Em relação ao cinema brasileiro, a década de 1930 representa um recorte cuja justificativa possivelmente pode ir além da mera convenção cronológica. De fato, trata-se de um período que pode ser apropriadamente demarcado por momentos-chave ocorridos tanto no final da década de 1920, quanto no início dos anos 1940.
Por um lado, temos em 15 de março de 1930 a fundação da Cinédia, através dos investimentos pessoais de Adhemar Gonzaga. Com o relativo êxito de seu Barro Humano (1929) – realizado com parcos recursos por uma equipe de jovens amadores que se reunia aos fins de semana para as filmagens –, Gonzaga teve argumentos para convencer seu pai a lhe prover o que representou um montante até então inédito no cinema brasileiro, permitindo a construção física de estúdios, a importação de equipamentos modernos e a constituição de um corpo fixo de profissionais. A Cinédia marca, portanto, o início da “era dos estúdios” no cinema brasileiro, passando a ter ainda a companhia, ao longo dos anos 1930, da Brasil Vita Filme, da atriz Carmem Santos, e da Sonofilms, do empresário Alberto Byington Júnior.
Entretanto, o final dessa década encontraria as três empresas em crise. As instalações da Sonofilms foram destruídas por um incêndio em 1940, durante a montagem de Asas do Brasil, de Raul Roulien, cujos negativos e cópias foram queimados; a Brasil Vita Filme permanecia desde 1938 mergulhada na longa e atribulada produção de Inconfidência Mineira, que se arrastaria até 1948; a Cinédia, diante da crise financeira, via-se obrigada a interromper sua produções para alugar seus estúdios tanto para filmes brasileiros independentes – como Direito de pecar (dir. Leo Marten, 1940), lançando o locutor-galã César Ladeira no cinema – quanto para bem-vindas produções estrangeiras – É tudo verdade (It's All True, dir. Orson Welles), da RKO. Foi justamente em 1941 que seria fundada a Atlântida Cinematográfica, que mesmo só lançando seu primeiro longa-metragem dois anos depois – Moleque Tião (dir. José Carlos Burle, 1943) –, suplantaria a Cinédia em popularidade e volume de produção já em meados dos anos 1940.
O início da década de 1930 também é lembrado pelo advento do som, mudança tecnológica responsável por uma ruptura que, se por um lado determinou o fim dos focos de produção de filmes silenciosos em diversos pontos do país (os chamados ciclos regionais), por outro alimentou a vã esperança de que o cinema brasileiro finalmente se afirmaria em seu próprio mercado por conta da língua brasileira. A passagem do filme silencioso para os chamados talkies se deu de forma lenta e gradual no mercado brasileiro e apesar da comentada exibição do “vitaphonizado” Alta Traição (The Patriot, dir. Ernst Lubitsch) na inauguração do Cine Paramount, em São Paulo, já em abril de 1929, a conversão do circuito exibidor para o cinema sonoro se daria de forma mais acentuada somente entre 1932 e 1934, com a consolidação da legendagem como procedimento padrão adotado no país.(1) Data daí o último suspiro das produções silenciosas brasileiras – um “colapso quase tão radical quanto o de 1911 ou de 1921”, nas palavras de Paulo Emílio Sales Gomes (2) – e a diminuição do número de filmes brasileiros lançados anualmente, que passariam a se restringir quase que exclusivamente à produção dos estúdios cariocas até o final dessa década.
De forma semelhante, a passagem para a década de 1940 é também, ao mesmo tempo, um momento de crise e de esperança para o cinema brasileiro. Com o início da guerra na Europa (1939) e o posterior envolvimento dos Estados Unidos (1941) e do Brasil (1942) no conflito mundial, o mercado cinematográfico brasileiro sofreria consequências as mais diversas. Por um lado, gradativamente sumiriam das telas brasileiras os filmes europeus, enquanto a produção americana que chegava às salas do nosso país seria francamente criticadas por sua baixa qualidade em decorrência do esforço de guerra. Considerava-se estar vivendo, portanto, uma grande chance para os produtores brasileiros aproveitarem tanto a ameaçada escassez de cópias de filmes estrangeiros para atender ao circuito exibidor, quanto a momentânea rejeição do público aos lançamentos correntes, finalmente sendo possível fazer deslanchar a almejada indústria cinematográfica brasileira, de forma semelhante ao que ocorria então, por exemplo, com a siderurgia nacional. Porém, a guerra também representou escassez de filme virgem, insumos laboratoriais e equipamentos cinematográficos no mercado brasileiro, e os problemas estruturais que afetavam o cinema nacional não seriam superados tão facilimente apesar do otimismo.
Quando se procura pensar na memória do cinema brasileiro da década de 1930, devemos lembrar de alguns fatores. Em primeiro lugar, esse período ainda se localiza durante era do suporte de nitrato de celulose (conhecido também como “celulóide”), quando as películas cinematográficas eram marcadas por sua alta inflamabilidade – sujeitas até à combustão espontânea – em decorrência da instabilidade química dos materiais e de seu armazenamento em locais e condições pouco aconselháveis. Desse modo, grande parte dos filmes produzidos nesse período infelizmente se perdeu em graves e, infelizmente, não raros incêndios, geralmente ocorridos durante o verão em depósitos fechados ou mal-ventilados. Praticamente toda a produção da Sonofilms até 1940, incluindo os grandes sucessos das comédias musicais Banana da Terra (dir. Ruy Costa, 1939) (3) e Laranja da China (dir. Ruy Costa, 1940), foram destruídos no já mencionado incêndio, ocorrido dia 21 de novembro de 1940.
A Brasil Vita Filmes já sofrera um incêndio em meados de 1944, destruindo um pavilhão dos estúdios e dando grandes prejuízos financeiros. Como escreveu Pery Ribas na ocasião: “O fogo e o celulóide nunca foram bons amigos, principalmente entre nós. A história do cinema brasileiro está cheia de incêndios”.(4) E essa infeliz história continuou, pois no dia 8 de janeiro de 1957 um “violento incêndio” atingiu a Brasil Vita Filme, conforme noticiou O Globo no dia seguinte: “Os filmes ali guardados, entre os quais Inconfidência [sic], Favela dos meus amores e Rei do samba, foram devorados pelas chamas”.(5)
Coincidentemente, poucos dias depois, naquele mesmo verão, um incêndio irrompeu na jovem Cinemateca Brasileira, em São Paulo, destruíndo negativos e cópias que tinham tido a “sorte” de sobreviver aos sinistros anteriores e haviam sido reunidas por Caio Scheiby, Paulo Emílio e outros, ou ainda doadas por figuras como o próprio Adhemar Gonzaga. O dia 28 de janeiro de 1957 ficou marcado na história da instituição graças ao fogo que consumiu cerca de um terço dos filmes do arquivo e toda sua valiosa documentação, inclusive o inventário do acervo. Por isso, como escreveu Carlos Roberto de Souza, “nós podemos somente inferir o que foi destruído a partir das informações recolhidas da imprensa e dos relatos das testemunhas”. O certo, porém, é que a perda foi enorme e traumática.(6)
A Cinédia foi talvez um dos únicos grandes estúdios brasileiros a não sofrer com o fogo em suas próprias instalações (embora a água tenha sido o vilão na inundação do arquivo em Jacarepaguá, em 1996) e, por isso, grande parte do que ainda existe do cinema brasileiro ficcional da década de 1930 seja representado pelos filmes dos estúdios de Adhemar Gonzaga, como Lábios sem beijos (dir. Humberto Mauro, 1930), Ganga Bruta (dir. Humberto Mauro, 1933), Alô! Alô! Carnaval (dir. Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, 1936), Bonequinha de Seda (dir. Oduvaldo Vianna, 1936), Samba da Vida (dir. Luiz de Barros, 1937), Maridinho de luxo (dir. Luiz de Barros, 1938) ou Alma e corpo de uma raça (dir. Milton Rodrigues, 1938), entre outros. Mas mesmo a Cinédia também sofreu perdas inestimáveis, como as de Alô, Alô, Brasil! (dir. Wallace Downey, 1935) e Estudantes (dir. Wallace Downey, 1935), os dois primeiros filmes do estúdio com a estrela Carmem Miranda cujos materiais se deterioraram ainda na década de 1940.
Outras observações também podem ser feitas sobre a preservação do cinema brasileiro dos anos 1930, como o fato das primeiras experiências com o cinema sonoro terem sido realizadas através do sistema de acompanhamento por discos, tanto o improvisado Sincrocinex de Lulu de Barros no pioneiro Acabaram-se os otários (1929), como o nacional “Munizógrafo” criado por Fausto Muniz para o film-opereta hoje desaparecido Cabocla Bonita (dir. Leon Marten, 1935), além obviamento do sistema Vitaphone, da Warner, usado pela primeira vez no Brasil em Coisas Nossas (dir. Wallace Downey, 1930), primeira produção de Alberto Byington.(7) A tecnologia do chamado sound-on-disk – que viria a ser definitivamente suplantada nos primeiros anos da década de 1930 pelo sound-on-film, o som ótico gravado fotograficamente na película – implicava na peculiaridade da obra estar registrada em dois suportes diferentes: as imagens na película e o som nos discos. Desse modo, alguns filmes desse período sobreviveram sem os registros sonoros até o resgate dos discos originais, como no caso de Mulher (dir. Octávio Gabus Mendes, 1931), que teve sua trilha sonora restaurada e foi relançado pela Cinédia em 2004. Já Coisas Nossas representa um caso singular em que apenas os discos chegaram aos nossos dias, tendo sido encontrados pelo pesquisador gaúcho Jesus Antonio Pfeil. Hoje esse pioneiro musical brasileiro só pode ser “ouvido”, mas não “visto”.
Ainda sobre a preservação dos filmes da década de 1930, devemos mencionar que colaborava para o fato de muitas obras se perderem o fato dos filmes não serem distribuidos com muitas cópias, que circulavam às vezes exaustivamente até se estragarem pelo uso, não sobrando muitos outros materiais no caso da perda dos negativos. Um lançamento era feito nos cinemas lançadores das capitais, com ingressos mais caros, prosseguindo somente depois nas salas do subúrbio e do interior do país ao longo de meses a fio. Segundo dados do anuário The 1935-1937 Motion Picture Almanac, filmes como Alô, Alô, Brasil!, Estudantes, Noites Cariocas, Favela dos meus amores e Alô! Alô! Carnaval! foram lançados com somente seis cópias pela Distribuidora de Filmes Brasileiros (D.F.B), o que já representava um número elevado para o mercado. Com os cine-jornais não era diferente, sendo cada edição lançada com apenas três cópias cada um.(8) Apenas sucessos extraordinários resultavam na confecção de um número maior de cópias e Alice Gonzaga citou matéria de Cine Magazine, em 1938, que descrevia a feitura de dez cópias do cinejornal da Cinédia com imagens do jogo entre Brasil e Polônia pela Copa do Mundo de Futebol, reveladas e distribuídas com grande rapidez para todo o país.(9)
Devemos ressaltar ainda que a década em questão também foi marcada pelo Decreto nº 21.240, de 1932, que tornou obrigatória a exibição de um complemento nacional junto de cada longa-metragem estrangeiro, no que se constituiu na primeira ação do Estado em relação à reserva de mercado para a produção cinematográfica brasileira. Seria a produção dos cinejornais – de certo modo tornando “oficial” a antiga prática informal dos cavadores – que viria a sustentar grande parte dos profissionais do cinema brasileiro ao longo da década em diversas partes do país, e em especial em São Paulo. A Cinédia foi uma das maiores produtoras dos também chamados “complementos” nos anos 1930 através do Cinédia atualidades (1933-4), Cinédia-Jornal (1934-42) e Cinédia-revista (1937-1944). Mas estes também não escaparam dos incêndios, como o da Cinemateca Brasileira, além dos dois que acometeram o laboratório do veterano cinegrafista carioca Alberto Botelho, ou o que atingiu os depósitos localizados na casa do pioneiro do cinema paulistano Gilberto Rossi, responsável pelo Rossi Actualidades. No verão de 1965 foi a vez dos depósitos da Leopoldis, em Porto Alegre, serem destruídos pelo fogo, perdendo-se parte da produção anterior a esta data, incluindo muitos números de seu Atualidades Gaúchas, lançado em 1932.(10) Os orgãos públicos não escaparam da mesma sina, como pode ser constatado pelo incêndio ocorrido em 1952 que destruiu os filmes realizados e os reunidos por Pedro Lima desde os anos 1930 no Serviço de Informação Agrícola (SIA) do Ministério da Agricultura.(11) Pelo seu maior volume e pela menor atenção que lhe foi geralmente dispensada – além do fato de cenas dos cine-jornais terem sido sistematicamente reaproveitadas em edições seguintes por seus produtores –, a memória do cinema brasileiro de não-ficção do período em questão que sobreviveu até nossos dias é certamente muito mais desfalcada do que sua contrapartida ficcional.
Apesar de todos esses problemas, parece curioso perceber que talvez conheçamos melhor o cinema brasileiro da década de 1930 do que o da década seguinte. Os anos 1940 foram ainda marcados não somente pelos incêndios, mas sobretudo pelo descaso e despreocupação para com a memória do cinema brasileiro, um quadro que apenas se reverteria de forma mais acentuada nos anos 1950. Mas essa já é outra história.
Rafael de Luna Freire é professor e pesquisador.
Notas
1 FREIRE, Rafael de Luna. A passagem para o cinema sonoro no Brasil. Pesquisa inédita.
2 GOMES, Paulo Emílio Sales. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. In: Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 52.
3 Deste filme, existe ainda o famoso número musical de Carmem Miranda “O que que a baiana tem?”, reaproveitado em Laranja da China, e utilizado no curta-metragem Carmem Miranda (dir. Jorge Ileli, 1969).
4 A Cena Muda, v. 24, n. 27, 4 jul. 1944, p. 3.
5 O Globo, 9 jan. 1957.
6 SOUZA, Carlos Roberto de. Inconfidência Archiveira: Nitrate fires in Brazilian Film History. In: SMITHER, Roger; SUROWIEC, Catherine (ed.). This film is dangerous. Bruxelas: FIAF, 2002, p. 465. (Tradução minha)
7 cf. COSTA, Fernando Morais. O som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: 7letras, 2008, p.75-126.
8 WEISSMAN, A. The Year in Brazil. In: The 1936-1937 Motion Picture Almanac, p. 1107-8.
9 GONZAGA, Alice. 50 anos de Cinédia. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 163.
10 PÓVOAS, Glênio. Leopoldis: a história do cinema gaúcho é contínua. In: MACHADO JR., Rubens et al. Estudos de cinema Socine. São Paulo: Annablume, Socine, 2007.
11 cf. HEFFNER, Hernani. Preservação. Contracampo, n. 34, 2001. Disponível em:
4 comentários:
Rafael, tudo bom?
Meu nome é Ruan Esteves, e gostaria primeiramente de parabenizar o excelente trabalho nas postagens desse blog. Venho acompanhando-o há algum tempo, e percebi que você possui um fantástico conhecimento nessa área de preservação audiovisual. Por isso, escrevo esse comentário na busca de algumas informações.
Sou um grande fã de Carmen Miranda, e preocupo-me muito com a preservação de sua memória, sobretudo sua carreira brasileira.
E como as informações sobre seus filmes no Brasil são sempre controversas, gostaria de lhe pedir a gentileza de, se possível, me passar algumas informações sobre o estado de conservação ou que fim levaram alguns dos filmes em que ela participou no Brasil na década de 1930. Muitos os dão como perdidos, porém sempre surge alguma ressalva, ou algum dia alguém encontra uma cópia preservada por aí, enfim, peculiaridades do nosso cinema antigo. Meu email é ruanesteves@yahoo.com.br, caso queira mandar um email. Muito obrigado e me desculpe pelo incômodo. Abraços!
Ruan
Já respondi ao seu e-mail.
abs
Rafael
Rafael, em primeiro lugar, excelente texto. Em segundo, gostaria de saber se chegaram a nossos dias filmes de Carmen Santos como "Sangue Mineiro" e "Onde a terra acaba". Em caso positivo, há DVDs ou eles continuam sepultados nas cinematecas, por aí? Abs, Bernardo
Oi,Bernardo. O "Sangue Mineiro" saiu em DVD, em edição do CTAv. O "Onde a terra acaba" só sobraram fragmentos, que podem ser vistos no documentário do Sérgio Machado do mesmo nome. Por fim, gostaria de discordar da sua expressão: as cinematecas no Brasil tem uma rotina de trabalho muito duro. Dizer que os filmes são "sepultado" nos arquivos me parece uma injustiça com essas instituições e seus funcionários. Abraços, Rafael
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