segunda-feira, 29 de março de 2010

Os críticos e a projeção cinematográfica

Alguns críticos mais atentos têm chamado a atenção para a questão dos problemas dos filmes exibidos no circuito comericial no formato digital (ou eletrônico) e já publicamos aqui uma carta aberta redigida em 2009 sobre esse ponto. Destacamos dessa vez um comentário do crítico e realizador Eduardo Valente retirado da revista virtual Cinética, de março de 2010, sobre essa mesma questão no que tange ao circuito cultural, um tema pertinente e bastante atual. Vale aqui complementar os comentários de Valente que o que ocorre atualmente é uma adaptação às circunstâncias. Alguns centros culturais só tem aprovado projetos de mostras com um teto de orçamento que inviabiliza arcar com custos de publicação de catálogo, realização de debates e sobretudo exibição de boas cópias em película (que incluem gastos com pesquisa, aluguel de cópia, transporte, revisão etc). O resultado é que para terem projetos aprovados (e sustentarem suas empresas), os produtores vêm passando a propor projetos que eliminam esses custos, mas sustentam-se no prestígio do nome do cineasta ou da cinematografia que pretende representar - mesmo que por meio de um DVD qualquer. A lógica "bancária" é: para que gastar 90, 100 ou 140 mil reais com uma Mostra sobre Alain Resnais, Robert Altman ou Marguerite Duras, se posso bancar uma mostrinha sobre Maya Deren ou Nobuhiro Suwa por 30 ou 40 mil? A diferença quem nota é o espectador. E como ele não é bobo, o resultado são salas vazias.

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Quando esta seção foi criada na revista, a idéia nunca foi simplesmente reproduzir releases de mostras e eventos audiovisuais, servindo como um mural de acontecimentos, mas sim chamar a atenção para algumas das muitas que acontecem hoje em dia pelo Brasil, dentro de uma visão bem pessoal de quem escreve a nota do porquê esta ou aquela mostra é interessante. Também era nossa vontade refletir um pouco, ao fazer esse trabalho, sobre algumas questões que a produção destas mostras colocam em pauta por aqui. Nesse sentido é que a sequência de algumas mostras recentes ou em exibição nos permite aqui tratar de um assunto para além delas, que é a questão da exibição de filmes em cinemas e sua relação com a ideia mesmo do que é ou não aceitável nesse momento de plena transição da película para o digital.

Neste momento, por exemplo, três mostras dedicadas a obras de cineastas estrangeiros ocupam os espaços de exibição alternativos cariocas. No Instituto Moreira Salles, entre os dias 5 e 21 de março, está sendo organizada uma mostra com 15 longas do polonês Andrzej Wajda. Embora não seja uma retrospectiva completa, é uma mostra que cobre os principais títulos da carreira do diretor, incluindo-se aí O Homem de Ferro, O Homem de Mármore e Cinzas e Diamantes, para ficarmos em três títulos. Dos 15 títulos da mostra, 9 passam em 35mm e 6 em digital, sendo que cada um dos formatos está devidamente identificado aqui. O IMS começou há menos de um ano a funcionar como sala de repertório, seguindo um modelo francês do termo, propondo mostras e sessões especiais com curadoria própria. Para isso se utiliza em grande parte das coleções de filmes existentes no Brasil (limitadas, mas em casos como o de Wajda, melhor fornidas), e exibe em digital com um projetor 2K de ótima qualidade.

Já os centros culturais preferiram focar neste momento a obra de cineastas pouco conhecidos/vistos no Brasil, criando assim o que seria uma boa dinâmica. É o caso da mostra dedicada à cineasta alemã Monika Treut, que está no CCBB-Rio entre 2 e 14 de março (seguindo depois para SP entre 10 e 21 de março). Se Treut não é exatamente um nome decisivo no cinema mundial, ainda assim inegavelmente tem sua importância relativa a questões como a da identidade sexual. A mostra segue a tendência recente no CCBB (particularmente o carioca) de focar-se na obra completa de um(a) cineasta (neste caso, composta de dez longas e quatro curtas), e exibe praticamente todos os filmes em 35mm – sendo que a maior parte das exceções são filmes realizados diretamente em vídeo. Algo bem distinto, portanto, do que aconteceu recentemente com a mostra de filmes do japonês Nobuhiro Suwa na Caixa Cultural. Ainda que Suwa seja nome hoje muito mais central na cinematografia mundial, a mostra limitou-se a exibir em DVD quatro de seus cinco longas (mesmo anunciando-se completa no seu trabalho ficcional).

A partir daí colocam-se, então, alguns problemas. O primeiro deles é que, embora a passagem majoritária para o digital seja uma realidade incontornável no panorama do cinema, há digitais e digitais. E nem o projetor do CCBB nem o da Caixa Cultural podem exatamente serem considerados modelo de projeção no formato. O que se tem ali não atende a qualquer critério minimamente rigoroso de qualidade de projeção, tornando ainda mais problemático o fato de se passar filmes originalmente pensados em outros formatos como o 35mm (mas mesmo os filmes em digital não têm sua melhor exibição). Outro problema é que há inúmeros formatos de lançamento dos filmes em digital, e o simples ato de conectar um DVD a um projetor de baixa qualidade é certamente o pior deles. Finalmente, há que se considerar que filmes como os de Suwa hoje estão disponíveis na web com qualidade de DVD para pessoas baixarem e verem em casa. Assim sendo, qual o sentido real de mostrá-los num projetor fraco numa sala de cinema? A idéia de que este ato coloca o espectador em contato com a obra de um cineasta desconhecido é nobre, mas a que custo? Mal comparando, seria como uma instituição cultural destas anunciar a retrospectiva de algum pintor, e colocar na parede apenas reproduções em fac-símile dos seus trabalhos. Interessante como esta hipótese seria considerada absurda por qualquer destes espaços ao falar em artes plásticas, mas o mesmo não se aplica ao cinema, não?

E já que falamos em custo, entra aí o segundo ponto complicado: tanto o CCBB como a Caixa Cultural trabalham com editais de ocupação do seu espaço. São escolhidos uma série de eventos para ocupá-los, os quais são organizados com orçamentos pagos pelas entidades. No entanto, nós estamos vendo da parte dos produtores culturais (e mais ainda dos centros) uma falta de critério total sobre o que constitui de fato uma mostra digna deste nome. Pois a mesma Caixa Cultural que produz eventos totalmente exibidos em DVD de obras não produzidas em digital, como foi o caso da mostra de Suwa ou da exibição de alguns filmes de Maya Deren no ano passado, é a que também nos deu em 2009 uma retrospectiva quase completa em película das obras de Marguerite Duras, (muito mais numerosas que as de Suwa); ou uma mostra de parte mais que relevante dos trabalhos de Stan Brakhage exibidos em seu formato original (16mm), com a presença do responsável americano pela difusão da mesma, comentando e apresentando cada sessão dos filmes.

A impressão que fica, no fundo, é que para a Caixa às vezes não importa muito o que é feito em termos práticos, mas tão somente ocupar o seu espaço, ficando a critério dos produtores estabelecerem o seu próprio conceito do que é ou não aceitável. Sabemos, diga-se, que na maioria das vezes o dinheiro oferecido pelas instituições para a organização dos eventos simplesmente não é suficiente para trazer obras de outros países no seu formato original (questão maior na Caixa do que no CCBB, até por este último contar com mais de um centro pelo Brasil, que às vezes dividem os custos dos eventos). No entanto, se é este o caso, ficam duas perguntas, uma para produtores e outra para as instituições. Para os produtores, que no geral sabem bem o quanto se está pagando atualmente pelas mostras: não seria melhor pensar eventos que efetivamente caibam nos gastos, para realizar mostras relevantes e com adequação às obras que foram produzidas? E para os centros culturais: não faria mais sentido, talvez, organizar menos eventos, com maior qualidade de realização?

Sim, porque sem dúvida há um público disposto a sair de casa para ver DVDs projetados sem maior qualidade. E é plenamente válido que os centros culturais supram o interesse deste público, e assim ocupem os seus espaços, até mesmo na maior parte do ano (afinal, a própria Cinemateca do MAM faz isso hoje – só que, e a diferença é grande nisso, anunciando bastante claramente o suporte de exibição que usará). O CCBB-Rio, por exemplo, ocupa no momento seu cinema 2 (um nome novo pro que continua sendo sua antiga “sala de vídeo”) com uma mostra de nome Mulheres Alucinadas, apenas com filmes exibidos em DVD/VHS – mas anunciados como tal, exibidos com entrada franca e todos disponíveis em coleção particular ou no mercado no Brasil. Ou seja, a mostra está ocupando a sala e dando retorno a um público, mas certamente é organizada a custo ínfimo – permitindo talvez que mais recursos sejam direcionados para ocupar a sala 1 com uma mostra significativa como a de Treut, ou as retrospectivas completas em película organizadas em anos recentes de obras numerosas como as de Resnais, Altman e Woody Allen. A questão final parece ser a da necessidade de pensar com inteligência, e acima de tudo respeito às obras, maneiras de otimizar os recursos que se tem em mãos, para assim ocupar espaços, comunicar-se com os públicos distintos, mas também ser relevante de fato no aspecto cultural/cinematográfico.
(Eduardo Valente)

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