terça-feira, 24 de maio de 2011

A frágil arte do filme

Esta tradução do inglês do clássico texto de Raymond Borde, publicado na revista Correio da Unesco, de agosto de 1984, foi gentilmente enviada para o blog pela colega Silvia Franchini. Agradecemos essa importante colaboração, uma vez que "A frágil arte do filme" é um texto sintético e que resume várias questões importantes, traçando uma história resumida da preservação cinematográfica no mundo e da trajetória dos arquivos e cinematecas ao longo do século XX. Por ser um texto escrito há quase trinta anos, algumas considerações podem ser feitas em sobre seu conteúdo. Em relação ao cinema silencioso, já se aventa que muito da perda dos filmes não se deveu a destruições deliberadas, mas ao número relativamente pequeno de cópias que eram feitas e que, sendo compradas e não alugadas como depois se consolidou, eram projetadas pelos seus proprietários até se esgarçarem completamente. Por outro lado, os filmes que fazia mais sucesso demandavam a feitura de dezenas de cópias que, por sua vez, antes da existência de materiais intermediários, literalmente "acabava" com os negativos.
Artigos recentes também têm "redimido" o nitrato, geralmente visto como o grande vilão da preservação do cinema, mas que, diante da instabilidade do acetato (sobretudo no que se refere aos corantes), tem surpreendido muitos arquivistas por sua estabilidade. O mais significativo texto talvez seja "Mea culpa; or, How I Abused the Nitrate in My Life", de Sam Kula.
De qualquer modo, o texto de Borde permanece como uma referência importante e um grande acréscimo para o blog. Boa leitura.


A frágil arte do filme

por Raymond Borde*

tradução de Silvia Franchini*

O cinema é uma arte frágil. Antes do estabelecimento das primeiras cinematecas, ele sofreu graves perdas e permanece vulnerável à uma imprudente destruição de negativos e cópias.

A dimensão dessas perdas é horrível. Há razões para acreditar que mais da metade de todos os filmes realizados pelo mundo no período entre a invenção do cinema em 1895 e 1950 desapareceu. Há variações de um país para outro; mas tendo em conta a história do cinema como um todo, as variações nos métodos de produção, a evolução do mercado e o avanço técnico na conservação do filme, esta é uma razoável estimativa da proporção de perdas entre o período em que a destruição era comum e a época atual em que a conservação é uma preocupação prioritária. Ela fornece esmagadora justificativa para a convocação de uma política mundial para a salvaguarda de "imagens em movimento".

A razão fundamental para estas perdas pode ser encontrada na própria natureza dos filmes, que são simultaneamente uma forma de mercadoria e objetos de valor cultural. Durante meio século, os critérios comerciais predominaram. Produtores simplesmente destruiram filmes antigos que estavam desatualizados, perderam sua popularidade ou, por razões técnicas, não eram mais comercializáveis. A idéia que imagens em movimento fazem parte do patrimônio cultural foi desenvolvida lentamente, graças aos esforços de historiadores e daqueles que abriram os caminhos para as primeiras cinematecas.

A primeira onda de destruição em massa ocorreu por volta de 1920. A principal vítima foi o assim chamado cinema "primitivo" – o cinema de feira e de casas de entretenimento popular. Pantomimas, espetáculos, um ou dois rolos de melodramas e perseguições cômicas cheias de efeitos especiais que encantaram o público foram os primeiros a ser descartados, mas os primeiros "filmes de arte" do período que precede imediatamente a Primeira Guerra Mundial, que procurou dar ao cinema um status comparável ao do teatro, também sofreu o mesmo destino.

Os gostos mudaram. Depois de 1918 filmes tornaram-se mais ambiciosos, mais realistas, e duravam em média uma hora e meia. Atores de qualidade substituiram os lúdicos artistas dos anos pré-guerra e direção de filmes tornou-se uma arte em si. Houve uma completa ruptura com o passado, com o cinema "antigo" como era chamado desdenhosamente. Distribuidores correram para se livrar de seus estoques de filmes sem valor comercial, vendendo os a comerciantes que lavavam os para recuperar os sais de prata contidos na emulsão.

A mesma coisa acontecia em todo lugar. O American Film Institute estimou que oitenta e cinco porcento dos filmes realizados nos Estados Unidos entre 1895 e 1918 desapareceram dessa maneira. Os números são semelhantes na França, Itália e nos países escandinavos. As obras de Georges Meliès e Ferdinand Zecca foram muito atingidas, mas os primeiros filmes de Abel Gance, Mauritz Stiller e Victor Sjoestrom não foram poupados também. Esta faxina geral foi como uma vingança.

A segunda onda de destruição, quase tão indiscriminada como a primeira, ocorreu por volta de 1930 com a transição do mudo para imagens sonoras. O cinema passou por uma mudança radical. No que diz respeito a película propriamente dita, a bitola padrão permaneceu 35mm, mas a imagem foi reduzida no tamanho para dar lugar a trilha sonora. Projetores foram substituídos ou modificados. Fala, música e opereta invadiram a tela. Uma nova geração de atores provenientes do teatro substituíram as estrelas de cinema que poderiam fazer mímica, mas não falavam suas partes.

Em dois anos, a indústria do cinema em todo o mundo descobriu-se com enormes estoques de filmes rejeitados em suas mãos que foram empacotados e entregues para vendedores de sucata. Estatísticas globais a respeito das perdas de filmes da década de 1920, a idade de ouro do cinema silencioso, não existem, ou restam por ser compiladas, mas estimativas aproximadas colocam essas perdas em oitenta porcento para a Itália, setenta e cinco porcento para os Estados Unidos e setenta porcento para a França. Em países onde cinematecas nacionais foram criadas a tempo de preservar pelo menos um negativo ou cópia os números são relativamente menores (quarenta porcento na Alemanha e dez porcento na URSS).

Sejam qual for os números exatos, essas perdas catastróficas tiveram o efeito de alertar a opinião pública e lançar a idéia das cinematecas. Jornalistas e escritores assumiram a causa e, embora reconhecessem que havia restrições econômicas, argumentaram a favor da conservação dos produtos da indústria como parte do patrimônio cultural.

A terceira onda de destruição ocorreu muito mais recentemente, no ínicio da década de 1950. Até então, a tira fina de plástico utilizada como suporte para a emulsão sensível à luz onde as imagens em movimento são registradas era feita de nitrato de celulose (celulóide) uma substância altamente inflamável e perigosa. Quando diversos governos proibiram o uso de nitrato de celulose, todos os fabricantes mudaram o suporte para o acetato de celulose não inflamável conhecido como "filme de segurança".

Naquele momento, no início da decada de 1950, ainda não se tinha percebido que os filmes antigos de qualquer espécie podiam um dia adquirir valor renovado como material para programas de televisão ou como foco de mostras retrospectivas em salas de cinema avant-garde ou experimentais. Obras-primas foram preservadas, mas os filmes sem nenhuma qualidade especial que parecia ter tido os seus dias foram descartados. Em alguns países o deposito de filmes de nitrato em arquivos nacionais foi incentivado, mas a taxa de destruição permaneceu elevada. Aqui novamente, as estatísticas globais a respeito do total da produção cinematográfica entre 1930 e 1950 (o período entre a chegada das imagens faladas e a substituição do nitrato pela película de acetato) são falhas, mas estima-se que alguma coisa entorno de trinta porcento de todos os filmes desse período foram perdidos.

Por enquanto nós falamos de perdas que podem ser atribuídas à negligência humana ou à considerações comerciais de rentabilidade. Mas também as leis da química têm sido responsáveis pelo desaparecimento de muitos filmes. Filme de nitrato é instável e gradualmente decompõe-se. Filmes coloridos desbotam e perdem sua harmonia e equilíbrio cromático causados pelas reações químicas entre as três substâncias básicas de coloração. Vítima da negligência humana, o cinema também está sob uma espécie de maldição técnica que o torna uma das mais ameaçadas das artes. Conseqüentemente, o papel do químico tornar-se determinante na salvaguarda desse elemento do patrimônio cultural.

Esta operação de resgate constitui a substância da longa história das cinematecas e arquivos de filmes. Já em 1898, um cinegrafista polonês, Boleslaw Matuszewski, publicou em Paris, um panfleto intitulado Une Nouvelle Source d'Histoire (Uma Nova Fonte de História), onde ele propôs a criação de um museu do cinema para que as imagens em movimento com interesse histórico, educacional, industrial, clínico e artístico pudessem ser preservadas. O objetivo de Matuszewski era de transmitir às futuras gerações a autêntica imagem de sua própria época, a idéia era fixar num arquivo oficial o depósito legal das obras cinematográficas que também estaria autorizado a aceitar filmes na forma de doações, legados ou na base de troca. A prioridade seria dada à conservação de negativos e o arquivo seria aberto ao público.

O projeto era a frente de seu tempo e não se concretizou. Trinta e cinco anos se passaram antes da profética mensagem de Matuszewski fosse resgatada do esquecimento.

É verdade, porém, que até o final da era do cinema silencioso coleções foram construídas em vários países, mas sua finalidade era utilitária. O objetivo não era preservar as obras cinematográficas como tal, mas sim montar várias categorias de filmes para uma finalidade específica. Ela poderia ser militar (como no caso das coleções do British War Museum, em Londres, B.U.F.A. em Berlim e o Section Cinématographique do exército francês, em Paris); religiosa (a coleção do abade Joye, em Basileia); legal (a coleção da Library of Congress nos Estados Unidos, preservada para fins de direitos autorais, e a Gaumont, Pathé, Metro-Goldwyn-Mayer e outros arquivos de estúdio); educacional (o arquivo soviético de cinema documentário, criado em 1926); ou mesmo filosófica (a coleção de Albert Kahn, em Paris).

Ninguém até 1933 foi oficializado como o primeiro arquivo de filmes no sentido moderno do termo – uma instituição que tem como função principal a salvaguarda das imagens em movimento como parte do patrimônio cultural. Como foi a Sveska Filmsamfundet, criada em Estocolmo por um grupo de cinéfilos que ficaram chocados com a destruição maciça dos filmes mudos. Esta modesta iniciativa provou ser um marco na história dos arquivos fílmicos. Em outros países coleções de filmes logo foram organizadas:

  • em 1934, em Berlim (o Reichsfilmarchiv), e em Moscou (a cinemateca da escola de cinema V. G. I. K.);
  • em 1935, em Londres (o National Film Library), Nova Iorque (a cinemateca do Museu de Arte Moderna) e Milão (a coleção Mario Ferrari, que mais tarde tornou-se a cinemateca italiana);
  • em 1936, em Paris (a Cinemateca Francesa);
  • em 1938, em Bruxelas (a Cinemateca Belga).

O mesmo ano, 1938, viu a criação da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF), que no início só tinha membros em Berlim, Londres, Nova Iorque e Paris, mas deu uma forma internacional para a nova consciência e o ideal comum. Também o público começava a descobrir, graças às mostras retrospectivas dos primeiros filmes, que o cinema já tinha uma história cultural e que ela pertencia ao patrimônio artístico da humanidade.

Após a Segunda Guerra Mundial, este movimento ganhou força e a onde quer que exista uma tradição cinematográfica nacional cinematecas nacionais foram criadas. Hoje, FIAF compreende setenta e duas instituições em cinquenta países, e a tendência parece irreversível. A Recomendação para a Salvaguarda e Preservação das Imagens em Movimento, adotada pela Conferência Geral da UNESCO em 1980, também está dando frutos. Os países em desenvolvimento estão mostrando um firme e crescente interesse na preservação e utilização para fins culturais dos filmes e outros materiais audiovisuais do passado.

Ao mesmo tempo, o próprio conceito de filme de arquivo evoluiu. Os pioneiros de 1930 eram pessoas determinadas e seus gostos e preferências coloriram seus julgamentos na seleção de títulos para preservação. Eles se comportavam mais como colecionadores do que arquivistas e alguns deles ignoraram que havia o aspecto técnico no processo de armazenagem de filmes. Contudo, o crédito é deles pelo papel histórico que desempenharam na criação do primeiro arquivo fílmico e na salvaguarda de milhares de filmes para posteridade que de outra forma teriam desaparecido. Com a ampliação dos arquivos cinematográficos veio também o desenvolvimento e a imposição de normas internacionais para preservação e catalogação.

Atualmente, cientistas e juristas desempenham um papel mais importante do que os cinéfilos. Sua tarefa é tornar o conceito de armazenamento mais crível a compreensão dos cineastas de hoje. Após alguns contratempos, bem como sucessos, a grande aventura lançada profeticamente por um cameraman polonês em 1898 está perto de se concretizar, e esta é certamente a melhor garantia de que o cinema nunca mais vai sofrer os atos destruitivos que marcaram sua história no passado.



* Crítico e historiador do cinema francês, é o fundador-curador da Cinemateca de Toulouse e vice-presidente da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF). Sua pesquisa “Les Cinémathèques” foi publicada em 1983 pela editora L'Age d'Homme, Lausanne.

* Mestranda em Memória Social (PPGMS - UNIRIO).

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