segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Eu e a Cinemateca Brasileira: um relato pessoal

Eu já ouvi comentários através de amigos e de desconhecidos, recentemente ou há anos atrás, de que eu era considerado um “inimigo”, um “desafeto” ou um “adversário” da Cinemateca Brasileira. São comentários vindos, principalmente, de pessoas que não me conhecem bem ou não me conhecem em nada. Considero isso uma tremenda bobagem, no mínimo. Como historiador e preservador do cinema brasileiro, eu amo a Cinemateca Brasileira e seu acervo. Utilizei sua vasta e preciosa documentação desde o meu mestrado e, sempre que estou em São Paulo, visito sua biblioteca. Já exibi cópias de filmes de suas coleções em diversas aulas e eventos ao longo de duas décadas. Admiro e respeito profundamente a história da instituição. Justamente por amar a Cinemateca Brasileira é que eu fui, ao longo de anos, abertamente crítico a certas práticas, iniciativas e ações tomadas pelos seus gestores, quando achei que elas eram prejudiciais à instituição e sua missão (fosse em 2009, em 2012, em 2019, ou qualquer outro ano). Criticar o que merece ser criticado nas ações de quem esteja à frente da Cinemateca Brasileira não é ser inimigo dela, muito pelo contrário, é defender a Cinemateca Brasileira. E eu defendo a Cinemateca como a instituição pública que ela, há 40 anos, é. E que por ser uma instituição pública, deve se pautar pela impessoalidade, moralidade, eficiência e legalidade. Eu defendo a Cinemateca Brasileira como uma instituição que atua na preservação audiovisual, visando, acima de tudo, a salvaguarda e o acesso ao seu acervo – para todas e todas, da geração atual e futuras, sem distinção. Não podia e continuo não podendo aceitar, impassível, se uma instituição pública de preservação audiovisual deixa de priorizar, havendo recursos para tal, ações fundamentais para a conservação dos itens mais preciosos de seu acervo. Não podia e continuo não podendo aceitar se uma instituição pública de preservação audiovisual deixa de permitir o acesso para quem deseja ou precisa utilizar seu acervo por motivos obscuros ou obscenos. Não podia e continuo não podendo aceitar se uma instituição pública de preservação audiovisual faz escolhas curatoriais, editoriais ou contratuais por amizade ou compadrio ao invés de reconhecida capacidade, talento ou experiência.  Não podia e continuo não podendo aceitar se uma instituição pública de preservação audiovisual age como uma empresa privada, priorizando o lucro acima do interesse público. Na pior fase de sua longa e turbulenta história, durante o governo Bolsonaro, quando a Cinemateca Brasileira esteve fechada e sem funcionários, ajudei a denunciar internacionalmente a situação, escrevendo para o blog e participando da criação de textos em inglês que permitiram que, ao redor do mundo, mais pessoas soubessem do atentado contra a instituição. Ao longo de minha vida profissional, aprendi com grandes funcionários da Cinemateca Brasileira, como Fernanda Coelho, Carlos Roberto de Souza e Francisco Mattos, e fui beneficiado por algumas de suas mais importantes iniciativas, como os cursos e seminários abertos à comunidade de preservadores audiovisuais, oferecidos no início dos anos 2000. Trabalhei junto com a Cinemateca Brasileira quando idealizei e fui o curador da primeira retrospectiva integral da produção do estúdio paulista Maristela, patrocinado pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 2011. Por meio dessa retrospectiva, financiamos a feitura de cópias novas, em 35mm, de alguns raríssimos filmes realizados nos anos 1950 que foram exibidos no evento e, depois, incorporados ao acervo da instituição. Minha defesa e valorização da instituição nunca me fez, porém, deixar de criticar quando achasse que erros e desvios estavam sendo cometidos. E sofri retaliações. Quando quis organizar o lançamento em São Paulo de meu livro “Cinematographo emNictheroy: história das salas de cinema de Niterói”, publicado em 2012, tive singelamente “recusada” a possibilidade de fazê-lo na Cinemateca Brasileira, mesmo se outros livros de cinema, de autores “amigos”, tivessem sido lançados normalmente lá nas semanas anteriores. O motivo? Nunca me foi dito claramente. Os comentários nunca são diretos. Ainda assim, apesar de alguns olhares desconfiados e da reação constrangida de uns poucos, nunca deixei de entrar e frequentar a Cinemateca Brasileira de cabeça erguida – a instituição é pública e não tem donos, apesar de alguns desejarem ou pensarem ser. Atualmente, acredito que, apesar da tragédia recente, a situação institucional da Cinemateca Brasileira é a melhor em muitos anos. Como especialista da área, fui convidado a participar da comissão de avaliação e acompanhamento do contrato de gestão da Secretaria do Audiovisual com a Sociedade Amigos da Cinemateca, entidade privada sem fins lucrativos responsável pela gestão da instituição. Trata-se de um trabalho complexo e árduo que eu e meus colegas realizamos voluntariamente – estritamente de forma voluntária, reitero. Não ganhamos um centavo sequer para ler, discutir e avaliar os volumosos relatórios de gestão, o cumprimento das metas e a adequação dos indicadores. O relatório da comissão que integro foram recentemente tornados públicos, no site do Ministério da Cultura, permitindo que qualquer brasileiro possa também acompanhar e fiscalizar o contrato e as ações da O.S. Essa é a tal transparência que eu vinha defendendo há tantos anos. Aliás, nunca recebi um real que fosse de nenhum projeto ou de nenhuma diretoria da Cinemateca Brasileira, mesmo quando milhões de reais atravessavam alegremente o caixa da instituição. Talvez isso tenha causado estranhamento em algumas pessoas que me viam enfrentar, então, poderosos mandachuvas. Apesar de sua origem, em meados do século XX, numa época de instituições personalistas, a Cinemateca Brasileira não me odeia, não me vê como inimigo, pois é uma instituição que não tem dono, nem nunca teve. Quem talvez tenha manifestado e ainda manifeste essa opinião sobre mim é quem vê na Cinemateca Brasileira, sobretudo, um espaço de disputa e conquista de poder. Azar. Essas pessoas passam. A Cinemateca Brasileira fica. E é isso que importa.




Fotografias de minha primeira passagem pela Cinemateca Brasileira, no curso de duas semanas de duração, para técnicos de arquivos de filmes, em dezembro de 2003 - exatos vinte anos atrás. Fotografias tiradas, digitalizadas e compartilhadas pelo colega Marcus Alves



Um comentário:

João Luiz Vieira disse...

Muito bom texto em defesa, uma vez mais, de nossa principal e mais importante instituição de guarda e preservação do cinema brasileiro. E reiterando aqui o recente título da mostra itinerante que circula pelo pais: a Cinemateca É Brasileira, é de todos nós!