No Rio de Janeiro - e possivelmente nas principais cidades do país - a difusão da história do cinema, uma tarefa essencial dos arquivos de filmes e cinematecas, tem sido exercida sobretudo por centros culturais que contam com mais recursos financeiros para levar a cabo tais iniciativas. Diversos centros culturais espalhados pelo país, a maioria patrocinados por bancos, como o Instituto Moreira Salles, Itaú Cultural, Caixa Cultural e Centro Cultural do Banco do Nordeste, assumem esse papel através da produção de mostras e festivais de cinema. Nesse campo, porém, o destaque inegável é do já veterano Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB.
Enquanto a Caixa Cultural e outros centros culturais (e cinematecas) tem se restringido cada vez mais a mostras de DVD, mais baratas e simples, o CCBB tem se destacado por patrocinar grandes mostras panorâmicas cuja programação consiste de cópias 35mm vindas de diferentes partes do mundo, como já foi notado em outro texto deste blog. Ou seja, assume a tarefa - também dos arquivos de filmes - de tentar apresentar as obras cinematográficas em seus formatos originais ou mais próximo possível deles.
Mas além de mostras de diretores contemporâneos consagrados (como Pedro Costa ou Tsai Ming-Liang), chama atenção a organização no CCBB-RJ de mostras que exibem "filmes antigos", produzidas, em grande parte, por jovens cinéfilos formados não em Produção Cultural, mas em cinema.
Podemos citar as mostras dedicadas a Robert Altman, Woody Allen, Agnes Varda, Alain Resnais, F.W. Murnau, Ozu ou o Cinema Novo Indiano, cujos produtores "penaram" para conseguir cópias em película (e novas ou pelo menos em bom estado) tanto de obras do período silencioso quanto de longas dos anos 1950, 1960 ou 1970. Como nossas Cinematecas são extremamente precárias no que se refere a um acervo de filmes estrangeiros (e continuarão sendo, ao contrário da França, onde existe há anos uma lei de depósito obrigatório de cópias de qualquer filme estrangeiro lançado comercialmente no país), essas mostras contaram e permanecerão contando essencialmente com cópias estrangeiras, ampliando os custos dos eventos com transporte e legendagem eletrônica.
Dentro desse panorama, duas mostras recentes do CCBB me chamaram atenção: Faroeste Spaghetti e John Ford. Em ambas vi algo muito raro: filas e a sala lotada para ver "filmes antigos". Isso não é algo excepcional em outros países. No Cine Doré, da Filmoteca Española, tive que lutar para encontrar um lugar para assistir A feitiçaria através dos tempos, filme nórdico de 1922. Na Cinematheque Ontario, em Toronto, quase não consegui comprar ingresso para uma mostra dedicada a Akira Kurosawa. Em Los Angeles, no cinema do arquivo do UCLA, fui literalmente o último a conseguir entrar para a sessão de uma cópia restaurada do musical inglês Sapatinhos vermelhos, de 1948. Entretanto, há muito que eu não via isso acontecer no Rio em cinemas que não fossem de shopping exibindo blockbusters como Avatar ou Tropa de Elite 2.
Tanto no caso da mostra dedicada ao bangue bangue à italiana quanto ao mestre do western, o público é atraído tanto pelo ineditismo de alguns filmes quanto pela qualidade da projeção em película de títulos mais conhecidos. Nem tudo está na internet e filmes raros da época silenciosa de John Ford certamente não são fáceis de ser encontrados, funcionando como motivo de atração para os cinéfilos. Por outro lado, clássicos como Paixão dos Fortes, Vinhas da Ira ou Como era verde o meu vale já foram lançados em bons DVDs nacionais há muito tempo, mas mesmo assim muita gente não conseguiu ingresso para a sessão do primeiro hoje no CCBB.
Esse "frisson" certamente está associado ao fato de há muitos anos não se ficar sabendo de uma cópia 35mm de umas dessas obras-primas por aqui. Em nosso país, o "cinema clássico", por exemplo, de um John Ford, tem ficado restrito soemnte à TV, internet ou vídeo O mesmo acontece com vários outros grandes cineastas. A Cinemateca do MAM tinha uma cópia 35mm excelente de O tesouro de Sierra Madre já exibida milhões de vezes, mas outros filmes de John Huston, não são projetados há anos em nossas telas de cinema. De vez em quando há relançamentos de algum clássico, como o de Disque M para matar há mais de dez anos, ou de Janela indiscreta também há algum tempo. Mas e quanto a Sombra de uma dúvida ou Pacto Sinistro, para falarmos de outros filmes de Hitchcock? Novamente para citar o MAM, lá existe apenas uma cópia 16mm de A dama oculta já estropiada de tantas vezes que foi exibida...
Além dos clássicos, há os filmes menos conhecidos. Toda uma geração (a minha inclusive) asssistiu aos filmes do Terrence Hill na sessão da tarde da TV, mas quantos já tinham visto seus primeiros faroestes antes dele se consagrar como o parceiro de Bud Spencer em comédias? Muita gente já viu a trilogia do Sergio Leone, mas quantos assistiram aos close-ups de Era uma vez no Oeste se agigantarem na tela grande?
Num futuro cada vez mais próximo que testemunhará o fim da película cinematográfica (ou seu uso cada vez mais restrito), Paolo Cherchi Usai imaginou um cenário em que toda cópia em película se tornará um objeto "único", uma peça de museu, sendo logo tratada da mesma forma. Usai previu, por exemplo, o estabelecimento de novos procedimentos para o empréstimo de um filme, como a necessidade de uma cópia viajar acompanhada de um funcionário responsável por sua integridade, assim como acontece com o transporte de um quadro ou escultura de um museu para outro. Isso implica uma nova postura das salas de cinema, que se as cinematecas buscam respeitar, os centros culturais ainda precisam se adequar. Afinal, o mesmo CCBB já teve problemas por danificar cópias raras durante a projeção em algumas de suas mostras. Quando há cuidado e precaução, há falta de adequação: os projetores do CCBB não estão aparelhados para exibir a velocidade do cinema silencioso (16, 18 ou 20 fotogramas por segundo). Hoje, na mostra John Ford, o filme Bucking Broadway (1917), cuja duração seria de 49 minutos, foi exibido em menos de trinta, com tudo se movendo mais rápido na tela... Se no Rio, que eu saiba só a Cinemateca do MAM, o Cine Odeon e o IMS tem projetores com mecanismos para variação de velocidade, esse "luxo" é algo que mesmo os Centros Culturais mais "sérios" devem possuir ou adquirir.
Se há novas demandas para os organizadores das mostras, uma nova postura tem sido exigida também dos espectadores. No início das sessões da mostra John Ford, seus organizadores gentilmente alertam o público sobre intervalos que ocorrerão na projeção durante os rolos (ou seja, a cada 22 minutos aproximadamente) devido à manutenção das pontas de segurança de cada rolo. Não é frescura e o mesmo já é exigido para a exibição de cópias novas cedidas pela própria Cinemateca Brasileira (foi o caso de O bandido da Luz vermelha, numa mostra que produzi dois anos atrás). Agora, passa a ser exigida uma certa tolerância do espectador diante de uma cópia que se tornou uma peça de museu - uma obra da cultura de massa que ganhou status de obra de arte. Se estamos acostumados a ler um gibi em nossas mãos, dobrando as páginas para trás, o mesmo não pode ser feito mais com um número raro de Batman ou Super-homem, exibido em museus com luz controlada, atrás de vidros ou a uma distância mínima do público.
Se com a sofisticação dos multiplex e o altíssimo do preço dos ingressos ver um filme novo vai se tornando uma diversão elitista como ir a um concerto ou à ópera, assistir a uma cópia 35mm de um filme antigo, por sua vez, vai se transformando em algo como uma ida a um museu. Bem, assim como os museus do Rio também lotam quando exibem exposições de Rodin ou Picasso, por que não o CCBB numa mostra de John Ford?
Enquanto a Caixa Cultural e outros centros culturais (e cinematecas) tem se restringido cada vez mais a mostras de DVD, mais baratas e simples, o CCBB tem se destacado por patrocinar grandes mostras panorâmicas cuja programação consiste de cópias 35mm vindas de diferentes partes do mundo, como já foi notado em outro texto deste blog. Ou seja, assume a tarefa - também dos arquivos de filmes - de tentar apresentar as obras cinematográficas em seus formatos originais ou mais próximo possível deles.
Mas além de mostras de diretores contemporâneos consagrados (como Pedro Costa ou Tsai Ming-Liang), chama atenção a organização no CCBB-RJ de mostras que exibem "filmes antigos", produzidas, em grande parte, por jovens cinéfilos formados não em Produção Cultural, mas em cinema.
Podemos citar as mostras dedicadas a Robert Altman, Woody Allen, Agnes Varda, Alain Resnais, F.W. Murnau, Ozu ou o Cinema Novo Indiano, cujos produtores "penaram" para conseguir cópias em película (e novas ou pelo menos em bom estado) tanto de obras do período silencioso quanto de longas dos anos 1950, 1960 ou 1970. Como nossas Cinematecas são extremamente precárias no que se refere a um acervo de filmes estrangeiros (e continuarão sendo, ao contrário da França, onde existe há anos uma lei de depósito obrigatório de cópias de qualquer filme estrangeiro lançado comercialmente no país), essas mostras contaram e permanecerão contando essencialmente com cópias estrangeiras, ampliando os custos dos eventos com transporte e legendagem eletrônica.
Dentro desse panorama, duas mostras recentes do CCBB me chamaram atenção: Faroeste Spaghetti e John Ford. Em ambas vi algo muito raro: filas e a sala lotada para ver "filmes antigos". Isso não é algo excepcional em outros países. No Cine Doré, da Filmoteca Española, tive que lutar para encontrar um lugar para assistir A feitiçaria através dos tempos, filme nórdico de 1922. Na Cinematheque Ontario, em Toronto, quase não consegui comprar ingresso para uma mostra dedicada a Akira Kurosawa. Em Los Angeles, no cinema do arquivo do UCLA, fui literalmente o último a conseguir entrar para a sessão de uma cópia restaurada do musical inglês Sapatinhos vermelhos, de 1948. Entretanto, há muito que eu não via isso acontecer no Rio em cinemas que não fossem de shopping exibindo blockbusters como Avatar ou Tropa de Elite 2.
Tanto no caso da mostra dedicada ao bangue bangue à italiana quanto ao mestre do western, o público é atraído tanto pelo ineditismo de alguns filmes quanto pela qualidade da projeção em película de títulos mais conhecidos. Nem tudo está na internet e filmes raros da época silenciosa de John Ford certamente não são fáceis de ser encontrados, funcionando como motivo de atração para os cinéfilos. Por outro lado, clássicos como Paixão dos Fortes, Vinhas da Ira ou Como era verde o meu vale já foram lançados em bons DVDs nacionais há muito tempo, mas mesmo assim muita gente não conseguiu ingresso para a sessão do primeiro hoje no CCBB.
Esse "frisson" certamente está associado ao fato de há muitos anos não se ficar sabendo de uma cópia 35mm de umas dessas obras-primas por aqui. Em nosso país, o "cinema clássico", por exemplo, de um John Ford, tem ficado restrito soemnte à TV, internet ou vídeo O mesmo acontece com vários outros grandes cineastas. A Cinemateca do MAM tinha uma cópia 35mm excelente de O tesouro de Sierra Madre já exibida milhões de vezes, mas outros filmes de John Huston, não são projetados há anos em nossas telas de cinema. De vez em quando há relançamentos de algum clássico, como o de Disque M para matar há mais de dez anos, ou de Janela indiscreta também há algum tempo. Mas e quanto a Sombra de uma dúvida ou Pacto Sinistro, para falarmos de outros filmes de Hitchcock? Novamente para citar o MAM, lá existe apenas uma cópia 16mm de A dama oculta já estropiada de tantas vezes que foi exibida...
Além dos clássicos, há os filmes menos conhecidos. Toda uma geração (a minha inclusive) asssistiu aos filmes do Terrence Hill na sessão da tarde da TV, mas quantos já tinham visto seus primeiros faroestes antes dele se consagrar como o parceiro de Bud Spencer em comédias? Muita gente já viu a trilogia do Sergio Leone, mas quantos assistiram aos close-ups de Era uma vez no Oeste se agigantarem na tela grande?
Num futuro cada vez mais próximo que testemunhará o fim da película cinematográfica (ou seu uso cada vez mais restrito), Paolo Cherchi Usai imaginou um cenário em que toda cópia em película se tornará um objeto "único", uma peça de museu, sendo logo tratada da mesma forma. Usai previu, por exemplo, o estabelecimento de novos procedimentos para o empréstimo de um filme, como a necessidade de uma cópia viajar acompanhada de um funcionário responsável por sua integridade, assim como acontece com o transporte de um quadro ou escultura de um museu para outro. Isso implica uma nova postura das salas de cinema, que se as cinematecas buscam respeitar, os centros culturais ainda precisam se adequar. Afinal, o mesmo CCBB já teve problemas por danificar cópias raras durante a projeção em algumas de suas mostras. Quando há cuidado e precaução, há falta de adequação: os projetores do CCBB não estão aparelhados para exibir a velocidade do cinema silencioso (16, 18 ou 20 fotogramas por segundo). Hoje, na mostra John Ford, o filme Bucking Broadway (1917), cuja duração seria de 49 minutos, foi exibido em menos de trinta, com tudo se movendo mais rápido na tela... Se no Rio, que eu saiba só a Cinemateca do MAM, o Cine Odeon e o IMS tem projetores com mecanismos para variação de velocidade, esse "luxo" é algo que mesmo os Centros Culturais mais "sérios" devem possuir ou adquirir.
Se há novas demandas para os organizadores das mostras, uma nova postura tem sido exigida também dos espectadores. No início das sessões da mostra John Ford, seus organizadores gentilmente alertam o público sobre intervalos que ocorrerão na projeção durante os rolos (ou seja, a cada 22 minutos aproximadamente) devido à manutenção das pontas de segurança de cada rolo. Não é frescura e o mesmo já é exigido para a exibição de cópias novas cedidas pela própria Cinemateca Brasileira (foi o caso de O bandido da Luz vermelha, numa mostra que produzi dois anos atrás). Agora, passa a ser exigida uma certa tolerância do espectador diante de uma cópia que se tornou uma peça de museu - uma obra da cultura de massa que ganhou status de obra de arte. Se estamos acostumados a ler um gibi em nossas mãos, dobrando as páginas para trás, o mesmo não pode ser feito mais com um número raro de Batman ou Super-homem, exibido em museus com luz controlada, atrás de vidros ou a uma distância mínima do público.
Se com a sofisticação dos multiplex e o altíssimo do preço dos ingressos ver um filme novo vai se tornando uma diversão elitista como ir a um concerto ou à ópera, assistir a uma cópia 35mm de um filme antigo, por sua vez, vai se transformando em algo como uma ida a um museu. Bem, assim como os museus do Rio também lotam quando exibem exposições de Rodin ou Picasso, por que não o CCBB numa mostra de John Ford?
5 comentários:
O curioso é que inverte o pensamento de Walter Benjamin e a cópia em película 35mm acaba ganhando uma "aura" impensável quando o filósofo escreveu seu célebre texto sobe a obra de arte em tempos de reprodutibilidade técnica...E me faz lembrar das duas únicas sessões de Intolerância, o clássico de Griffith, já nos idos de 1991, em cópia restaurada pelo MoMA, com seu colorido (viragens)e velocidade originais, exibida aqui para uma platéia igualmente lotada em pleno Theatro Municipal, com trilha sonora também restaurada e tocada pela Orquestra Sinfônica Nacional da UFF sob regência de Gillian Anderson, maestrina que fez a recuperação da parte musical e responsável, na época, pela Divisão de Música da Biblioteca do Congresso em Washington. Foi realmente, e em todos os sentidos, um espetáculo único e que transformou o venerável Theatro Municipal do Rio, creio que pela primeira vez em sua história, num verdadeiro "movie palace". Com o acréscimo "temático" do intervalo no então restaurante Assírius, uma extensão natural dos cenários grandiosos da Babilônia de Griffith...ou seja, uma experiência realmente única de um tipo de imersão, de "cinema total". Na época os ingressos se esgotaram em dois dias e, por conta desse sucesso, vieram sessões de O Ladrão de Bagdá (com Douglas Fairbanks)e até do nosso Limite. Ou seja, parece sim que quando o programa, o estado das cópias e as condições de projeção são excepcionais, o público reconhece e prestigia esses "filmes antigos".
Rafa parabens pela sacada. É por aí mesmo. Não há tradição de preservar memória de nada. Existe tb a discussão do que é um "clássico". Questões que vc levantou geram um belo debate!
abraços
Oi, Rafael,
Bacana o texto. Para a gente que produz mostras, é importante que exista esse retorno, apontando o que pode ser melhorado.
Queria fazer apenas um comentário: realmente é uma pena os filmes mudos serem projetados a 24 quadros. Checamos com os técnicos, que pesquisaram, mas, de fato, no CCBB-RJ a alteração da velocidade só era possível num sistema de calibragem definitiva, o que se fazia impossível numa mostra como essa, com 3 ou 4 sessões por dia, sendo que a grande maioria dos filmes são sonoros.
Outro problema chato é o da janela, pois o filme é projetado em 1:1.37, sendo parcialmente cortado. Pior no CCBB-DF, que só possui a lente 1:1.85 (!).
De toda forma, um grupo de curadores tem unidos esforços para, além de fazer grandes mostras, com boas cópias, melhorar as etapas de preservação e exibição.
Espero vê-lo mais por lá
Abraços,
Raphael Mesquita
Oi, Raphael,
Obrigado pelo seu comentário. É uma pena mesmo que o esforço e o cuidado dos produtores de mostras muitas vezes esbarrem nas limitações técnicas dos locais que as sediam.
E você tem razão: além do problema da velocidade incorreta, a ausência das placas com os formatos menos usuais é outra questão grave.
Aproveito para parabenizar você e o Leonardo. A mostra John Ford é a primeira em que eu noto, com destaque, a descrição no material de divulgação da procedência de cada cópia programada no evento. Como eu disse no texto, isso não é frescura, mas 1) um sinal de um rigor necessário e louvável por parte dos organizadores do evento, 2) uma forma de orientação aos espectadores sobre a cópia que será exibida, e 3) uma divulgação justa dos arquivos e cinematecas que possuem cópias de difusão dessas obras.
Um abraço,
Rafael
Ótimo, agora só me resta aguardar a mostra do John Ford aqui em SP, tendo estes detalhes todos em conta. Muito bom.
Flávia Cesarino Costa
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