domingo, 15 de abril de 2012

Cinemateca Brasileira afasta curador da Jornada Brasileira de Cinema Silencioso (ou Paulo Emílio deve estar se contorcendo no túmulo)

Fui acusado algumas vezes de leviano nas críticas que venho fazendo ao, digamos, "modo de gestão" da diretoria da Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo. Vide, por exemplo, o caso da compra do acervo da Atlântida, em 2009, ou o edital público de Restauração de filmes. Às minhas colocações era contraposta a inegável "eficiência" na captação de verbas e no aumento dos recursos para a instituição. Modernos "gestores" substituiram os antigos curadores, tidos como cinéfilos românticos inadequados aos novos tempos. Mas o fato é que as coisas estão indo de mal a pior naquele que foi transformada há alguns anos no orgão oficial de preservação audiovisual do governo federal (e parceiro na superação, muitas vezes suspeita, dos entraves da burocracia estatal para liberação ágil de recursos).
Quase toda a geração de funcionários de carreira responsável por construir a Cinemateca e transformá-la numa instituição de referência em preservação cinematográfica no Brasil está sendo desmantelada. Aqueles que seriam os herdeiros de Paulo Emílio - fossem de suas idéias, compromissos ou de seu amor e dedicação à Cinemateca - são hoje mal-vistos. A Cinemateca Brasileira tornou-se um arquivo que impressiona seus visitantes pelas suas instalações (ou pelo menos, por sua fachada) e seus conselheiros pelo volumoso relatório anual de realizações (valorizando muito mais a quantidade do que necessariamente a qualidade ou profundidade). Mas qual é, hoje, o papel social da Cinemateca Brasileira? Qual é sua marca ou personalidade? Se em anos anteriores ela teria o rosto de um intelectual como Paulo Emílio (numa época de cinematecas personalistas), no que ela se tornou? Quais são as consequências de sua atuação? Seu impacto cultural e intelectual é tão frio e pouco significativo quanto os relatórios de prestação de contas das empresas...
Talvez a sua única grande iniciativa recente no campo da reflexão cinematográfica - algo que deve estar inevitavelmente ligado à preservação audiovisual, já que uma Cinemateca não é um mero depósito - tenha sido a criação da Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. Tratava-se do único evento que, iniciado 2007, fazia algum cinéfilo ter vontade de ir a São Paulo - sobretudo por não haver um equivalente no Rio ou em outra capital. Nos moldes dos festivais de filmes de arquivo realizados ao redor do mundo, sempre tendo grandes pensadores e seus respectivos arquivos e cinematecas por trás, a Jornada... atendia aos sonhos dos cinéfilos brasileiros, maltratados por um cenário de projeções precárias, cópias ruins e curadorias medíocres.
À frente das cinco edições da Jornada..., utilizando seu cabedal intelectual e seu prestígio pessoal (o que garantia a presença de convidados de renome e o empréstimo de boas cópias de arquivos estrangeiros) estava Carlos Roberto de Souza, autor de vários estudos clássicos sobre cinema brasileiro e durante anos curador do acervo da Cinemateca.
Há alguns dias, o próprio Carlos Roberto postou em seu perfil no facebook, para a surpresa de seus amigos, que ele havia sido afastado do evento que ele mesmo criou. Plenamente identificado por toda a comunidade de historiadores, conservadores e pesquisadores de cinema com a Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, Carlos Roberto deixou de ter qualquer vínculo com a mostra da qual era o curador desde a primeira edição.
Como escreveu a atual Secretária do Audiovisual, Ana Paula Santana, na Apresentação do catálogo da V Edição, em 2011, a Jornada... está "definitivamente consolidada no calendário de São Paulo e [...] é atualmente referência dentro e fora do país".
Curadores são os responsáveis por pensar e isso é a maior ameça para os burocratas, movidos pela necessidade de agir e fazer. Ou melhor, por passarem sempre a impressão de que estão "fazendo". Mas qual seria a razão de mexer, digamos, "em time que estava ganhando?" Bem, satisfação pública não tem sido uma marca constante da arrogante direção da Cinemateca Brasileira nos últimos anos, apesar de ser uma instituição que deve, por sua natureza, prestar contas à sociedadede suas atividades e decisões.
Como curador da Retrospectiva Cinematográfica Maristela, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ, SP, DF), em 2011, tive sérios aborrecimentos com a Cinemateca Brasileira. Possuindo um laboratório "privado" (pois cobra - caro - por todos os seus serviços, apesar de ser mantido com recursos públicos), aliado a um acervo que cresceu exponencialmente às custas das dificuldades dos demais arquivos de filmes brasileiros, a Cinemateca Brasileria acumulou tal poder que se transforma em instrumento de pressão, quase de chantagem, contra todo e qualquer pesquisador ou produtor cultural que precise lidar com a memória cinematográfica no Brasil.
E qualquer pessoa que tenha trabalhado com a Cinemateca percebe que, apesar do esforço de vários de seus funcionários (terceirizados e com precário vínculo empregatício - trabalhando sempre "por projeto"), a aparência de presteza e eficiência é um efeito muito mais de marketing - este sim, muito competente. No mundo todo, sabe-se que não existe cinemateca "rica", pois o trabalho desse tipo de instituição sempre é muito maior do que as recursos (financeiros, pessoal etc) que ela consiga reunir, por maiores e melhores que eles sejam. Quando uma instituição como essa no Brasil orgulha-se de sua imagem de opulência, alguma coisa está errada ou as pessoas não estão vendo a realidade como ela é. Na pressa de não precisar mais se preocupar com algo tão espinhoso quanto a preservação do passado audiovisual, todo mundo deixa-se enganar. Afinal, cuidar de filmes antigos é um problema tão chato que se alguém chega e diz: "pode deixar que eu cuido de tudo", muitos querem mais é acreditar e nem pensarem mais sobre o assunto. No final de contas, ninguém quer ver é que o rei está nú.
Mas as reclamações de usuários da Cinemateca são constantes e, sem muito esforço, chegam frequentemente ao meu conhecimento. Porém, qualquer tentativa de questionamento é abafada, sufocada e aniquilada. Quem lembra da "Carta aberta à Cinemateca Brasileira", redigida por diversos pesquisadores e cineastas em 2010? Às custas de benefícios individuais (um favorecimento aqui, um emprego ali, um apoio acolá) ou principalmente do medo de represálias, a Cinemateca comprou o silêncio, contrangido ou não, da maioria. Afinal, hoje e em todo o país, quantos programas culturais - de apoios a cineclubes, publicação de revistas, manutenção de arquivos e produção de mostras - não dependem dos recursos da cada vez mais poderosa SAC? A Sociedade de Amigos da Cinemateca virou o S.A. da Cinemateca, uma instituição sem amarras instituicionais que movimenta milhões de reais de recursos federais.
A criatura cresceu e virou um mostro que devorou seus criadores ou aqueles que testemunharam, coniventes ou passivos, a transformação.
Eu sugeri no facebook um possível boicote a todo e qualquer evento da Cinemateca até Carlos Roberto ser recolocado à frente da Jornada. Infelizmente, do mesmo modo que a notícia de seu afastamento não me surpreendeu, sou muito cético a respeito de qualquer possibilidade de manifestação coletiva. Muita gente depende atualmente da Cinemateca Brasileira para se arriscar a confrontá-la. O arquivo de filmes que Paulo Emílio lutou para criar e consolidar desde meados do século passado cresceu muito nos últimos anos, mas algo extremamente importante parece ter se perdido irremediavelmente nesse caminho. Sua alma foi vendida. Adivinhem a troco de quê?

10 comentários:

Unknown disse...

Cara Rafael, sempre tão lucido em suas colocações. Parabéns pelo relato. Sugiro inclusive maior oprofundamento dessa questão juntos aos membros da ABPA. Abs, Teder

Anônimo disse...

Belo texto! Quem um dia trabalhou lá, sabe muito bem do que você esta falando! parabens pela iniciativa! texto compartilhado! abs

Anônimo disse...

Otimo texto! Trabalhei na Cinemateca e assino embaixo de absolutamente tudo que foi mencionado no texto. O conceito de ''progresso'' da Diretoria da Cinemateca está fazendo Paulo Emílio se revirar no túmulo.

Anônimo disse...

belíssimo texto. merece ser compartilhado pelos que tem coragem...

Marcos Saboia disse...

Rafael, muito bom o texto. Gostaria também de expressar meu temor de que este tipo de mentalidade "terceirizante" acabe contaminando outras instituições públicas, federais, estaduais e municipais.Muitas instituições públicas já seguiram este caminho.

Unknown disse...

Muito bom.

Não consigo imaginar o que poderia ser dito de leviano sobre o modo de gestão da diretoria da Cinemateca Brasileira.

Hélio seraphini Filho disse...

Olha meu caro fui gerente de sala de exibição ali de 2007 a 2009 sei bem o que voce esta falando pois passei na propia pele. O que mais me impressiona é porque os integrantes do conselho não conseguem enxergar o que é tão latente aos olhos de quem esta de fora? eles são cegos? ou não querem ver ?

maria disse...

A Jornada do Silencioso é realmente algo imprescindível. Vou à cinemateca com grande frquencia e de fato é um espaço que vem se transformando da pior maneira possível, haja visto a monstruosidade referente à diminuição vertiginosa do espaço consagrado ao estacionamento de veiculos ou a modificação da parada de onibus, em um local completamente ermo.
O numero de "eventos" realizados no local parecem ter transformado a Cinemateca em um desses salões a serem alugados para festividades. Volta e meia vejo pessoas no local que nada tem a ver com cinema. Que tristeza. Quanto ao pensamento crítico, formação de público, circulação de publicações,muito a desejar. Enquanto isso o CCBB bomba de público, não necessariamente cinéfilo, e a cinemateca fica meio as moscas...
Essa gestão deveria rever seus propositos, e o afastamento do curador da magnífica jornada poderia ser um dos primeiros assuntos em pauta.Lamentável, Maria Silvia Galante.

Anônimo disse...

Em partes concordo com a Maria. Porém o que falta no CCBB, é a estrutura e a organização. Do que adianta movimentar público e não ter estrutura,aquela sala de cinema é muito pequena. O evento do Bergman, foi uma demonstração de como há um imenso despreparo. Voltando a Jornada, acho que não devemos julgar o evento só pela mudança do curador(admiro muito o Carlos Roberto, entretanto sou contra a essa mania de imortalizá-lo apenas pela criação da Jornada e vejo muitos cometendo este equívoco). Fiquei sabendo que o novo curador é um lunático de "esquerda", um fantoche do dono de botequim.


Paulo Fraga

Anônimo disse...

Ótimo texto! Trabalhei na Cinemateca e sei que o afastamento do Carlos Roberto da Jornada é, na verdade, apenas a gota d'água. Já faz tempo que os funcionários mais antigos (estes que você cita) estão sendo colocados para escanteio, pois, como não podem ser demitidos (são funcionários públicos), foram sendo deixados de lado dentro da instituição. Sabe-se da rixa do Carlos Roberto com a diretoria e de como ele vinha sendo afastado de projetos importantes (publicações de livros, por exemplo) para dar lugar a "pesquisadores" ligados a membros desta mesma diretoria e que conseguiram tais regalias por meios bastante duvidosos (para não dizer inescrupulosos). Não me surpreende ver o nome de um deles ao qual me refiro nos créditos da Jornada na tal "equipe de concepção".