimo estado, e ainda uma foto de porta de cinema do ator Reginaldo Faria nesse filme, um de seus primeiros trabalhos em cinema.
2)O cartaz do filme Secas e Molhadas (1975), de Mozael Silveira, pornochanchada carioca que é um clássico exemplar da produção do Beco da Fome do Rio de Janeiro.
3)O cartaz do grande sucesso Coisas Eróticas 2 (1984), cujo título foi alterado para parecer um filme americano intitulado Private 25. Mas pelo nome do diretor, Raffaele Rossi, percebi que tratava-se de um filme nacional e pude identificar o título original olhando o cartaz pelo verso, contra a luz.

Além de muitos outros cartazes e fotos, permanece no Cine Eldorado um outro tesouro talvez ainda mais importante: toda a documentação financeira e administrativa das empresas de Expedito Costa, como borderôs das salas de cinema e notas fiscais das distribuidoras. Num momento de interesse pela história econômica do cinema brasileiro (exemplificado pela série de livros editada por Alessandra Meleiros), trata-se de uma documentação primária que pode fornecer subsídios fundamentais para uma análise mais rigorosa da inserção do filme nacional no mercado cinematográfico nos anos 1970 e 1980.
Mas ainda havia uma outra surpresa: em uma outra sala, fechada por uma porta cujo cadeado não era aberto havia uns dez anos (cuja chave demoramos quase uma hora para achar), estavam dispostos latas e mais latas de filmes. Não tive tempo e nem condições de verificar o conteúdo delas, alguns em péssimo estado (já melados, por exemplo), mas grande parte ainda em razoável condição (o cheiro de vinagre nem era tão forte, pois o local era suficientemente ventilado). Pelo que me foi possível constatar, grande parte dos filmes parecei ser estrangeiro, com títulos como Dio, come ti amo (dir. Miguel Iglesias, 1966) ou trechos de relançamentos de comédias do Gordo e Magro ou faroestes. Porém, vi rolos identificados como Os Três Mosquiteiros Trapalhões (dir. Adriano Stuart, 1980) ou Atrapalhando a Suate (dir. Dedé Santana, 1983) – esse último que lembro de ter visto, quando criança, no Cinema Carioca, na Praça Saes Peña, na Tijuca, em meados dos anos 1980. Esse filme foi feito durante o racha no quarteto dos Trapalhões, sendo estrelado apenas pelo Dedé, Mussum e Zacarias. Nas minhas recordações de criança, era um dos filmes mais engraçados que já tinha visto na vida (até hoje acho ainda que é o melhor filme do grupo). De qualquer forma, em relação aos dois filmes, mesmo que seus negativos estejam bem preservados (o que não sei se é o caso), a existência de cópias originais em 35mm da época de lançamento não deve ser desprezada.
Há perspectivas da transformação do Cinema Eldorado em Centro Cultural, Escola de Cinema ou Teatro, mas segundo Seu Expedito, se isso não ocorrer nos próximos meses, ele irá fechar o cinema e transformá-lo em estacionamento, uma vez que se localiza no movimentado centro de Juazeiro. O que não pode acontecer é deixarmos que vá para o lixo ou se perca de alguma forma o precioso tesouro que permanece até hoje esquecido nas entranhas de seu cinema.

14 comentários:

Pedro de Luna disse...

que historia fantástica, rafa! parabens!

Alice Gonzaga disse...

[enviado por e-mail por Alice Gonzaga]
Olá Rafael,
Foi a primeira transação cinematografica que fiz. Me lembro dele, na porta de serviço de meu apartamento (onde moro até hoje) num fim de tarde de um domingo, sem avisar, com dinheiro vivo, e querendo cópias em 16mm do "O Ébrio". Claro que vendi. Ainda tenho comigo o contrato que fizemos, nos arquivos, pois depois que você me entregou o documento, eu fui pesquisar e achei fácil a documentação. Quando Expedito Costa me devolveu anos depois algumas cópias, elas vieram com selo da Cinematográfica Aquarius. Olha quanto estas cópias rodaram.!!! Por isso digo sempre que foram muiiiiiiiiiiiito mais de 8 milhões de espectadores que assitiram a O Ébrio. Quando o Hernani andou lá por Campina Grande, tinha sugerido a ele de procurar este senhor para ver se ainda estava vivo, pois seria uma boa conversa. Ainda bem que o Rafael o encontrou por acaso e trouxe este excelente depoimento.
Alice Gonzaga

Paulino disse...

Jóia, a sua matéria. Quando voltar ao Juazeiro, nos visite. Tudo de bom. Abraço.

Cinecasulófilo disse...

Rafael, muito bom o texto. Histórias como essas precisam ser mais registradas...Mas dá uma coisa na gente em ver o abandono do nosso cinema... Abs, Marcelo Ikeda.

nati disse...

Rafa, um pouco triste, mas muito bonita a história. Será que há algo que possamos fazer? Qual seria a saída? Dá um certo aperto no coração...
Um bjo!

. disse...

Oi Rafael, me chamo Salomão e estou produzindo um curta sobre o Cine Eldorado.

Consegui salvar boa parte do acervo com o aval do ˜Seu Expedito˜. Trouxe o material para Fortaleza e estou catalogando os cartazes e stills.

Gostaria da sua autorização para a publicação desse texto no site do projeto, junto com as imagens do que já está catalogado.

Agradeço a atenção,
Abs!

Rafael de Luna disse...

Olá.
Mande um e-mail para conversarmos: rafaeldeluna@hotmail.com

Abs

rafael

Isaac Linhares disse...

Rafael, também tive a oportunidade de conhecer Seu Expedito. Trago péssimas novas. o cinema que era um Eldorado por aqui, e já esteva depredado nessa matéria, vai virar estacionamento... Entrei naquele cine, por mais depredado que estivesse, eu fiquei apaixonado. Espaço enorme que não foi aproveitado. Pena...

Rafael de Luna disse...

Oi, Isaac. Obrigado por dar esta notícia. Realmente, é uma lástima esse cinema ir abaixo...

José Eldo Elvis disse...

Essa matéria feita semana passada acrescenta mais dados sobre o assunto.
http://www.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fg1.globo.com%2Fvideos%2Fceara%2Fv%2Fcinema-de-juazeiro-do-norte-vai-virar-estacionamento%2F1669667%2F%23%2FCETV%25201%2FJuazeiro%2520do%2520Norte%2F20111020%2Fpage%2F1&h=DAQHuh7MaAQE1Be5Yfw74w9qiWe1KsclnY_IZHDNlKiup6g

dukke disse...

vamos fazer um manifesto pelo amor de deus, não deixem esse cinema ir abaixo, tudo tudo, menos um estacionamento please please!

=**
dukke

Rômulo Azevêdo disse...

Conheço o homem de cinema Expedito Costa. Foi um grande exibidor/distribuidor na Paraíba.
Aqui em Campina Grande ele manteve durante muitos anos, o cine Arte localizado no populoso bairro de José Pinheiro.
O cine Arte exibia filmes na bitola de 16m/m.
Quando Alice Gonzaga esteve aqui na cidade em 1994, para as comemorações dos 60 anos do cinema Capitólio(hoje extinto)Expedito esteve com ela.
Na ocasião foi exibida uma cópia colorizada(muito ruim) de "O Ébrio".
Expedito foi pioneiro de exibição em várias cidades nordestinas perdidas pelo meio do mundo.
Bastava ter um salão que ele trazia a tela, o projetor e os filmes e improvisava uma sala.
No final da década de 1960, criou uma sessão de cinema de arte no cine Arte, em convênio com o cineclube de Campina Grande.
Exibindo filmes como "O bandido Giuliano", "O processo","O picolino" e muitos outros.
Merece uma biografia(ou seria uma "cinebiografia"?)

Rafael de Luna disse...

Prezado Rômulo,
Muito obrigado por seus comentários. A história de Expedito - e da distribuição e exibição de filmes na Paraíba e Ceará - realmente merece ser estudada e aprofundada.
Um abraço,
Rafael de Luna

José Eldo Elvis disse...

na noite de quarta-feira, 21 de julho de 2021, comentei sobre esse seu texto. Ainda hoje ele ecoa desde a primeira vez que o li. Fico feliz que você mantém o blog até hoje.
José Eldo Elvis